'Tossia pedaços de pulmão': relatos de quem destruiu a saúde fumando vape
Paulo Henrique, 22, tossia incessantemente fazia um mês. Quando as costas começaram a doer, a avó decidiu levá-lo ao hospital.
O jovem de Miranda (MS) passou então a expelir sangue.
Médicos detectaram um quadro de pneumonia bacteriana e derrame pleural. Um dos pulmões tinha três buracos. O outro havia necrosado.
Paulo fumava desde os 15 e, quatro meses antes, trocara o cigarro pelo vape.
Casos graves como esse ficaram comuns no Brasil. O uso de vape explodiu entre jovens e acendeu o alerta de médicos e autoridades.
A promessa da indústria é de um "novo cigarro", mais saudável e seguro. Mas os perigos para a saúde pulmonar são evidentes.
A concentração de nicotina em um cigarro eletrônico é, na média, 57 vezes maior que a encontrada em um convencional.
O UOL ouviu médicos a respeito dos efeitos do vape e a situação do Brasil em relação a esse tipo de tabagismo.
É consenso que o cigarro eletrônico não é alternativa para quem quer parar de fumar nem opção ao convencional. Com a popularização, os cigarros eletrônicos ganharam até uma doença para chamar de sua, a Evali.
O Brasil proíbe desde 2009 a fabricação, a importação e a comercialização de cigarros eletrônicos, mas isso não impede o vape de se disseminar: influenciadores desfilam o dispositivo nas redes sociais.
Um projeto de lei tramita no Senado propondo regulamentar o uso dos DEFs (dispositivos eletrônicos para fumar).
Oitenta entidades médicas já se posicionaram contra. Anvisa e Ministério da Saúde são contrários à regulamentação.
Não há um mapeamento do Ministério da Saúde que mostre o impacto do uso dos DEFs, o que só dificulta o monitoramento e o combate ao problema.
Doenças que surgem depressa
A rapidez com que os usuários de vape adoecem é o que mais assusta entidades médicas, diz Vera Borges, pneumologista da Divisão de Controle do Tabagismo do Inca (Instituto Nacional do Câncer).
"Pessoas jovens com cinco anos de uso contínuo podem desenvolver DPOC [doença pulmonar obstrutiva crônica], uma doença extremamente limitante. Em um fumante comum, essa doença pode aparecer depois de trinta anos de uso", afirma.
No caso de Paulo, quatro meses usando vape foram suficientes para causar estrago.
"Parte do pulmão do meu filho esfarelou na mão da médica. Agora ele tem metade de um pulmão e o outro está totalmente comprometido", conta a mãe de Paulo, Débora Sampaio.
Paulo passou por três cirurgias. Depois da primeira, em que houve a raspagem do pulmão necrosado, pedaços do órgão que seguiam descamando eram expelidos pela tosse.
A mãe angaria fundos para custear o tratamento do filho, que ficou mais de dois meses internado. Mesmo em casa, segue com um dreno no pulmão.
"Ele sente muita dor. Meu filho amava cantar, e de repente não conseguia mais. Faltava ar. O vape causou um estrago, e poderia ser muito pior."
Os efeitos da moda
Um em cada quatro jovens de 18 a 24 anos fumou um dispositivo eletrônico em 2023, segundo o Covitel (Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia).
Quase 12% dos que fumam esse tipo de cigarro afirmam tê-lo feito por "estar na moda", menos apenas do que quem o faz por curiosidade (20,5%).
A região Centro-Oeste tem o maior número de adolescentes que já experimentaram o vape, segundo boletim da Fundação do Câncer.
Além da nicotina, há outras substâncias no vape cujos efeitos estão sendo conhecidos agora.
"Ferro, níquel e propilenoglicol são altamente cancerígenos", explica Maria Vera Cruz, pneumologista do Hospital do Servidor Público Estadual.
24 horas por dia
O dentista João Vitor Pereira morreu aos 29 anos em decorrência de uma pneumonia bacteriana. Ele fumava vape "24 horas por dia", segundo a mãe, Edicleia Pereira.
