Quando o crush por personagens ou famosos ultrapassa o limite do saudável?
Colaboração para VivaBem
15/01/2025 05h30
É difícil encontrar alguém que tenha passado a vida —e principalmente a adolescência— sem desenvolver afeto por alguma celebridade ou personagem fictício de séries, livros e filmes.
Esse tipo de crush ou admiração intensa por alguém que não existe ou que, pelo menos, não faz parte da nossa vida real tem um nome específico na psicologia: "relações parassociais".
Relacionadas
O termo descreve a sensação de ter uma amizade ou conexão emocional com alguém que nunca conhecemos pessoalmente ou com quem nunca interagimos diretamente —e essa experiência pode trazer tanto efeitos positivos quanto negativos.
O sentimento, explica o psicólogo Claudione Cavalcante de Lima, é criado a partir de um laço emocional, que é gerado de forma unilateral, e vem da necessidade humana de conexão.
"Cria-se uma percepção de proximidade inexistente com celebridades, pessoas em evidência ou mesmos personagens fictícios. Há também a impressão de que se conhece intimamente uma pessoa midiática, e que há alguma relação especial com ela. Isso é reforçado pela exposição intensa que temos na internet", descreve Lima, que é especialista em neurociências e comportamento e coordenador do Serviço de Psicologia no Hospital Regional do Sertão Central, que fica em Quixeramobim (CE).
O que está por trás das conexões platônicas
A psicóloga e pesquisadora da USP Deborah Klajnman aponta que as relações parassociais podem ser compreendidas pelo conceito de identificação.
"Freud explica a identificação como a mais antiga forma de ligação de uma pessoa com outra, e ainda, como um processo pelo qual o indivíduo introjeta aspectos de outra pessoa."
Segundo a especialista, quando assistimos a uma série ou seguimos a vida de uma celebridade, projetamos nossos próprios desejos, valores e conflitos nessas figuras, tornando-as parte do nosso mundo interno.
Além disso, ocupam um papel do 'ideal', um modelo com o qual nos comparamos e, por vezes, aspiramos nos parecer. Isso ocorre especialmente porque elas são apresentadas de forma idealizada, despertando nosso desejo, nem sempre consciente, de preenchimento e pertencimento. Deborah Klajnman, psicóloga, especialista em clínica psicanalítica pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ e professora da Faculdade Sírio-Libanês (SP)
Klajnman lista fatores psíquicos que contribuem para a criação das relações parassociais: a falta de vínculos 'reais', a dificuldade em encarar uma realidade difícil, a busca por reconhecimento e validação por meio de outros e o contexto cultural, já que a constante exposição a influenciadores e personagens idealizados amplifica nossa tendência a formar esses vínculos.
As relações parassociais, explicam os especialistas, são mais comuns durante a juventude, quando crianças e adolescentes procuram figuras nas quais possam se espelhar e muitas vezes sentem-se solitários em suas vidas reais. Nesse período, é comum que se entreguem à fantasia e vivenciem essas conexões com maior intensidade, projetando sonhos e ideais nessas figuras.
"Há um ponto delicado relacionado à quantidade e à intensidade dessa identificação. Gostar de alguém e seguir com uma vida normal não é problemático. A questão surge quando, por exemplo, deixamos de socializar, de conviver com amigos, e passamos a focar exclusivamente nessa pessoa ou a idealizar uma relação com ela", adverte a psiquiatra Danielle Admoni, que atua no Hospital da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e é especialista em infância e adolescência.
Os benefícios e os riscos envolvidos
Na avaliação do psicólogo Claudione Cavalcante de Lima, conexões platônicas podem trazer benefícios ao servirem como forma de escape em momentos de estresse, aliviarem a solidão temporária ou reduzirem a sensação de isolamento.
