Esquizofrenia e TOC podem aparecer ao mesmo tempo e desafiam médicos
João era considerado bem-sucedido: sempre teve excelente desempenho na escola, fez faculdade e chegou a trabalhar em multinacional. Mas há um ano começou a ter alterações de comportamento, terminou um relacionamento e voltou a morar com os pais.
Na casa, reclamava da fumaça do cigarro da vizinha. Certa noite, pediu ao pai para ligar para a polícia, pois estavam jogando fumaça dentro do quarto dele —o que não condizia com a realidade. Também sentia que os pais queriam lhe prejudicar.
Diagnosticado com psicose e em tratamento, o comportamento melhorou, mas permaneceram sintomas relacionados ao TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), como lavar as mãos diversas vezes. Também não queria que os pais chegassem perto, mas já não achava que iam lhe fazer mal.
A história baseada em caso clínico apresentado no 41º Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em outubro, representa um desafio para psiquiatras em seus consultórios: o esquizoTOC, ou transtorno esquizo-obsessivo. É quando esquizofrenia e TOC, ou seus sintomas, aparecem ao mesmo tempo.
Por que é um desafio?
A descrição dessa combinação é antiga e comum nos consultórios, mas faltam mais estudos para compreender todo o cenário, fazer o diagnóstico correto e indicar o melhor tratamento.
Embora o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e a CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças) tenham boa utilidade clínica, eles não ajudam na prática, segundo os médicos, pois oferecem pouca orientação para distinguir um transtorno do outro dentro do esquizoTOC. Para eles, não é possível encaixar a complexidade de cada paciente dentro de critérios e normas, que simplificam casos.
É mais uma mesma alteração que se manifesta de formas diferentes, com a mesma causa, do que duas coisas que por acaso acontecem na mesma pessoa. Ary Gadelha, psiquiatra e coordenador do Proesq (Programa de Esquizofrenia) da Escola Paulista de Medicina da Unifesp
A relação entre os transtornos
Correlação genética maior entre os dois do que a esquizofrenia tem com outros transtornos mentais. Estudo mostra, por exemplo, que pessoas com TOC têm risco elevado de desenvolver esquizofrenia e transtornos do espectro da esquizofrenia. Outro estudo indicou prevalência de 18,5% de TOC em pessoas com esquizofrenia e de 5,5% de sintomas do TOC.
Componente familiar. Estudos demonstram relação do TOC e da esquizofrenia entre parentes, que além da questão genética, é ambiental. Familiares com esquizofrenia têm mais parentes com TOC e vice-versa, apontou Marcelo Queiroz Hoexter, coordenador do Protoc (Programa Transtorno Obsessivo-Compulsivo), do Instituto de Psiquiatria da USP. "TOC em parentes de primeiro grau confere um risco relativo aumentado de duas a quatros vezes para esquizofrenia", diz Igor Studart de Lucena Feitosa, médico preceptor do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMUSP.
Transtornos compartilham circuitos cerebrais. Existe correlação em uma série de regiões e circuitos cerebrais que participam da apresentação clínica dos dois transtornos.
Tratamento é similar. Quadros de psicose são tratados com antipsicótico, mas muitas vezes são usados antidepressivos em fases agudas, quando há sintomas de humor, depressão e ansiedade. Já o TOC é tratado com antidepressivo, mas uma das estratégias para potencializar o tratamento é com antipsicótico.
Como diagnosticar
Diagnóstico começa com anamnese. É no momento da entrevista com o paciente que o profissional vai identificar toda a trajetória da pessoa e da condição que ela apresenta, desde quando os sintomas começaram, como evoluíram, o que aconteceu em paralelo, história de vida e momentos atuais, por exemplo.
Ao identificar sintomas obsessivos-compulsivos, é preciso diferenciá-los. Eles são característicos de TOC ou têm a ver com delírios que não se baseiam na realidade?
Intensidade dos sintomas importa e se são efeitos colaterais. É preciso saber a duração deles e o quanto causam prejuízo na rotina. Sinais de TOC podem ser, na verdade, um efeito de antipsicóticos que a pessoa já toma ou de abuso de substâncias. Gadelha explica que medicamentos como clozapina e risperidona, por exemplo, estão associados ao surgimento de sintomas de TOC.
