'Usa vape?': pergunta passa a fazer parte da rotina de médicos
Cigarros eletrônicos parecem inofensivos, mas não são. Quem faz o alerta são médicos que têm atendido cada vez mais pacientes nos consultórios com sintomas causados pelo produto, que segue com venda e uso proibidos no Brasil pela Anvisa.
A mudança do perfil dos pacientes é algo destacado pelos médicos pneumologistas ouvidos pelo UOL.
Pessoas cada vez mais novas procuram atendimento médico —em alguns casos, sem nunca terem fumado um cigarro convencional antes.
O consumo do dispositivo eletrônico continua crescendo. Dados do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica) de 2024 mostram que o aumento foi de 600% nos últimos seis anos. A pesquisa ouviu quase 3 milhões de adultos usuários do produto.
Não há um mapeamento oficial do Ministério da Saúde, por exemplo, que mostre o real impacto do uso dos DEFs (dispositivos eletrônicos para fumar) na saúde pública.
Alguns motivos explicam isso, de acordo com os especialistas. O primeiro é que o diagnóstico não é realizado de forma rotineira.
Outro ponto é que não tem, até o momento, uma CID (classificação de doenças) específica para isso —algo que ajudaria no registro dentro dos hospitais.
O Ministério da Saúde informou, em nota, que apoia a manutenção da regulamentação da Anvisa sobre o tema, ou seja, ser a favor da proibição da comercialização, propaganda e importação dos produtos.
A pasta, em parceria com o Inca, tem desenvolvido nos últimos anos diversas ações no âmbito da produção e disseminação de conhecimento; ações de formação, treinamento e aperfeiçoamento para a prevenção da iniciação ao tabagismo; assessoria técnica aos gestores estaduais e municipais envolvidos com o controle do tabaco e do tabagismo; ações de mobilização e comunicação, visando informar, instruir, alertar e orientar sobre os danos decorrentes do uso de tais dispositivos. Nota do Ministério da Saúde
Paciente fumou o equivalente a 40 maços em 5 dias
A pneumologista Telma Antunes atende pacientes no Hospital Israelita Albert Einstein (SP). Há 23 anos na área, ela já teve de tratar pacientes em estado grave devido ao uso do vape.
Um rapaz chegou aqui com falta de ar e oxigenação baixa, com infiltração bilateral no pulmão, e entrou em insuficiência respiratória. Ele não precisou ser intubado, mas usou a máscara de ventilação não invasiva. Telma Antunes
O paciente contou que usou 15 mil puffs (cada "vaporada" dada) do vape em cinco dias, o equivalente a 40 maços de cigarro convencional, segundo Antunes.
A médica disse que ele precisou ser tratado com corticoide, além de usar a máscara por cerca de quatro dias. Foram três meses até que o pulmão fosse recuperado.
"O padrão da tomografia era aquela inflamação difusa, como uma coisa realmente agredindo aquele pulmão (...) Hoje, ele parou de fumar e faz até campanha contra", diz.
Três pacientes com evali em 2019
Ciro Kirchenchtejn teve três pacientes diagnosticados com evali há cinco anos. A doença associada ao uso do vape causou uma epidemia em 2019 nos Estados Unidos.
Os atendimentos foram feitos em hospitais particulares de São Paulo. Os pacientes tinham idades entre 20 e 40 anos.
Os primeiros sintomas foram pneumonia e febre e, com exames de imagem, identificaram "vidro fosco" no pulmão, uma lesão inflamatória sem muita especificidade.
Os três pacientes relataram ter inserido cannabis [THC] no suco inalatório do produto (...) Foram quadros difíceis que precisaram de internação. Ciro Kirchenchtejn
Depois do tratamento, todos os pacientes se recuperaram bem e seguiram em atendimento médico.
Há mais de 30 anos atuando como pneumologista, Kirchenchtejn afirma que está cada vez mais difícil fazer o diagnóstico (sem utilizar biópsia) para diferenciar as causas de uma pneumonia, por exemplo, exatamente pela semelhança com outras infecções respiratórias.
O especialista vê com preocupação os pacientes que chegam no consultório.
Quem usa o vape, hoje, é a população de 20, 30 anos. Eles não querem parar de fumar, mas depois que conversamos, entendem que estão dependentes, que têm fissuras, que não conseguem passar um tempo sem usar e, só assim, tomam consciência. Ciro Kirchenchtejn
'Nova geração de pneumopatas'
A pneumologista Cynthia Saad mora nos Estados Unidos, mas segue atendendo pacientes por videoconferência no Brasil inteiro. Ela é chefe da equipe de pneumologia da Conexa, uma plataforma de saúde digital.
