Obesidade afetou saúde e finanças dela: 'Gastava R$ 300 ao dia em delivery'
Bárbara Therrie
Colaboração para VivaBem
06/11/2024 05h30
Com quase 200 kg, a pedagoga e estudante de psicologia Rayane Soares desenvolveu várias doenças por causa da obesidade e teve problemas financeiros devido à compulsão alimentar, pois gastava até R$ 300 com delivery. Ela decidiu cuidar da saúde e, após perder 43 kg, já colheu benefícios à saúde, mas segue em sua jornada contra o excesso de peso
"Comecei a comer em excesso e a engordar quando estava com 8 anos. Na época, meu pai passou a usar drogas e a abusar do álcool. Ele era o provedor da casa e, por conta dos vícios, tivemos muitas dificuldades financeiras e vivíamos em um lar instável.
Minha mãe teve que arranjar um emprego para pagar as contas, eu e meus irmãos passávamos a maior parte do tempo sozinhos durante a semana. No domingo, o único entretenimento que tínhamos era comer as coisas gostosas que ela fazia. Eu comia para suprir a falta do meu pai e para buscar a segurança que eu sentia quando estava com a minha mãe, já que eu passava o restante dos dias me sentindo infeliz.
A escola era sinônimo de sofrimento
Aos 12 anos eu já era uma obesa mórbida, pesava 125 kg. O bullying, as risadas, comentários e olhares me faziam comer ainda mais. Para mim, a escola era sinônimo de sofrimento, reprovei um dos anos no ginásio por falta, não queria frequentar as aulas de jeito nenhum.
Transformei a comida em um instrumento para lidar com a ansiedade e os problemas, ainda hoje é um inferno lidar com as emoções de outra forma que não seja comendo.
Ao longo dos anos fui engordando gradativamente até chegar a 198 kg em 2020. Tentei todas as alternativas para emagrecer: dietas, remédios, laxantes, atividade física. Já sofri muito terrorismo nutricional, saía do consultório do nutricionista com mais vontade de comer do que quando entrava, eu me sentia pressionada, obrigada e como se estivesse dando satisfação para um patrão. As dietas não eram variadas e eu não podia comer nada do que eu gostava.
Desenvolvi vários problemas de saúde por conta da obesidade ou que se intensificaram por conta dela. Tenho gordura no fígado, resistência insulínica, acantose nigricans, menstruação irregular, distúrbios do sono, ovários policísticos, infertilidade por quase 10 anos, ansiedade generalizada, pânico social.
Minha dignidade foi afetada
Ao atingir quase 200 kg, minha dignidade foi afetada em várias instâncias. Parei de me cuidar, não me reconhecia no espelho e minha autoestima foi por água abaixo. Passava o dia deitada, isolada, não conseguia realizar atividades simples como amarrar o cadarço e alcançar todas as partes do meu corpo. Toda vez que eu fazia minhas necessidades tinha que tomar banho imediatamente senão ficava com mau cheiro. Não havia cadeiras para o meu peso em lugares como bancos, faculdade e hospitais.
Tive vários problemas no meu casamento. O primeiro é que fui demitida do meu trabalho porque não dava o meu melhor e isso sobrecarregou o meu esposo, que tinha que trabalhar em dobro para dar conta das finanças.
Às vezes ele chegava cansado do trabalho e ainda tinha que limpar a casa porque eu não conseguia mais. Se ele quisesse sair e eu não, ele ficava em casa comigo. Sentia que estava podando a vontade dele de viver. De alguma forma, ele sofreu todas as consequências da obesidade junto comigo mesmo sem ser obeso.
Na vida sexual eu tinha libido, mas minha disposição física e mobilidade não acompanhavam as minhas vontades, demorou um pouco para conseguirmos reatar plenamente nossa intimidade.
Sempre gostei de cozinhar, amava testar os sabores, texturas, misturas, mas chegou um ponto que não tinha mais energia. Fazia compras online no mercado ou pedia tudo no iFood, almoço, jantar, massas, pizza, açaí com guloseimas. Às vezes comprava duas latas de leite condensado e uma caixa de bombom e consumia sozinha no mesmo dia.
