'Ouvi que bebê não viveria nem 20 h e entrei em luto antes de ele nascer'
Bárbara Therrie
Colaboração para VivaBem
04/12/2024 05h30
A dona de casa Kassyany Eduarda Soares, 24, estava na reta final da gestação quando ouviu do médico que o filho tinha uma má formação no cérebro, na face e que não sobreviveria 20 horas após o nascimento. "Vivi um luto antes mesmo de o meu filho nascer."
Atualmente com 1 ano e oito meses, Ygor vive com menos de 30% de massa cerebral e passa a maior parte do tempo no colo porque é o único jeito que se sente seguro. A VivaBem, ela conta sua história.
'Ele se desenvolvia dentro do esperado'
"Engravidei do Ygor tomando anticoncepcional e só descobri a gestação com cinco meses e meio. Minha menstruação era irregular e não tive nenhum sintoma, mas um dia fui dormir e senti algo se mexendo na minha barriga, o que me fez desconfiar que poderia estar grávida. No dia seguinte, marquei um ultrassom e confirmei a suspeita.
Inicialmente, eu e meu marido ficamos assustados pelo tempo de gestação, mas felizes com a notícia. Descobrimos que teríamos outro menino —já éramos pais do Yuri, de 1 ano e quatro meses.
Durante o pré-natal, perdi o prazo do morfológico do primeiro trimestre, mas todos os ultrassons mostravam que o Ygor estava crescendo, ganhando peso e se desenvolvendo dentro do esperado.
Na 36ª semana, fiz um ultrassom e a médica disse: 'Seu bebê tem alguma coisa na cabeça, não sei dizer o que é, mas nunca vi isso na minha vida'.
Kassyany Eduarda Soares
Ela nos orientou a passar com outro ultrassonografista naquele mesmo dia. Fizemos um novo ultrassom e o médico disse que o Ygor tinha uma malformação no cérebro e na face grave e que a expectativa de vida era muito baixa.
Segundo ele, as imagens indicavam que meu filho não tinha nariz, o nariz era muito achatado ou o nariz poderia estar na testa. Também parecia que ele tinha os dois olhos bem próximos como se fosse um olho só, e lábio leporino [fissura labial].
Kassyany Eduarda Soares
O médico suspeitava que ele tinha uma doença chamada holoprosencefalia alombar, mas não fechou o diagnóstico. Ao ouvir isso, um buraco se abriu e caímos dentro, ficamos desnorteados, perdemos o rumo.
Após esse exame, ia dar continuidade ao pré-natal em um hospital, mas o obstetra disse que eu não precisava fazer mais nada, disse que o Ygor não sobreviveria 20 horas após o nascimento e nos orientou a reunir a família para se despedir no dia do parto.
Fiquei devastada, parecia que estava em um pesadelo, vivi um luto antes mesmo de o meu filho nascer.
Kassyany Eduarda Soares
'Senti alegria indescritível'
No dia 6 de março de 2023, Ygor nasceu de uma cesárea com 39 semanas de gestação. Em um primeiro momento, meu marido não teve coragem de olhar para ele, mas depois o trouxeram novamente e vimos que ele tinha o rosto normal e perfeito.
Senti uma alegria e uma sensação indescritível.
Eu e meu marido chegamos a pensar que os médicos haviam se enganado, mas o Ygor fez alguns exames e, de fato, foi constatado que ele tinha uma malformação cerebral.
Ele foi diagnosticado com esquizencefalia bilateral de lábio aberto, paralisia cerebral e tem menos de 30% de massa cerebral.
Sou a melhor mãe que posso e foi um processo aceitar e entender que Ygor tem uma doença rara, ninguém quer ter um filho com deficiência
Nos primeiros meses de vida não sentimos nada de muito diferente: Ygor mamava, chorava e dormia, mas com quatro meses percebemos os atrasos no desenvolvimento global motor e cognitivo. Ele não sustentava a cabeça, não rolava, não abria as mãozinhas, não pegava objetos, não dobrava as pernas.
Kassyany Eduarda Soares
Desde o início, nos empenhamos para buscar os tratamentos para ele ter o máximo de qualidade de vida. No começo, ele fez fisioterapia convencional, mas não teve evolução.
Busquei outras alternativas e achei uma clínica particular onde ele passou a fazer terapia ocupacional, integração sensorial e fisioterapia e fonoaudiologia no método Bobath.
Durante quatro meses fizemos campanhas, rifas, vaquinha online, recebemos doações para pagar o tratamento que custa R$ 18 mil por mês. Entramos com ação judicial e atualmente o estado de São Paulo arca com os custos.
Ygor faz as terapias cinco vezes por semana. Com um ano de tratamento, ele já conseguia sustentar a cabeça por alguns minutos, abrir e fechar as mãos, levar objetos na boca, dobrar as pernas, balbuciava um pouco.
