'Como uma pessoa que se importa': podemos contar com IA para saúde mental?
"Ela te manda áudios, troca uma ideia. É como uma pessoa que se importa comigo", diz Eduardo*, 34, ao se referir à Serena. A "pessoa", na verdade, é uma inteligência artificial que conversa com ele pelo WhatsApp e o ajuda em questões de saúde mental.
O empresário recorreu à ferramenta após não se adaptar às consultas humanas. "Achei engessado. A psicóloga tinha horários, e eu sentia dificuldade de me abrir com estranhos. E os psicólogos querem encontrar a raiz do problema, não ver o agora, e pra mim não funcionava", conta.
No começo deste ano, ele descobriu a Serena, que oferece apoio psicológico de acordo com a necessidade do usuário. "Faço conforme tenho demanda e um tempinho. Uso como se fosse psicólogo de bolso", diz Eduardo. Como a inteligência artificial é treinada por especialistas, ele se sentiu mais seguro: "Dá uma segurança maior, porque não é um robô que pesquisou dados na internet."
Melhor ir com calma
Apesar de Eduardo ter trocado as consultas pela ferramenta, ela não é indicada para este fim —a recomendação é que seja apenas de uso complementar aos tratamentos tradicionais.
"De maneira nenhuma substitui a ação clínica cotidiana. IA é um suporte, literalmente um assistente que pode assumir eficiência de rastreio, mapeamento e escuta emergencial, mas não clínica", diz o psicólogo Rodrigo Costa de Oliveira, da unidade de psiquiatria do Huol/UFRN (Hospital Universitário Onofre Lopes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), da rede Ebserh.
Segundo Oliveira, a máquina não emula empatia nem é suficiente para substituir e ter a visão complexa do ser humano. "Ela pode descrever o que é consciente e inconsciente, mas não vai articular sob a lógica clínica, que considera passado, presente e futuro. A consciência maquinal não será humana."
O psiquiatra Rodrigo Barreto Huguet, psicoterapeuta cognitivo-comportamental e fundador do serviço de psiquiatria de ligação da Rede Mater Dei de Saúde, diz que as IA podem ser bem ou mal utilizadas, como qualquer outro procedimento em saúde. "O importante dessas ferramentas é que elas podem até dar direcionamento para o paciente, mas não podem dar diagnóstico nem tratamento. Para isso, precisa do médico."
A tecnologia também não pode servir como única rede de apoio —o contato com família e amigos é fundamental nos cuidados de saúde mental— e é preciso se atentar ao uso exagerado do celular toda vez que precisar de ajuda. "A dependência do uso de celular é patológica. A IA não pode ser fonte de dependência, você não pode achar que não consegue enfrentar [crises] sem ela", diz o psiquiatra Luís Guilherme Labinas.
Outro motivo para ir com calma nos benefícios de ferramentas do tipo é que o CFP (Conselho Federal de Psicologia) ainda está discutindo os impactos desse recurso. Em outubro, por exemplo, realizou um seminário para debater como a IA pode afetar a formação e o exercício profissional da psicologia, considerando desafios e possibilidades de uso.
"Os resultados desse diálogo vão subsidiar a constituição de um grupo de trabalho interno do conselho, cuja proposta é apresentar diretrizes sobre o papel e atribuições da psicologia no que se refere à temática —considerando aspectos éticos, científicos e do exercício de psicólogas e psicólogos", disse a entidade em nota a VivaBem.
Quem criou Serena?
O empreendedor Sávio Arruda fundou a startup Serena depois de uma experiência pessoal. Ele tinha acabado de ser dispensado de um trabalho com o qual estava empolgado, o que agravou seu transtorno de ansiedade generalizada.
Ao buscar ajuda na internet, deparou-se com outro universo. "Fui estudar o mercado de saúde mental e vi que era um problema grave, principalmente de acesso e para as classes D e E", disse.
Ele pensou que uma solução tecnológica poderia dar o apoio inicial que muitas pessoas precisam, com conteúdo e orientações pontuais, sem substituir o atendimento profissional. Em parceria com o psiquiatra Marco Abud, cujos conteúdos ajudam a treinar a IA, Serena foi anunciada em fevereiro deste ano e já atende mais de 5.000 pessoas.
A inteligência artificial foi treinada com base na terapia cognitivo-comportamental e em mais de 40 horas de aulas de Abud. São mais de 80 áudios em trilhas educativas sobre saúde mental. O chatbot também é reavaliado periodicamente por profissionais da área para garantir qualidade e precisão.
Como funciona
Ao entrar no site e solicitar uma conversa com a Serena, o usuário é direcionado ao WhatsApp. É possível fazer um teste gratuito com 15 créditos, sendo que cada um equivale a uma resposta ou um áudio educativo.
O serviço é por demanda, e a pessoa compra créditos conforme a necessidade. Há opções de 25 créditos (R$ 29), 50 créditos (R$ 49) e pagamento anual para uso ilimitado (R$ 99). Pessoas cadastradas no programa Bolsa Família têm acesso gratuito ao serviço.
Qualquer pessoa pode acessar a ferramenta. Arruda aconselha que ela seja usada como uma prevenção, porque dá suporte na organização de rotinas, tira dúvidas e se apresenta como uma escuta imparcial para quem tem dificuldade de se abrir com outras pessoas.
Há exercícios de respiração e aconselhamento. "Ela ajuda a desmistificar pensamentos negativos", afirma Arruda. A conversa pode ser por texto ou áudio e, notando necessidade, a pessoa é orientada a buscar serviço especializado.
A IA dispõe de testes de autoavaliação validados cientificamente. O usuário responde às perguntas e recebe um resultado não diagnóstico. A indicação é repetir o teste a cada duas semanas e, de acordo com a evolução, Serena pode indicar a busca por ajuda profissional.
Vantagem para profissionais e pacientes?
Apesar das críticas, Oliveira vê o uso de IA na psicologia de forma positiva —desde que usada de forma correta. Do lado dos profissionais, ele diz que a ferramenta pode acelerar e melhorar avaliações psicológicas, fazer correções e poupar tempo para construir laudos de forma mais precisa.
"É importante que exista normativa, constitucional, para evitar falseamento, uso indevido e criminoso. Mas a ferramenta em si pode ser bastante potente para produção de documentos e auxiliar na forma de rastreio", diz Oliveira.
Huguet vê o recurso como fonte de informações, mas reforça que não substitui o olhar profissional —e humano. "O diagnóstico é feito pelo contexto", diz. Por exemplo: na consulta médica, o exame de estado mental é fator importante para analisar o comportamento da pessoa, a expressão facial, a postura, se o pensamento é acelerado ou lento e se a história contada faz sentido. "A ferramenta pode trazer informações, mas não conhecimento, que é tirar conclusões a partir da informação e relacionar com contexto. Ela não substitui a consulta com médico", afirma.
Já o psiquiatra Labinas indica a Serena para os próprios pacientes, que voltam às consultas e seguem com o combo de tratamento, que pode incluir medicamentos, psicoterapia e exercícios físicos. Ele percebeu que, com a ferramenta, as pessoas têm novas perspectivas, geralmente mais positivas, sobre seus problemas, porque já refletiram sobre eles antes da consulta.
Na rede Ebserh há pesquisas para saber o quanto a IA pode melhorar o serviço de atenção básica e o encaminhamento na Raps (Rede de Atenção Psicossocial).
*Nome trocado a pedido do entrevistado
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