Ela ouviu que lipedema era 'moda' e quase fez bariátrica desnecessária
A chef de cozinha Giovanna Romboli Augusto, 36, passou muitos anos sem entender o aumento de peso que tinha, sendo que comia pouco, fazia dietas e exercícios físicos.
Com dores frequentes nas pernas e inchaço, consultou quatro médicos, teve indicação de bariátrica e só não fez a cirurgia porque o plano de saúde negou. Até que em novembro do ano passado recebeu o diagnóstico de lipedema. A VivaBem, ela conta como foi a jornada.
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'Não perdia nem um quilo sequer'
"Desde nova, sempre estranhei as pernas da minha mãe e da minha avó. Achava que era genética, porque todo mundo da minha família sempre foi grande e fofinho, e eu também.
Quando tinha 15 anos, viajei com minha irmã para a praia e lá senti minhas pernas muito inchadas. Na época, eu tomava um medicamento para suspender a menstruação nesses momentos de viagem, porque eu sentia muita cólica.
Eu falava para minha mãe que sentia meu corpo estranho, mas ela dizia que era porque eu estava passando de mocinha para mulher, por causa da menstruação. Depois que tomei esse remédio, percebi que deu um salto no meu peso, comecei a engordar e inchar. Mas eu sempre comi pouco. Hoje, comparando, como menos do que meu sobrinho de 8 anos.
Meu peso foi aumentando e com 18 anos comecei a tomar anticoncepcional. Sempre fazia dieta, mas sem sucesso. O quadril e as pernas, cada vez maiores.
Eu não conseguia entender de onde vinha todo aquele peso. Sempre me questionava como podia engordar tanto comendo tão pouco, não achava normal aquilo. Eu fazia várias dietas e não perdia nem um quilo sequer.
Sou chef de cozinha, passo muitas horas por dia em pé e, como comecei a sentir muita dor nas pernas, fui a alguns médicos vasculares. Eles diziam que eu precisava emagrecer. Fui em várias nutricionistas e não tive sucesso.
Em 2020, conversei com minha médica e parei de tomar a pílula, porque ela falou que poderia ser isso, muito hormônio estaria me engordando. Mas piorou horrores: engordei ainda mais e sentia mais dor nas pernas.
Achava que tinha alguma coisa muito errada comigo e continuava tentando dieta, uma luta constante. Em janeiro do ano passado, comecei a fazer atividade física para tentar perder peso: fazia duas horas por dia de academia, ficava uma hora na esteira, mas depois ficava travada, não conseguia andar, porque estava inflamada e não sabia.
'Quase fiz bariátrica'
Um dia, uma amiga que é massagista perguntou se eu sabia o que era lipedema. Eu nunca tinha ouvido falar. Quando vi fotos na internet, lembrei das pernas da minha mãe e da minha avó.
Aquilo começou a me doer muito, porque eu via e me identificava, mas não era possível que tivesse essa doença. Mas comecei a investigar porque não estava aguentando de dor nas pernas e tinha muitas varizes.
Fui ao primeiro médico, que falou que eu estava com sobrepeso. Expliquei que já tinha feito reeducação alimentar, então ele perguntou se eu não pensava em fazer bariátrica. Nunca tinha pensado, porque como muito pouco, mas ele dizia que só bariátrica ia resolver.
Falei pra ele que tinha pesquisado sobre lipedema, perguntei se poderia ser e ele falou que era 'coisa da moda', que não tinha nada a ver, que não existia e que eu precisava perder peso.
Ele me indicou uma médica para eu fazer a bariátrica, que também falou que meu caso era excesso de peso e que a cirurgia ia resolver. Ela me deu todo o encaminhamento, cheguei a fazer exames, mas meu convênio negou e não consegui fazer.
Fui em outro vascular, falei do lipedema e ele também achava que eu não tinha. Busquei outra profissional e com essa não falei nada de lipedema, mas, depois de me examinar, ela perguntou se eu já tinha ouvido falar da doença. Aí caiu a ficha, e as lágrimas escorreram.
Ela disse que o primeiro passo era operar as varizes, mas fiquei na dúvida e decidi consultar um especialista. Achei um pelo convênio, mas que também sugeriu a bariátrica antes de cuidar do lipedema e depois a cirurgia de varizes. Na época, eu estava com 118 kg. Também não senti confiança nele.
'Outra pessoa'
Então, encontrei um médico que me passou segurança. Na consulta, ele me examinou, explicou o que era a doença, como é o tratamento e pediu exames para depois ver como seria a conduta.
No retorno, vimos o grau do lipedema e a desproporção de gordura no corpo. Ele passou medicamentos e indicou atividade física, no começo, sem impacto.
Comecei o tratamento, tive acompanhamento de nutricionista e fui melhorando, desinflamando e perdendo peso. Depois, fiz duas cirurgias de varizes e sempre uso meias de compressão.
Agora, estou me preparando para fazer a cirurgia do lipedema (lipoaspiração), mas infelizmente hoje a minha realidade não condiz, porque é muito cara. Seria em torno de R$ 80 mil ou mais por cirurgia.
Mas sou completamente outra pessoa. Hoje, estou pesando 81 kg, e a qualidade de vida é outra: tenho muito mais disposição, não tenho muita dor, cãibra e nem aquele cansaço e dor muscular que tinha."
Lipedema foi deixado de lado
O lipedema é caracterizado pelo acúmulo desproporcional de gordura no corpo. A doença foi descrita primeiro em 1940 e, 11 anos depois, o segundo artigo sobre apresentou os sintomas, as partes do corpo mais afetadas e apontou a resistência dessa gordura a dieta e exercícios. Mas a inclusão dela na CID (Classificação Internacional de Doenças) só ocorreu em 2022.
A demora no reconhecimento da doença é um dos desafios para o diagnóstico correto e precoce. "Ela foi deixada de lado por muito tempo, e a maioria dos médicos se formou sem que o lipedema participasse do processo de aprendizado", diz o cirurgião vascular e endovascular Vitor Cervantes Gornati, que acompanha Giovanna.
Outra barreira é a escassez de médicos especializados. Com isso, a pessoa consulta diferentes profissionais que não conseguem identificar a condição, como ocorreu com Giovanna. Algumas especialidades que podem reconhecer o lipedema, desde que o conheçam, são: cirurgiões vasculares ou ortopédicos, endocrinologistas, reumatologistas e fisioterapeutas. São profissionais com habilitação para diferenciar se o inchaço é do lipedema ou de outras condições.
O diagnóstico é essencialmente clínico, mas alguns exames podem ser solicitados. Primeiro, é feita uma conversa detalhada com a pessoa para entender o histórico e sintomas. Analisar a textura da pele, observar nódulos de gordura e assimetria corporal é padrão também. Exames complementares incluem ultrassom com doppler e densitometria corporal, que avaliam vasos sanguíneos e proporção de gordura.
O tratamento clínico visa reduzir a quantidade de gordura, diminuindo a inflamação e os sintomas. "A gente muda a dieta e pede para fazer exercício físico. Mas se a pessoa tem dor ou dependendo do formato da perna, tende a indicar atividade sem impacto. Depois, consegue progredir", diz Gornati.
Fortalecimento é indicado para proteger articulações. Um pequeno estudo com 44 mulheres —metade com lipedema e metade com obesidade— mostrou que aquelas com o acúmulo anormal de gordura tinham 30% menos força nos quadríceps do que aquelas com excesso de peso. "Os músculos também melhoram o metabolismo, o aspecto da pele e ajudam na função física", diz o médico.
Cirurgia é possível, mas não a primeira opção. "É indicada quando os resultados do tratamento clínico não são suficientes para reduzir a desproporção de gordura ou os sintomas. E, mesmo com cirurgia, o tratamento clínico precisa ser feito", diz o cirurgião vascular Mauro Figueiredo Andrade, da SBACV (Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular), regional São Paulo.
Existe associação entre varizes e lipedema. Não é uma relação de causa e efeito, e a prevalência é similar à de pessoas sem lipedema. "As varizes podem aumentar a inflamação nas pernas, o que piora o lipedema. Podem ser tratadas antes ou depois da cirurgia de lipedema ou junto", diz Gornati.
Compressão nas pernas ajuda a diminuir inchaço e dores. O uso de meias, bermudas e leggings compressivas aliviam o peso na região e fazem parte do tratamento.
Bariátrica não trata lipedema. O procedimento é indicado para pessoas com IMC acima de 35 que tenham alguma doença metabólica associada, como diabetes. Sem essas condições, a pessoa com lipedema não teria o perfil para fazer a cirurgia.