Ela perdeu 6 irmãos pela mesma doença: 'Minha mãe foi a que mais sofreu'
Quando Sheila Ventura Pereira nasceu, o teste do pezinho era adotado no Brasil havia três anos, mas ainda não identificava doença falciforme —que foi incluída em 2001. Ela recebeu o diagnóstico aos 7 anos junto com o pai e a irmã mais nova.
Sheila perdeu seis irmãos devido à doença, e o único vivo hoje tem o gene com mutação. Aos 45 anos, ela atua como coordenadora de da Aprofe, uma associação para pessoas com a doença —a intenção é que não falte a outras pessoas o que lhe faltou no passado: acesso a informações e tratamento adequado. A VivaBem, Sheila conta sua história.
'Um impacto grande'
"Me lembro de sentir muitas dores e ficar muito tempo internada. Fui reprovada duas vezes por faltas na escola, mas os professores não entendiam e minha mãe, que tinha pouco estudo, não sabia explicar. Ela já tinha perdido cinco filhos antes, o mais novo com 15 dias e o mais velho com 5 anos.
Assim que fui diagnosticada, meu pai, aos 39, e minha irmã, aos 2, também foram. Minha mãe tinha o gene. Antes dos 7 anos, eu tinha sido tratada como tendo reumatismo. Quando comecei o tratamento certo, tinha dificuldade, porque poucos médicos conheciam a doença e a gente tinha de ir para outra cidade fazer o tratamento.
Foi um impacto grande, a gente sofria demais. A doença torna o paciente queixoso, muitas vezes visto como alguém que quer chamar atenção. Quem sofreu mais foi minha mãe. A família dizia que a gente estava doente porque ela não cuidava direito, e ela carregava a culpa do óbito dos filhos.
'Perguntavam se tinha câncer'
Quase fui expulsa da escola porque tinha os olhos amarelados. Um dia, a professora me tirou da sala e levou para a diretora, que disse que eu estava colocando a escola em risco, que minha mãe era irresponsável. Eu tinha 12 anos.
Ela teve de pegar meus exames e levar para a escola, mas isso se espalhou, e as outras mães pediam para que não deixassem seus filhos perto de mim.
Fui desligada da educação física, minha carteira foi para o fundo da sala, e eu tinha dificuldade de acompanhar as aulas, porque não enxergava a lousa. Recebi apelidos de "olho de coruja" e "sanguessuga", porque tinha de faltar para fazer transfusão de sangue.
Eu era diferente das outras meninas, era desnutrida aos olhos da população, não tinha seios, menstruei com 20 anos. Isso me causava muitas questões psicológicas, principalmente saindo com a turma de adolescentes, que perguntava se eu tinha câncer ou aids.
As coisas pioraram quando minha mãe faleceu aos 36 anos depois de quatro AVCs, faltando 15 dias para eu completar 15 anos. E os médicos diziam que eu não passaria dos 15. Minha irmã, que foi diagnosticada comigo, não aceitava a doença. Ela seguiu o tratamento enquanto pude levá-la ao hospital, mas com a maioridade, abandonou. Quando voltou, descobriu insuficiência renal grave aos 23 e morreu aos 29.
Sem tratamento, com sequelas
Dois meses após a morte da minha mãe, meu pai arrumou uma madrasta com dois filhos, que me colocou em casa de família para trabalhar como babá, mas acabei fazendo faxina também. Abandonei o tratamento dos 15 aos 19 anos e parei os estudos.
Sentia muitas dores no quadril, mas dizia que era mau jeito e cansaço por carregar peso.
Fui me arrastando até os 19 anos, quando voltei a estudar e tive uma crise na sala de aula que me levou ao pronto-socorro. Ali, descobri que tinha necrose óssea, que tinha começado aos 13.
Comecei a romaria e voltei a fazer tratamento, com internações severas. Não sabia o que acontecia com meu corpo, a ponto de tentar suicídio. Fui encaminhada para psicólogo, mas não se falava de depressão ou ansiedade: você era louco ou louco.
'Descobri gravidez com seis meses'
Engravidei com 24 anos, mas a gestação foi descoberta aos seis meses e meio, e meu filho nasceu com oito meses e cinco dias. Quando perdi a virgindade, não usei preservativo, mas achei que estava segura porque tomava anticoncepcional e, na época, falavam que mulheres com doença falciforme não engravidavam.