Eu gastava de R$ 100 a R$ 200 por dia, mas já cheguei a R$ 300, entre alimentação e taxa de entrega. Estourei alguns cartões de crédito com a desculpa de que depois arrumaria o dinheiro para pagar. Entrei em um buraco financeiro, eu e meu marido tivemos que vender nosso carro para pagar as dívidas.
Na época eu morava no segundo andar de um prédio e, em vez de descer para buscar as entregas, eu jogava uma cordinha da sacada para o entregador amarrar a comida. A obesidade é uma doença, ninguém é obeso porque quer. Não é só fechar a boca como muitas pessoas dizem, há muitos fatores envolvidos.
Emagreci 31 kg e engravidei
Cheguei no fundo do poço e procurei ajuda de todas as formas. Em 2023 fui passar alguns dias na casa minha mãe, acabei ficando lá por um ano e esse tempo foi o suficiente para mudar minha vida em todos os sentidos. Criei uma rotina, tinha hora para dormir, acordar, me alimentar, comecei a fazer atividade física e terapia. Perdi 31 kg e engravidei.
Durante a gestação, tive hipertensão gestacional, retenção de líquido e pré-eclâmpsia no parto. Fiz o pré-natal e parto pelo SUS, fui tratada pela maioria dos profissionais com respeito e carinho, mas houve alguns episódios em que me senti violada, exposta e constrangida com o despreparo para lidar com grávidas obesas. Para começar, acho um absurdo que as UBSs e instituições voltadas para gestantes de alto risco não tenham balanças que suportem mais de 150 kg.
Eu queria fazer cesárea, mas senti desnecessariamente as dores do parto normal após a médica autorizar a indução, com o meu consentimento, é claro, mas quem não concordaria depois de ouvi-la dizer: "200 kg, florzinha? Por que deixou chegar nesse estado? Você tem muito tecido adiposo, seria melhor parto normal, mas você não tem dilatação, vamos induzir? Não sei como vai ser isso, vou mandar uma foto sua para o anestesista ver se vai dar certo".
Todo o estresse, dor, gordofobia, preconceito e risco que eu e o meu bebê sofremos poderiam ter sido evitados se tivessem respeitado meus direitos como grávida e como pessoa obesa. No fim, meu filho nasceu de um parto cesárea e saudável.
Não consegui amamentar meu bebê
No começo não conseguia segurar meu filho no colo por mais de cinco minutos sem me cansar. A exaustão causada pelas noites mal dormidas e cuidados diários com o recém-nascido são mais difíceis para as mães obesas. Não consegui amamentar meu filho devido às dobras do meu corpo. Amarrava uma fralda de tecido no meu pescoço para dispender o seio e ele conseguir mamar, mas ele sufocava. Tirava o leite do peito com a bombinha e intercalava com a fórmula.
Em janeiro de 2024, após 15 dias do parto e pesando 185 kg, iniciei um novo processo de emagrecimento. Não queria que meus hábitos influenciassem meu filho de forma negativa, como já estava acontecendo com meu esposo, que passou a comer mal e ficou com sobrepeso.
A primeira ação foi mudar os hábitos alimentares por conta própria. Seis meses após o parto, iniciei uma dieta com nutricionista. Faço seis refeições diárias e não posso pular nenhuma para não sentir fome. Minha dieta começou com 1.900 calorias por dia, mas atualmente está em 2.281.
Cortei o açúcar refinado dos líquidos, diminuí a quantidade de alimentos hipercalóricos e passei a ingerir mais frutas, verduras e legumes. Posso comer duas sobremesas por dia, o que me ajuda a controlar a vontade de comer doce, e tenho uma refeição livre toda semana. Minha alimentação é variada, adaptável e gostosa.
Aprendi que não preciso passar fome para emagrecer, peso os alimentos e isso ajuda no controle calórico. Antigamente, se eu cometesse algum erro ou excesso na dieta, já parava e achava que tinha perdido tudo. Hoje em dia se isso acontece, continuo a dieta a partir da próxima refeição.
