Adipócito: entenda a célula de gordura e como ela age no nosso organismo
Ninguém guarda gordura no corpo só para ela infernizar diante do espelho ou ser motivo de puxão de orelhas na consulta médica. Armazená-la é essencial.
Ora, o tecido adiposo é feito um papel-bolha que, ao nos envolver, absorve impactos que estraçalhariam nervos, músculos e órgãos. Suas moléculas gordurosas também podem ser liberadas para formar as paredes de cada uma de nossas células. Mas, acima de tudo, esse tecido é o nosso maior estoque de energia para viver.
Para se abastecer, o organismo até tem reservados uns 100, 150 gramas de glicose no fígado. Isso, porém, corresponde a apenas 400 ou, no máximo, 600 calorias. É um quebra-galho que acaba depressa. Ficaríamos na mão se não houvesse outra fonte — você já deve saber qual.
"Pegue uma pessoa com 60 quilos, que nem sequer apresente excesso de peso, e imagine que pouco mais de 30% sejam de gordura, isto é, 20 quilos", exemplifica o endocrinologista Bruno Geloneze. Feitas as contas, é uma covardia na comparação com a ninharia de glicose: "São 18 mil calorias para torrar", diz o médico, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde é o pesquisador principal do OCRC (Obesity and Comorbidities Research Center).
Se, até esta linha, consegui convencer sobre a importância de você ter gordura no corpo, saiba que, nele, as únicas células especializadas em estocá-la são os adipócitos. "A questão é: eles podem se expandir só até determinado ponto", esclarece o professor que, entre os amigos, adora soltar a voz e cantar. Mas, show pra valer, ele dá quando, com didática insuperável, narra tudo (ou quase tudo) o que um adipócito faz.
A célula cheia
Segundo o professor, às vezes a gordura em excesso permanece dentro dos adipócitos, mesmo que eles estejam quase não aguentando mais. É o que, no jargão médico, é chamado de hipertrigliceridose. O "ose" desse palavrão de origem grega vem de célula. Portanto, os triglicérides, que são um tipo de gordura, continuam ali, no lugar certo, bem guardados. "O resultado é o que alguns chamam de obesidade metabolicamente saudável", explica Geloneze.
Mas, quando o acúmulo de gordura aumenta ainda mais ou quando o tecido adiposo é ineficaz para armazená-la, ele fica parecendo um armário lotado de quinquilharia que nem consegue fechar a porta direito. "Então, é como se parte do que estava em seu interior caísse", explica o endocrinologista. "E vai cair onde? Na corrente sanguínea." É a hipertrigliceridemia — mais um palavrão! O "mia", no caso, tem a ver com a circulação. A partir daí, começam as maiores encrencas.
Quando cai no sangue
A gordura que escapou para o sangue bem que tenta voltar para o tecido adiposo. Ou, pelo menos, ser usada como fonte de energia pelo coração, pelos músculos ou por outro órgão qualquer.
"Porém, se isso não acontece, ela pode achar abrigo em outro 'armário', que não é assim tão bom ou tão especializado", ensina o professor, referindo-se à gordura ectópica, isto é, fora de lugar.
No endereço errado
Essa gordura que perdeu o rumo pode ir parar no pâncreas, por exemplo. "No início, ele até tolera a situação", observa Geloneze."Mas, quando as moléculas gordurosas se infiltram nas ilhotas de Langerhans, que são os agrupamentos celulares responsáveis pela insulina, a produção desse hormônio fica prejudicada." Abre-se o caminho para surgir o diabetes ou para essa doença se agravar.
Na verdade, em qualquer canto diferente do seu lar — que são os adipócitos —, onde a gordura se enfiar, ela irá gerar toxicidade. No fígado, não é diferente. Intrusa nas células hepáticas, a gordura logo provoca uma inflamação, a esteato-hepatite. Esse quadro é capaz de deixar cicatrizes, as fibroses. Estas, por sua vez, podem evoluir para uma terrível cirrose que, como se já não fosse grave e potencialmente letal o bastante, ainda pode virar um câncer. Ufa!
Os vasos tampouco são o melhor lugar para a gordura errante resolver se instalar. Mas, uma vez no sangue, ela costuma penetrar suas paredes, dando origem a placas que, amanhã ou depois, podem ficar graúdas o suficiente para entupir uma artéria.
"Hoje sabemos que a gordura das placas não vem só do sangue. Acumulando-se no lado de fora, ela é capaz de passar pelos vasa vasorum", diz o professor. "São minúsculas artérias que irrigam a própria parede dos vasos maiores." Ou seja, é literalmente gordura por todos os lados.