João começou a fumar cigarro convencional aos 15 anos, e o substituiu pelo eletrônico havia seis anos.
"Às vezes, eu acordava de madrugada e o João estava acordado, fumando. E era mais fácil, porque [o vape] não deixa cheiro ruim, então dava para fumar em qualquer lugar", lembra.
João passou 20 dias com falta de ar, fazendo inalação em casa, até decidir buscar um médico.
O médico que atendeu meu filho atribuiu parte da morte dele ao vape. Ele disse que o cigarro eletrônico solta uma substância oleosa que vai colando no pulmão. A pneumonia não foi causada pelo vape, mas o vape impediu a recuperação. Edicleia Pereira mãe de João Vitor
João Vitor ficou internado durante seis dias.
A mãe, que chegou ao hospital poucas horas depois da internação, não conseguiu falar com o filho, que já estava intubado. As visitas eram permitidas duas vezes ao dia na UTI.
"Um dia antes da morte do João, eu fui visitá-lo e vi que a saturação dele estava abaixo de 47. Ele estava fazendo hemodiálise, e o médico me deixou acompanhar", lembra Edicleia.
A frequência cardíaca de João aumentou durante o procedimento e a pressão descompensou. Os médicos pararam a hemodiálise na hora.
"Naquele momento, senti que meu filho estava indo embora", diz Edicleia.
Na madrugada, o hospital avisou à família sobre a morte de João Vitor por falência múltipla de órgãos em decorrência da pneumonia.
"Meu filho era inteligente. Eu sei que ele sabia dos danos, mas era um vício. Ele dizia que só o vape curava a ansiedade dele", diz Edicleia.
Evali, a doença do vape
Dados da Anvisa obtidos pelo UOL mostram apenas dez casos de Evali no Brasil nos últimos cinco anos. O paciente mais velho entre eles tinha 41 anos.
Como a doença é nova, existe subnotificação. Ela pode ser confundida com outros problemas respiratórios, como pneumonia e enfisema pulmonar.
"É muito difícil diferenciar influenza, gripe ou covid em um exame de tomografia com as lesões de um cigarro eletrônico", explica o pneumologista David Coelho.
Em 2023, ele atendeu uma mulher que morreu aos 31 anos, em Juazeiro (BA), devido às consequências do uso de vape.
Ela chegou ao pronto-socorro com insuficiência respiratória e foi para a UTI. Foi intubada dois dias depois.
"Era jovem, sem comorbidades ou doenças autoimunes. Estava há um mês sem usar cigarro eletrônico, segundo relato dela", conta.
"Fizemos uma endoscopia pulmonar que mostrou as partes mais inflamadas do pulmão. Foi por meio da biópsia que vimos um acúmulo de células de gordura, um quadro conhecido por pneumonia lipoídica."
No caso da paciente de David Coelho, o diagnóstico de Evali só foi possível porque o exame de biópsia foi realizado no hospital, o que nem sempre acontece nas unidades de saúde.
"No Brasil, é difícil saber qual a real incidência do problema. Não temos, hoje, como fazer esses exames em grande volume, então muitos casos passam como infecções virais, bacterianas, pneumonia. Por isso a subnotificação."
Sais de nicotina são mais viciantes
A maior parte dos jovens que experimentam o dispositivo eletrônico o faz entre amigos.
O cheiro de frutas e a aparência descolada, tecnológica e inofensiva chama a atenção. Das tragadas aleatórias em festas muitos acabam se viciando rapidamente.
A quarta geração de vapes, os chamados "pods", usa sais de nicotina, que nada mais é que uma nicotina potencializada e sem o gosto forte e característico. É um disfarce.
"Cada cigarro comum tem 1 mg de nicotina. Um maço de cigarros tem 20 mg de nicotina. Esses 'pods' de última geração chegam a ter 52 mg de nicotina, que são os sais de nicotina. Então, um jovem pode consumir em uma noite o equivalente a três maços de cigarro. As pessoas ficam dependentes muito rapidamente", diz a pneumologista Vera Borges.