Sempre que possível preparo e congelo algumas marmitas saudáveis para comer durante a semana. Inicialmente desinstalei os aplicativos de comida, mas agora já uso de forma controlada.
Comecei a fazer academia, faço de 5 a 10 minutos de exercício aeróbico e musculação de 3 a 5 vezes por semana. Nos dias que não consigo treinar, faço 30 minutos de caminhada no condomínio.
Aprendi os sinais da depressão
Me livrei de todas as armadilhas mentais, aprendi a observar os sinais da depressão e a evitá-los, como a vontade de me isolar, de não responder os profissionais que me atendem, de vacilar nos treinos e na dieta. A terapia me ajuda porque vai na raiz do problema, entender o porquê de eu comer tanto é tão importante quanto apenas mudar os hábitos.
Durante muito tempo me isolei, mas cansei de me privar por vergonha do meu corpo e passei a mostrar a minha luta contra a obesidade no meu Instagram. Minhas postagens tomaram uma proporção que não imaginava, pessoas obesas de outros estados e países começaram a me seguir por se identificarem com o conteúdo, e outras passaram a me acompanhar para incentivar o meu processo.
Ainda sou obesa mórbida, atualmente peso 148 kg e quero chegar aos 100 kg. Enfrento muitos desafios, mas já estou feliz com tudo o que conquistei até aqui por mim e pela minha família. Consigo amarrar o cadarço, alcanço todas as partes do meu corpo, voltei a dirigir, sento-me nas cadeiras sem medo de elas quebrarem, cuido do meu filho e da minha autoestima.
A jornada é longa, mas tenho algumas estratégias para não desistir, uma delas é focar nos meus sonhos. Lembro o quanto meu filho precisa de mim e me visualizo sendo uma boa mãe e tendo mais disposição. Lembro tudo o que meu esposo passou e me vejo o auxiliando a atingir as metas pessoais dele que ficaram estacionadas. Também me vejo ajudando pessoas que passam pelo mesmo que passei e ainda passo".
Benefícios à saúde surgem no processo de emagrecimento
Muitas pessoas com obesidade acreditam que é necessário se livrar de todo o excesso de peso para melhorar a saúde, mas não é assim. Alguns benefícios já são obtidos no processo.
Qualquer perda de peso acima de 3% já traz benefícios, como a melhora da glicemia (nível de açúcar no sangue), do diabetes e da hipertensão. Perdas superiores a 10% também contribuem para a melhora metabólica e a prevenção de doenças cardiovasculares. Perdas acima de 15% podem estar associadas à remissão do diabetes.
"O grande problema do diabetes é a resistência à insulina. Quando o paciente tem obesidade, as células que produzem insulina estão disfuncionais. Quando ele emagrece, a insulina trabalha mais fácil e funciona melhor, ou seja, diminui a glicemia", explica João Eduardo Nunes Salles, professor de endocrinologia e metabologia da Faculdade de Ciência Médicas da Santa Casa de São Paulo e endocrinologista da SBEM-SP (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia - regional São Paulo).
Segundo Salles, a perda de peso também melhora rapidamente qualquer problema relacionado ao sono, reduz os triglicérides, o processo inflamatório do tecido adiposo, melhora a mobilidade, diminui a dor nas articulações e aumenta a disposição para fazer atividade física. "Ou seja, perder peso em qualquer quantidade é totalmente válido", acrescenta o especialista.
De acordo com o endocrinologista, estabelecer altas metas, como emagrecer 30 kg, 35 kg, não é impossível, mas é difícil, e pode desmotivar a pessoa que muitas vezes nem inicia o processo de emagrecimento. "Quanto mais reforçarmos a ideia de que pequenas perdas de peso já trazem grandes benefícios à saúde como um todo, maior a chance de o indivíduo aderir ao compromisso de se cuidar".
Esse é um novo conceito que a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia e a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (ABESO) introduziram com o termo obesidade controlada, no qual perdas de peso entre 10% e 15% já são consideradas significativas, permitindo que o paciente seja reclassificado de obeso para alguém com obesidade controlada. Se o indivíduo mantiver o peso, não há a necessidade de perder todo o excesso, ou seja, ficar completamente magro.