Eu tinha um corpo diferente, pesava 43 kg e meu abdome sempre foi inchado, desde a infância, então para mim não mudou nada. Um dia, senti uma dor fulminante e, no pronto-socorro, descobriram que eu estava com pneumonia grave. Nos exames, viram que eu estava grávida.
Foi uma gestação de alto risco, tive síndrome de Hellp, que é a forma mais grave de pré-eclâmpsia, e tive de receber várias bolsas de sangue. Fiquei quase dois meses hospitalizada até o parto e só conheci meu filho depois de sete dias.
Com o tempo, aprendi a lidar com a doença, saber cada sinal do corpo e estar preparada para as crises. Hoje ainda tenho dificuldade para acessar tratamento, porque preciso passar em oftalmologista (tenho glaucoma), ortopedista, cardiologista, pneumologista e demora bastante o fluxo de vagas para ser encaminhado."
Entenda a doença falciforme
É uma condição genética e hereditária. É caracterizada pela mutação no gene que produz a hemoglobina, proteína contida nas hemácias. Estas são as células vermelhas do sangue que transportam o oxigênio para todas as partes do organismo.
O gene alterado pode ser transmitido pelo pai ou pela mãe. Os filhos podem nascer com a doença ou traço falciforme, em que porta o gene, mas não desenvolve a condição. O diagnóstico é feito pelo teste do pezinho ou exame eletroforese de hemoglobina.
A mutação altera o formato das hemácias. Elas ficam alongadas e rígidas, parecendo uma foice, o que dificulta a passagem pelos vasos sanguíneos. Com isso, eles podem entupir, impedindo a oxigenação dos tecidos. O processo acontece tanto nas veias quantos nos microvasos.
Os órgãos vão sofrendo com a falta de oxigênio e entram em falência. É uma doença sistêmica, atinge todos os órgãos.
Marimilia Pita, hematologista-pediátrica e fundadora da ONG Lua Vermelha, que dá visibilidade à doença falciforme
A doença é mais comum em pessoas negras, mas pode atingir todas as populações. A mutação no gene teve origem na África, se espalhou pelo mundo e, com a miscigenação, é observada em outros grupos.
No Brasil, afeta 8% da população negra. Entre 2014 e 2023, 74,3% das mortes por doença falciforme ocorreram entre pessoas pardas ou negras. "O paciente é altamente estigmatizado, a doença é tida como de preto e pobre", afirma Pita.
O Ministério da Saúde alerta para a herança de desigualdade social que envolve esse grupo. A condição de vida delas e o tipo de trabalho que exercem, por exemplo, implicam no acesso, adesão e êxito do tratamento. "Se o modo de cuidar reduz o usuário à doença, pode-se reforçar, por meio dessa prática, a discriminação racial e a desigualdade social", diz em documento sobre a doença.
O principal sintoma é a anemia, mas há outras complicações devido à falta de oxigenação. Podem acontecer trombos, crises de dor intensa, quadro que simula pneumonia, priapismo (ereção desconfortável e dolorosa), retinopatia e dano renal. O sintoma mais grave é no cérebro, que leva ao AVC e pode deixar sequelas.
Tratamento
Após o diagnóstico, a pessoa é encaminhada a centros de referência para se tratar. O medicamento hidroxiureia, fornecido pelo SUS, diminui a obstrução dos vasos sanguíneos e, consequentemente, os sintomas de forma geral. Ele deixa as hemácias mais resistentes à destruição e melhora a oxigenação. Pode ser usado a partir dos nove meses de idade.
De forma preventiva, há prescrição de antibióticos. "A estratégia é para evitar infecções, que é a principal causa de mortalidade", diz Cilmara Kuwahara, responsável pelo Serviço de Transplante de Medula Óssea do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba. Junto, é preciso se atentar às vacinas especiais, disponíveis nos Centros de Referência para Imunobiológicos Especiais.
Transplante de medula óssea é chance de cura. Mas o procedimento só pode ser feito com doador familiar, principalmente irmãos, que não tenham a doença ou o traço falciforme. "É indicado para pacientes com histórico mais grave de doença, que tenham tido algumas complicações, como AVC prévio, necrose de mais de uma articulação, dificuldade transfusional ou crise vaso-oclusivas graves", explica a médica.
Cuidado esbarra em desafios do sistema. O acesso a medicações, transfusões de sangue específicas e consultas com especialistas são a maior dificuldade devido à desigualdade no Brasil. Para o futuro, novos medicamentos têm sido estudados, inclusive terapia gênica.