De modo geral, pessoas com esquizoTOC apresentam:
Sintomas mais graves das duas condições, com apresentação clínica complexa;
Níveis mais elevados de ansiedade e depressão;
Maior prejuízo cognitivo;
Maior resistência ao tratamento;
Pior prognóstico.
Mas Hoexter observa que essas características se devem também ao pouco conhecimento. "A gente não sabe tratar bem esses pacientes. A gente evoluiu bem no tratamento da esquizofrenia e do TOC, mas infelizmente tem poucas novas estratégias terapêuticas", diz.
Situações de esquizoTOC
Studart apresenta três contextos para o transtorno esquizo-obsessivo aparecer:
- TOC com conversão ou progressão para esquizofrenia
Desde o final da década de 1950, pesquisadores já descreviam os sintomas de TOC como um primeiro sinal de quadros de psicose. Outros colocavam o TOC como fator protetor, para que a pessoa se mantivesse funcionando sem evoluir e "se desintegrar" na esquizofrenia. "Pacientes que evoluem para a psicose e começam com sintomas obsessivos parecem ter uma evolução um pouco pior", diz Gadelha.
O desafio aqui é identificar assertivamente a esquizofrenia, pois ela é inespecífica, ou seja, não tem um marcador único. Diferentes sintomas da psiquiatria podem aparecer, como alterações afetivas, sintomas alucinatórios, paranoides e negativos.
- TOC com baixo insight
O DSM-5 classifica a gravidade do TOC pelo conceito de insight:
Insight bom ou razoável: a pessoa reconhece que as crenças do TOC são definitivas, ou podem ou não ser verdadeiras, mas continua sofrendo com elas.
Baixo insight ou insight pobre: ela acredita que as crenças são provavelmente verdadeiras, mas não tem convicção. Geralmente, melhora com tratamento medicamentoso ou psicoterapia.
Insight ausente: em casos mais graves, ela está completamente convencida de que as crenças do transtorno são verdadeiras.
O baixo insight ocorre em 14% das pessoas com TOC e se manifesta de forma mais grave. "Elas têm menor funcionamento, maior gravidade do TOC e apresentam uma maior comorbidade com o transtorno esquizotípico, que é um transtorno do espectro da esquizofrenia que tem grande semelhança genética com os quadros de delírios e alucinações", diz Studart.
- Esquizofrenia com TOC ou sintomas obsessivos-compulsivos
Em pessoas com esquizofrenia, a prevalência de TOC é de 15%, e dos sintomas obsessivos-compulsivos é de 26%. Segundo Studart, a prevalência é mais alta na esquizofrenia já instalada do que nos estágios que antecedem o transtorno. "Isso sugere que o desenrolar da doença exerce um papel na manifestação obsessiva-compulsiva."
Quadros de esquizofrenia com TOC têm:
Mais sintomas depressivos, maior comprometimento no funcionamento social;
Alto conteúdo de agressividade;
Obsessões comuns, como contaminação.
O médico comenta que os sintomas obsessivos-compulsivos na esquizofrenia têm algumas características específicas, como baixa resistência, que é a incapacidade de ir contra o pensamento que causa a obsessão. "Via de regra, pacientes com TOC têm um link entre a obsessão e a compulsão. Eles conseguem explicar por que estão fazendo a compulsão, por mais estranha que seja. Os pacientes com esquizofrenia às vezes não conseguem fazer isso", diz.
Tratamento
O tratamento do esquizoTOC é mais desafiador, por depender do bom diagnóstico mencionado antes. "Na prática, a gente faz a melhor hipótese possível", diz Gadelha. Ou seja, a partir da avaliação detalhada do paciente, o profissional vai supor o que pode ser, testar uma conduta de tratamento e reavaliar o quadro. As estratégias medicamentosas continuam sendo antipsicóticos, antidepressivos, mas com importante atenção a interações medicamentosas e efeitos colaterais.
Junto, deve-se orientar a pessoa sobre sua condição, chamando atenção, por exemplo, para as repetições que ela não identifica, e conscientizar a família. A terapia cognitivo-comportamental também é uma aliada.
Por vezes, não tratar é uma opção. "Se o paciente tem algum sintoma residual que não interfere no dia a dia dele, diria que é uma iatrogenia [dano causado pelo médico] perseguir doses mais altas para ter pequeno benefício. Você tem que tomar cuidado com o custo-benefício do tratamento para aquela pessoa", diz Gadelha.
*A repórter viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatria