'Fiquei viciada em bets após tratar Parkinson'; remédio estimula vício?
Há dez anos, a enfermeira portuguesa Irina Pires, 43, que vive em Coimbra, sentiu as pernas pesadas e contrações involuntárias, que dificultavam seu caminhar e com o tempo afetaram a capacidade de dirigir. Ao investigar os sintomas, chegou ao diagnóstico de Parkinson precoce, forma da doença que se manifesta antes dos 40 anos e geralmente progride mais lentamente do que em idosos. Além das recomendações como fisioterapia e outros cuidados, o tratamento inclui o remédio levodopa.
O fármaco revolucionou o tratamento da doença nas últimas décadas, ajudando no controle de movimento e tremores, mas há uma informação na bula que chama atenção. Há relatos de pacientes com doença de Parkinson tratados com agonistas da dopamina que desenvolveram transtornos de controle de impulsos, como vício em jogos de azar. O levodopa não é um agonista da dopamina, mas por se tratar de um medicamento dopaminérgico, recomenda-se precaução.
Irina acredita que se enquadra na lista de pacientes que sofrem com esses transtornos. No último ano, afastou-se da família e entrou em estado de insolvência financeira, declarado pela Justiça de seu país.
Dependência em jogo e compulsão por bolsas
Foram nove anos fazendo o tratamento com a medicação, e os sintomas, como tremores e contrações, principalmente nas pernas, diminuíram. No entanto, Irina começou a apresentar mudanças no comportamento, trabalhando muito mais do que o habitual e transformando a confecção de malas que fazia por hobby em um segundo trabalho.
"Tinha comportamentos compulsivos, mas não danosos. Fiz cerca de 10 mil malas para vender e trabalhava como workaholic", conta Pires. O jogo surgiu ano passado, quando navegando pela internet se deparou com uma propaganda de bet.
Cliquei, apostei, ganhei e em seis meses arruinei minha vida pessoal e profissional. Quem joga e se torna viciado fica cego. Fiquei viciada em bets após tratar o Parkinson. Tinha comportamentos de uma viciada em substâncias químicas. Irina Pires
Sua família demorou a entender a dependência. Ela se afastou de seus pais, e o casamento de 23 anos chegou ao fim.
"Cheguei a ter pensamentos suicidas, mas nunca com planos estruturados. Na fase maior de desespero, no ano passado, contratei uma clínica e pedi para ficar internada. Nesse tempo, fiquei três meses sem ver meu filho", lembra.
As dívidas aumentaram e a justiça portuguesa declarou insolvência civil, quando o valor devido é superior ao valor total do seu património, rendimentos e bens.
Remédio pode fazer paciente ficar "viciado" em algo?
Além do que consta na bula do levodopa sobre os possíveis efeitos colaterais, um estudo publicado na revista científica JAMA Neurology em 2005 mostrou uma possível relação —não causal— entre o medicamento e o desenvolvimento de jogo patológico em pacientes com Parkinson.
Dos 11 pacientes estudados, sete não tinham interesse anterior por jogos de azar, mas começaram a apresentar comportamento compulsivo relacionado a apostas. A interrupção da medicação levou à reversão do comportamento em alguns casos, sugerindo uma ligação entre o remédio e o jogo patológico.
No Parkinson, podem surgir alterações do comportamento, como jogo patológico, compras compulsivas e hipersexualidade. Os mecanismos que causam estas alterações não estão ainda completamente esclarecidos, mas é sabido que a medicação dopaminérgica é uma das causas mais relevantes. Ana Morgadinho, médica de Irina e neurologista especialista em doenças do movimento no Hospital da Luz de Coimbra - Portugal
De acordo com Wuilker Knoner Campos, doutor em neurociências e presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, o levodopa é usado no tratamento do Parkinson para tentar repor os níveis de dopamina no cérebro em pacientes com a doença.
"O composto químico é exatamente o neurotransmissor que está faltando nos pacientes com Parkinson devido à morte celular dos neurônios que fabricam esta substância. Trata-se do neurotransmissor mais importante para o controle e coordenação dos movimentos do corpo. Por isso, quando falta, o paciente começa a tremer, ficar rígido e lento. Popularmente falando, o paciente com Parkinson toma levodopa para regular a marcha lenta", explica Campos.
Entretanto, a dopamina também está envolvida em um outro circuito neurológico: os sistemas de recompensa e prazer do cérebro. A substância é liberada no sistema neurológico de recompensa toda vez que se faz uma ação prazerosa e consequentemente causa uma excitação cerebral. Por isso a pessoa tem vontade de repetir de novo tal ação, para ter de novo essa sensação de bem-estar.
Cada vez que você repete essa ação prazerosa, mais dopamina no circuito, mais vontade de repetir aquela ação. Mas essa retroalimentação de dopamina pode entrar em uma espécie de loop infinito e começar a ficar patológico, porque agora o cérebro obriga seu dono a procurar novamente aquela ação do prazer, como jogar, fazer sexo e comprar. Wuilker Knoner Campos, doutor em neurociências e presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia
De acordo com Morgadinho, no caso da Irina, é provável que existia alguma predisposição individual para o aparecimento da perturbação do controle de impulsos. "Mas a união da doença com a utilização dos fármacos dopaminérgicos contribuíram para o aparecimento destas alterações do jogo patológico", diz.
A médica explica que após o diagnóstico dos transtornos, é essencial uma avaliação clínica cuidadosa e uma abordagem multidisciplinar. "A terapia tem que ser revista e é necessário reduzir doses ou suspender medicamentos de maior risco, como os dopaminérgicos. Se as alterações forem muito graves, pode ser necessário introduzir novos fármacos que ajudem a controlar a hiperestimulação dopaminérgica", diz.
No entanto, Morgadinho reforça a importância do uso do medicamento. "A levodopa é, até à data, o medicamento mais importante para o tratamento da doença de Parkinson e está associada a um risco muito mais baixo de causar este tipo de alteração do comportamento", esclarece.
Ajuda no Brasil e tratamento contínuo
Os três meses de internação em uma clínica psiquiátrica em Portugal não foram suficientes para que Irina conseguisse abandonar a dependência em apostas. "Queria jogar mais na esperança de compensar as perdas. Nunca fui a um cassino, era tudo online, o que facilitou a recaída", conta.
A porta de saída do comportamento foi aberta há nove meses, quando ela se juntou ao grupo Jogadores Anônimos, primeiramente no país em que vive e depois, de forma online, na sede brasileira, que segue uma metodologia semelhante à dos Alcoólicos Anônimos e guia os dependentes em um processo de passos.
O Brasil tem uma dinâmica diferente. A primeira pessoa que chega é mais importante, um comportamento com muito amor e com muito cuidado. Estou há 210 dias 'limpa' de jogos. Consegui controlar a compulsão seguindo os protocolos da neurologista, com ajuda do grupo e praticando esportes. Irina Pires
Com o avançar do tempo, Irina teve que fazer uma escolha: lidar com os gatilhos ou ver os sintomas do Parkinson aumentar. "A tomada de decisão é minha, ou diminuem a dose e aumentam os sintomas do Parkinson ou aprendo a controlar os gatilhos que geram as compulsões e prossigo o tratamento", afirma.
Apesar do sucesso de se manter afastada das apostas por quase oito meses, a enfermeira revela que ainda mantém cuidados que ela chama de "controle de estímulos externos". "Outra pessoa faz o meu controle bancário e as bets são bloqueadas no meu celular", diz.