E no cérebro?
"Olha que coisa doida, mas os neurônios não suportam nem sequer uma gota de gordura", comenta Bruno Geloneze. Aliás, eles nem estocam energia. Funcionam na base da glicose ou de corpos cetônicos, moléculas que, digamos, são a alternativa quando ficamos em jejum por um tempo.
"Se a gordura alcança os neurônios cerebrais, eles deixam de funcionar direito. Daí que, se estiverem em uma área relacionada à fome e à saciedade, o controle do apetite não será mais o mesmo", afirma o professor. "Já se for em uma região mais voltada à cognição, o risco de a pessoa desenvolver demência aumentará."
Substâncias inflamatórias
Mesmo a gordura que permanece no endereço correto, ou seja, nos adipócitos, pode gerar confusão a partir do instante em que começa a se acumular demais. "Ao longo da evolução, o homem também foi presa", lembra Bruno Genoloze para justificar. De fato, as chances de a espécie humana sobreviver, dando no pé ao ser ameaçada, seriam maiores se o corpo não fosse muito pesado.
Por isso, quando um adipócito alcança o seu limite, surgem substâncias para evitar sua expansão. Tudo bem que a tentativa parece em vão e, pior, levamos um tiro no pé. Uma dessas substâncias para conter o adipócito cada vez mais rechonchudo é a TNF-alfa. Se a célula de gordura continuar crescendo, ela irá induzir a sua morte. Ao ser derramada no sangue, porém, essa substância leva a uma inflamação crônica que termina por afetar todos os órgãos. Não é nada bom.
"E, como o adipócitos não querem morrer , no momento em que começa a lhes faltar oxigênio, eles passam a liberar VEFG, uma molécula que aumenta a vascularização na região", conta o professor Geloneze. Talvez não seja uma boa estratégia, por exemplo, para quem tem diabetes. O VEFG é capaz, entre outras coisas, de provocar o crescimento de vasinhos anômalos no fundo dos olhos, aumentando o risco de retinopatia diabética, que causa cegueira.
A tal da gordura visceral
"É preciso dar um esclarecimento", faz questão de apontar o professor Geloneze. "O tecido adiposo visceral não é ectópico ou fora de lugar." Verdade: ele está no canto esperado, ao redor de órgãos como o coração, que adora uma gordura como fonte de energia. Fica por perto justamente para que nunca lhe falte o que queimar para continuar batendo.
A gordura em volta do intestino, por sua vez, é repleta de células de defesa — sim, há uma porção de macrófagos no tecido adiposo também. Com isso, ajuda a barrar toxinas e bactérias que, por ventura, foram absorvidas no processo de digestão.
Mas, justamente por ficar entre os órgãos e até por questão de espaço, a gordura visceral não deveria crescer demais. Por isso mesmo, é bem sensível à possibilidade de se expandir. Usa todas aquelas artimanhas para conter esse processo e o resultado é a liberação de muitas moléculas inflamatórias, chamando macrófagos extras ao local.
No final das contas, é tanta inflamação que essa gordura, quando está nos arredores do coração, por exemplo, é capaz de detonar até mesmo uma arritmia. Já na vizinhança dos rins, as moléculas inflamatórias despejadas por ela atrapalham o trabalho de filtração. E por aí vai. "Naquela analogia com o armário, digamos que a gordura visceral já tem, por natureza, uma porta ruim. Qualquer conteúdo a mais e ela despeja um monte de coisa", informa o professor.
Já a gordura subcutânea pode aumentar mais à vontade, enquanto nossas formas se avolumam. São muito boas no serviço de armazenagem de gordura. "Mas, cá entre nós, se olhamos bem de perto, vemos que o tecido adiposo subcutâneo tem duas camadas", explica Bruno Geloneze. "A mais profunda, que tende a ser mais espessa nos homens, infelizmente se comporta de um jeito parecido com o da gordura visceral."
Uma ironia: quando alguém faz lipoaspiração, o perigo é tirar boa parte da camada superficial do tecido adiposo subcutâneo, cujos adipócitos guardam gordura com relativa facilidade, sem ameaçar tanto a saúde. Se essas células caem fora, aspiradas pelo procedimento, e a pessoa volta a engordar, a tendência será o excesso parar onde não deveria — naquele adipócito mais irritadiço, por trás dos muitos problemas que a obesidade é capaz de provocar.
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