"Essas relações podem resultar em melhorias no humor e aliviar alguns sinais de ansiedade, graças ao simbolismo e conforto que oferecem. O sentimento de pertencimento a grupos, como fã-clubes, também apresenta aspectos positivos." A inspiração proporcionada por essas figuras é outro ponto favorável.
"Quantos, por exemplo, não criaram conexão e se motivaram com histórias de personalidades como Ronaldo, Senna e Marília Mendonça, ou até de personagens como Rocky, Frodo, Bruce Wayne, Meredith Grey ou Daenerys Targaryen?".
A psicóloga Deborah Klajnman acrescenta que as relações parassociais podem estimular experiências psíquicas significativas: "Elas facilitam a exploração de sentimentos complexos através de outras narrativas e histórias de vida, além de promoverem um senso de pertencimento. No caso de adolescentes e jovens, o compartilhamento de interesses por figuras públicas ou personagens pode fortalecer vínculos sociais reais."
Mas os especialistas alertam que o sinal de alerta deve ser ligado quando as conexões reais começam a ser deixadas de lado.
"Quando a identificação ultrapassa os limites, a pessoa começa a comparar todos os outros com aquela figura idealizada e se distancia das relações reais. A adolescência é um período em que esse processo é mais vulnerável, e é essencial entender os limites dessa idealização", diz Admoni.
Outro risco é comparar a autoimagem à da pessoa com quem se criou a relação parassocial.
"Essas relações podem tanto elevar quanto prejudicar a autoestima, isto é o amor a si próprio. Se o sujeito sente que se aproxima dos ideais representados por essas figuras, isso pode trazer uma sensação de realização. No entanto, quando essas figuras parecem inatingíveis, podem intensificar sentimentos de inadequação", reflete Klajnman.
Lima complementa que é fundamental estar atento à construção de uma dependência emocional em relação à figura admirada, que pode, em casos mais extremos, levar a situações como depressão ou até mesmo comportamentos de stalking.
"A obsessão, o hiperfoco na vida daquela figura símbolo. A pessoa só fala daquela figura, procura parecer-se com ela, negando sua própria identidade. Verbaliza de forma desconectada da realidade, como se houvesse uma intimidade com aquela persona. Há exagero em várias nuances."
Segundo ele, a intervenção deve começar pela identificação desses sinais. "O objetivo é trazer o sujeito à consciência da realidade, auxiliando na construção de vínculos reais, estimulando a participação em atividades comunitárias e reduzindo o isolamento e a virtualização da vida."
Como evitar que as relações parassociais sejam prejudiciais
O caminho, segundo os especialistas é manter seus relacionamentos da vida real e não deixar que o sentimento platônico interfira neles.
"Conexões da vida cotidiana permitem ao sujeito experimentar reciprocidade, algo ausente nas relações ditas parassociais. Ao fortalecer vínculos 'reais', a necessidade de buscar completude no outro midiático pode diminuir, promovendo um equilíbrio psíquico mais saudável", diz Deborah Klajnman.
No caso de crianças e adolescentes, os pais têm um papel essencial. "Pais precisam estar presentes na vida dos filhos, monitorando suas interações nas redes sociais e os comportamentos das personalidades que seguem. Ao orientar crianças e adolescentes, é importante entender o que pode estar faltando em sua vida, o que os leva a buscar referências imaginárias e distantes", orienta o psicólogo do Hospital Regional do Sertão Central.
A psiquiatra Danielle Admoni aponta, por fim, que é essencial orientar os jovens, que tendem a idealizar figuras públicas, muitas vezes sem perceber que essas pessoas também enfrentam dificuldades.
"A imagem exibida nas redes sociais é apenas um recorte, distante da complexidade real, o que pode levar a frustrações e comparações negativas. É importante explicar que ninguém vive uma vida perfeita. Desde cedo, os pais devem construir uma relação de confiança com os filhos, para que, na adolescência, eles se sintam à vontade para buscar orientação. Com esse suporte, os jovens desenvolvem um senso crítico e questionam as informações que recebem."