Ela conta que, em todas as regiões brasileiras, há pacientes que procuram ajuda devido ao uso do cigarro eletrônico. Saad organiza os atendimentos dos especialistas e, por isso, consegue ter uma visão geral dos casos.
"Vejo alguns com tosse crônica, crises de asma de difícil tratamento, com [exame de] imagem pulmonar alterada", conta.
Quando atende casos de adolescentes com algum dos sintomas, os pais, às vezes, nem sabem que ele utiliza os produtos. Por isso, para entender melhor o histórico do paciente, faz um combinado com eles.
"Geralmente peço para os pais se retirarem, sabendo que aquilo ficará no sigilo médico. Caso ele tenha algum risco de vida ou uma doença que prejudique a saúde dele, sou obrigada a reportar a eles", explica Saad.
Entre os cerca de 15 pacientes que atende na semana, pelo menos um faz uso do vape. A preocupação dela, assim como dos outros médicos, é a idade precoce.
É muito triste porque são pacientes adolescentes ou jovens adultos (...) Eles usam o produto desde muito cedo e em excesso porque o cheiro é 'agradável'. Estamos criando uma geração de pneumopatas jovens. Cynthia Saad
Para Telma Antunes, médica do Einstein, o que está acontecendo com o vape é o mesmo que ocorreu com o cigarro. Virou um item "glamouroso". "Se você não fumasse, você não fazia parte do grupo. Todo mundo fuma, então o jovem vai e segue o exemplo."
'Usa vape?': pergunta passa a fazer parte da rotina de médicos
Os médicos consultados pelo UOL explicam que a própria anamnese com o paciente passa a incorporar uma nova pergunta: "Usa cigarro eletrônico?".
A própria ideia de que o vape ajuda a parar de fumar, não comprovada por nenhum estudo, é vista na prática, segundo o pneumologista David Coelho, que atua há mais de 14 anos como especialista.
Recebo pacientes para os quais o cigarro eletrônico foi a porta de entrada [para o cigarro tradicional]. Um deles, inclusive, me procurou pedindo ajuda para parar. Ele nunca tinha fumado nada. David coelho, pneumologista
A maioria dos pacientes que o procura é quem tem alguma doença de base (como a asma) ou com algum sintoma (tosse, por exemplo).
"É mais difícil a pessoa vir porque usa o vape. Geralmente, é uma pessoa com alguma doença e, com isso, fazemos a orientação dos riscos do cigarro eletrônico", explica.
Fumo passivo de vape existe
Pneumologista há mais de 20 anos, Cynthia Saad traz uma outra preocupação: o efeito do fumo passivo do vape, algo ainda novo inclusive para os especialistas.
Recebo muitos pacientes e, quando pergunto se usam vape, eles dizem que não, e eu preciso acreditar, confiar. O que eles falam é que ficam em ambientes com amigos que utilizam. Cynthia Saad
Segundo Saad, o vapor dos cigarros eletrônicos pode ser agressivo mesmo para quem não está usando diretamente o produto. "É pior principalmente se a pessoa tiver asma", diz.
A médica conta que já atendeu um paciente adolescente que passou por algo parecido. "Ele precisou fazer toda uma mudança de hábito, evitar os ambientes que têm pessoas usando. Hoje, ele melhorou."
6 pontos sobre o cigarro eletrônico
O vapor não possui somente água. A fumaça (vapor, aerossol) é, sim, prejudicial à saúde. As substâncias presentes no líquido inserido no produto são tóxicas e cancerígenas. O vapor inclui partículas ultrafinas, que desencadeiam processos inflamatórios pelo corpo e estão diretamente relacionadas a doenças cardiovasculares.
Fumo passivo existe. O vapor é prejudicial à saúde do fumante e também das pessoas ao redor, que podem ser impactadas pelo aerossol —como ocorre com o cigarro comum.
Tem nicotina. De acordo com os especialistas, a maioria dos e-líquidos possui uma quantidade de nicotina que, quanto mais inalada pela pessoa, mais dependência pode causar.
Porta de entrada para o tabagismo. Segundo estudo do Inca, pessoas que fumam dispositivos eletrônicos têm maior risco de iniciar uso de cigarro convencional.
Produto pode explodir na boca. Já existem relatos de explosão da bateria de cigarros eletrônicos. Isso pode resultar em queimaduras graves, inclusive na garganta e no pulmão, segundo os médicos.
Pode viciar. Como a maioria dos e-líquidos possui nicotina, há maior risco de dependência da substância com o uso dos DEFs (como acontece com o cigarro comum).
Muito além do pulmão: o que o uso dos DEFs pode causar?
Problemas no coração, como infarto;
Doenças pulmonares, como DPOC e bronquite;
Evali, doença relacionado ao fumo de dispositivos eletrônicos;
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