"O jovem que dá algumas puxadas no vape do amigo na balada acaba se viciando sem querer. De repente, está comprando seu próprio vape. Esse é o mecanismo da indústria", completa.
O vício se dá a partir dos 5 dias de uso. Não há nenhuma substância que vicie tanto e tão rápido quanto a nicotina. A adicção é rápida e ávida. Eles pegam o vape antes de escovar os dentes. Margareth Dalcomo pesquisadora da Fiocruz e presidente da SBPT
Foi o que aconteceu com o gerente de negócios Diego Mathias da Silva, 39. Ele nunca havia fumado cigarro e conheceu o eletrônico com amigos.
"É curioso. Quando você fuma, a pressão cai um pouco. Eu relaxava. Até que chegou um momento em que o efeito passou. Aumentei o nível de nicotina na tentativa de atingi-lo de novo", conta.
Do cigarro eletrônico convencional, aquele que o usuário precisa preencher com o líquido da essência, Diego passou para o vape, que já vem com a essência.
"No começo, um vaper de 5.000 puxadas durava de 20 dias a 1 mês. Com o tempo, comecei a fumar em todos os lugares, até no trabalho. Meu vape passou a durar cinco dias."
Um dia, depois de uma festa, Diego acordou com sintomas de gripe forte.
O cansaço o impedia de levantar para tomar banho. Ao chegar ao hospital, sua saturação de oxigênio no sangue caíra a 85%.
"O raio-X do meu pulmão mostrou que eu estava com pneumonia bacteriana", conta.
Diego foi transferido para o hospital Albert Einstein do Morumbi, na zona sul de São Paulo. Os médicos ficaram surpresos, pois não era comum alguém da idade dele, que fumava vape há apenas três anos, apresentar um pulmão tão comprometido.
Foram dez dias de internação até que a saturação de Diego superasse os 94%.
A febre não cessava nem com antibióticos. Qualquer caminhada curta o fazia se sentir cansado, algo que não condizia com o histórico de atleta que tinha.
Ele passou um mês usando respirador quatro vezes ao dia, e teve de fazer fisioterapia pulmonar para que os pulmões voltassem a funcionar sem ajuda do aparelho.
Jovens, o público-alvo
Segundo a pneumologista responsável pelo atendimento de Diego, Telma Antunes, seu quadro foi pneumonia agravada pela utilização contínua de vape.
"Estou começando a receber pais que trazem adolescentes de 17 e 18 anos que precisam de ajuda para parar de fumar", conta Antunes, pneumologista do Einstein.
Ela explica que há uma grande preocupação dos pais, uma vez que os adolescentes não conseguem ficar tanto tempo sem usar o produto, causando uma dependência em muitos casos.
A médica conta que essa nova geração não chega a experimentar o cigarro convencional antes do vape.
"O problema é que não sabemos os problemas a longo prazo: sequelas e potencial cancerígeno. Ainda não tivemos tempo para entender", diz.
O que mais tenho visto é algo que chamamos de bronquiolite respiratória, que é uma manifestação vista ao redor de 10 anos de tabagismo. Com o vape, a pessoa apresenta o quadro com cinco meses de uso.
Telma Antunes pneumologista
Fontes médicas:
Presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia e pesquisadora da Fiocruz, Margareth Dalcolmo.
Paulo Corrêa, pneumologista coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da SBPT (Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia).
Vera Borges, Divisão de Controle do Tabagismo do Inca (Instituto Nacional do Câncer).
Jaqueline Sholz, diretora do Programa de Cessação de Tabagismo do InCor.
Maria Vera Cruz, pneumologista do Hospital do Servidor Público Estadual.
Camila Marchioni, professora de Toxicologia Universidade Federal de Santa Catarina.
Telma Antunes, pneumologista do Hospital Israelita Albert Einstein (SP).
David Coelho, pneumologista.
Ciro Kirchenchtejn, pneumologista aposentado da Unifesp.
Cynthia Saad, pneumologista da plataforma de saúde digital Conexa
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