Estávamos felizes com a evolução dele, mas um dia ele teve uma crise convulsiva que durou quatro minutos e perdeu tudo o que tinha conquistado. Ele foi diagnosticado com epilepsia. Segue fazendo as terapias, mas é um trabalho de formiguinha, precisamos ter fé, paciência e não desistir.
'Fico com Ygor no colo'
Ygor tem 1 ano e oito meses e pesa 12 quilos, mas é como se fosse um recém-nascido.
A principal dificuldade na rotina é que ele só se sente seguro no colo. Se eu o coloco no chão, sofá, tapete, berço, cama, no carrinho de passeio, ele chora. Já tentei usar canguru e deixá-lo em cadeirinha de descanso, mas o problema é que ele tomba a cabeça.
Ygor fica praticamente o tempo todo no meu colo quando está acordado, faço o que consigo com ele no colo, como cozinhar, dar banho no Yuri, arrumar as mochilas e lancheiras para a escola, lavar louça, recolher e colocar roupas para lavar.
É cansativo, sinto dores nos braços e na coluna, mas não tenho outra opção. Não tenho rede de apoio, Ygor e Yuri dependem de mim e do meu marido, mas como ele é jogador de futebol, viaja e se ausenta com frequência.
Atualmente quase não passeamos, porque é cansativo sair e carregá-lo no colo.
Outro desafio é dar atenção para o Yuri, que está com três anos, e explicar por que o irmão demanda tantos cuidados. Explico que ele tem um dodói na cabeça, ele entende do jeito dele e é muito carinhoso e amoroso com o irmão.
À tarde o Yuri vai para a escola enquanto vou às terapias com o Ygor, à noite eu e meu marido brincamos e interagimos com os dois.
Pelo que sabemos no Brasil há três crianças com esquizencefalia bilateral de lábio aberto, sendo o caso do Ygor o mais grave.
Meu filho não sustenta a cabeça, não rola, não senta, não anda e nem fala, mas está sempre sorrindo e enchendo nossa vida de alegria, força e esperança. Até hoje os médicos não sabem explicar como ele sobreviveu após o nascimento, Ygor é o nosso milagre.
Kassyany Eduarda Soares
O que é esquizencefalia
Esquizencefalia é uma rara anomalia congênita da camada mais nobre do cérebro, o chamado córtex cerebral, explica Rubens Wajnsztejn, neurologista infantil e professor regente da disciplina de neurologia infantil do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC.
O problema consiste em fendas atingindo toda a espessura das duas metades do cérebro, caracterizando uma malformação cerebral grave. A esquizencefalia pode ser de lábio aberto ou fechado e uni ou bilateral. Um paciente com esquizencefalia bilateral de lábio aberto, como é o caso do Yuri, tem uma fenda no cérebro devido à não formação do tecido cerebral. Esse espaço é preenchido por líquor, o líquido que banha o sistema nervoso. Pessoas com a doença têm redução da massa cerebral em graus variados, entre 20% e 40%, mas podem existir quadros mais graves.
A origem da esquizencefalia bilateral de lábio aberto está diretamente associada à isquemia cerebral no bebê, decorrente de algum problema circulatório da mãe. Existem ainda fatores genéticos, ambientais e defeitos na formação cerebral. A exposição a ambientes tóxicos e até mesmo infecções no útero materno podem desencadear o surgimento das fendas nos hemisférios cerebrais. As alterações hormonais, como o uso de anticoncepcional na gestação, não estão relacionadas à esquizencefalia a priori.
Quando a fenda é a do tipo bilateral, as consequências podem ser déficit intelectual e problemas motores comprometendo um ou dois lados do corpo. Pode haver atraso nas etapas de firmar o pescoço, sentar, engatinhar e andar, paralisia cerebral, rigidez muscular, epilepsia e, em alguns casos, hidrocefalia, o acúmulo anormal de líquor nas cavidades cerebrais.
A esquizencefalia de lábio aberto pode ainda estar associada a outras malformações congênitas que constituem outras síndromes, como alterações faciais, órgãos internos e membros, mas na maioria dos casos se restringe à malformação do cérebro.
Os exames de imagem na gestação podem detectar a anomalia no cérebro do bebê. Exames como a tomografia computadorizada ou ressonância magnética detalham com maior precisão a presença de fendas, entre outras anomalias.
Terapias de reabilitação melhoram o tônus muscular e propiciam ganhos na postura e nos movimentos do tronco e corpo. É recomendado estimular as funções mais nobres do cérebro, como linguagem, atenção e memória para os casos de déficit intelectual. É indicado o uso de medicamentos anticonvulsivantes para pacientes com epilepsia. Em casos de hidrocefalia, pode ser necessária uma cirurgia para drenagem do excesso do líquor.
A esquizencefalia é uma doença rara e afeta 1 a cada 100.000 nascidos vivos no Brasil, e 1,54 para 100.00 nascidos vivos no mundo. A doença não tem cura e a expectativa de vida é reduzida, mas isso depende de outros fatores, como a saúde física dos afetados.