Conhece a discalculia? 'Se a atendente pede troco, me sinto em outro mundo'

Na escola, Jenifer Mendes se acostumou com o fato de demorar mais tempo para entender operações básicas de matemática, como dividir e multiplicar, do que outras crianças de sua idade. O que ela não imaginava é que aquilo que acreditava ser apenas uma dificuldade comum com os números, era um transtorno de aprendizado que carregaria consigo durante toda a vida.

Diagnosticada somente neste ano com discalculia, a publicitária de 36 anos já passou por muitas dificuldades no dia a dia por ter o transtorno de aprendizado. "Se estou no mercado e a atendente pergunta se tenho vinte centavos para facilitar o troco, é como se eu estivesse em outro mundo."

Jenifer conta que, diferente da maioria das pessoas que encontram facilidade para fazer operações simples de matemática, como somar e subtrair, para ela tudo é mais difícil e lento. "A forma como eu penso os números é diferente. Na maioria das vezes, para conseguir chegar ao resultado, preciso imaginar um professor fazendo a conta na lousa", diz.

O transtorno também afeta outras áreas de sua vida, como sua organização financeira. "Já achei que estava gastando R$ 100 em uma loja e, no momento que cheguei ao caixa, descobri que tudo dava R$ 1.000. Tudo pela minha dificuldade de fazer cálculos."

O que é discalculia

Júlio Koneski, médico neurologista que integra o departamento científico de transtornos do neurodesenvolvimento da SBNi (Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil), explica que a discalculia é um transtorno do neurodesenvolvimento, ou TND. Essa terminologia é usada para definir e classificar as alterações do desenvolvimento cerebral que aparecem nos primeiros anos de vida, mas que persistem ao longo da vida.

Entre os TND, destacam-se o TEA (Transtorno do Espectro do Autismo), o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), o TDI (Transtorno de Deficiência Intelectual) e os TAPR (Transtornos do Desenvolvimento da Aprendizagem), no qual estão incluídos separadamente os transtornos do aprendizado da leitura (dislexia), da escrita (disgrafia) e o transtorno do desenvolvimento da aprendizagem com prejuízo na matemática (a discalculia).

Segundo ele, no caso da discalculia, os sintomas não se relacionam apenas a cálculos matemáticos ou à aritmética básica dos primeiros anos escolares (soma, subtração, divisão e multiplicação). Também há o não entendimento de conceitos, percepções e orientações que envolvam quantidades (mais ou menos); metragens (composição de quilômetros, metros, centímetros); tempo (por exemplo, fuso horário); ordenação (primeiro, penúltimo); orientações especiais (direita, esquerda) e contar dinheiro.

 Sintomas da discalculia podem ser distintos em cada faixa etária
Sintomas da discalculia podem ser distintos em cada faixa etária Imagem: iStock
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Principais sintomas

Camila León, psicopedagoga e professora convidada da ABD (Associação Brasileira de Dislexia), aponta que os sintomas da discalculia podem ser distintos em cada faixa etária. Confira:

Educação infantil (3 e 5 anos):

Dificuldade para aprender a contar;

Dificuldade para reconhecer padrões simples;

Dificuldade para entender o significado dos numerais (como associar o número 3 a um conjunto de três objetos ou à palavra oral três);

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Dificuldade para entender o conceito de enumeração (associar um número a uma quantidade de objetos).

Ensino fundamental 1 (6 e 9 anos):

Dificuldade de aprender e lembrar fatos numéricos, como 4 + 2 = 6;

Uso excessivo dos dedos para contar, em vez de utilizar métodos mais avançados;

Dificuldade para identificar símbolos matemáticos (como + e -) e usá-los corretamente;

Dificuldade para entender linguagem matemática, como "mais que' e "menos que";

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Dificuldade para entender o valor posicional dos algarismos (confundindo 12 e 21, por exemplo).

Ensino fundamental 2 (10 e 14 anos):

Dificuldade para entender conceitos matemáticos, como a propriedade comutativa (3 + 5 é igual a 5 + 3) e a inversão (saber a resposta para 3 + 26 - 26 sem precisar calcular);

Dificuldade de selecionar uma estratégia para resolver problemas matemáticos;

Dificuldade para lembrar o placar em jogos e atividades esportivas;

Dificuldade de calcular o preço total de dois ou mais itens.

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É importante lembrar que o professor geralmente é o primeiro a desconfiar que alguém pode apresentar risco para a discalculia, uma que vez pode comparar o aluno com os demais da sala. Camila León, psicopedagoga e professora

Prevalência similar à do TDAH

No mundo, estima-se que a prevalência da discalculia na população escolar seja de 5 a 7% — similar com a do TDAH, um transtorno bem mais reconhecido.

O problema é que a maioria dos casos não são identificados porque muita gente não conhece esse transtorno de aprendizado ou, quando sabe, não procura ajuda, pois acredita que a dificuldade do filho é similar a de outros familiares com a matemática.

Telma Pantano, fonoaudióloga, psicopedagoga do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da USP), ressalta que um dos grandes diferenciais da discalculia para uma dificuldade comum em matemática é de como essa barreira em trabalhar com números interfere na vida da pessoa.

O conceito de número já é abstrato para qualquer pessoa quando envolve uma proporção grande. Mas para quem tem discalculia essa dificuldade já começa com números pequenos. Telma Pantano, fonoaudióloga e psicopedagoga

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Tratamento

Apesar de não haver medicamentos e cura para discalculia, existe tratamento. Ele envolve uma equipe multidisciplinar de profissionais de saúde (psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e psicopedagogos), além da participação efetiva da família e envolvimento da escola.

"Durante o tratamento, algumas técnicas pedagógicas diferenciadas e adaptadas no contexto escolar devem ser permitidas e incentivadas, como reforço de conceitos e operações aritméticas básicas, repetidas intensamente; e atividades reduzidas e adaptadas", apontou Koneski.

Camila León também ressalta que entre as ações gerais que fazem parte do tratamento da discalculia estão a psicoeducação dos envolvidos (informar e formar sobre a condição clínica, sintomas, dificuldades e alternativas de sucesso) e a adoção de estratégias de suporte na escola (uso da calculadora, uso de folha quadriculada para montar os cálculos e conteúdos adaptados à necessidade e nível de manifestação dos sintomas do paciente).

No Brasil, desde 2021, a Lei 14.254/21 estabelece que as escolas da rede pública e privada devem garantir acompanhamento específico, direcionado à dificuldade e da forma mais precoce possível, aos estudantes com discalculia.

Além disso, candidatos com discalculia em vestibulares e concursos públicos têm assegurados atendimentos especiais no momento de realização da prova, como tempo adicional e calculadora (fornecida pela própria banca realizadora da prova).

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