'Consigo urinar em pé e ter ereção': homem trans faz cirurgia inovadora

Leonardo* nasceu biologicamente mulher, mas tinha características físicas masculinas, como barba e voz grossa. "Não era só uma questão psicológica."

Aos 17 anos, ele iniciou sua transição de gênero e aos 27 foi o primeiro paciente trans a ser submetido a uma técnica inovadora para reconstrução peniana realizada pelo SUS. Solteiro, Leonardo se diz confiante e afirma que nenhum outro homem o intimida mais. A seguir, ele conta a história dele:

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"Desde criança me interessava pelo universo masculino, gostava de brincar de bola e carrinho e tinha mais afinidade com os meninos. Minha mãe me vestia com saias e vestidos, mas à medida que fui crescendo e escolhendo as minhas próprias roupas, preferia usar bermudas, calças e ficar sem camisa.

Por volta dos 12 anos, comecei a desenvolver características masculinas, tinha muitos pelos, barba, bigode, fazia depilação a laser e não menstruava. Minha mãe me levou a uma endocrinologista para investigar o motivo dessas alterações, fiz alguns exames e constatou-se que tinha baixos níveis de progesterona e altos níveis de testosterona. Durante o tratamento tomei diferentes tipos de anticoncepcional e consegui menstruar durante um ano.

Nasci menina, mas me sentia menino, e não era só uma questão psicológica, minha aparência masculina gerava comentários. Na escola, alguns colegas me chamavam de 'maria homem' e 'sapatão'. Outros me perguntavam porque eu era daquele jeito, mas não sabia.

Me sentia inferior por ter um aspecto físico ridicularizado, queria me encaixar em um padrão. Não imaginava que um dia poderia me tornar o homem que sempre fui, então queria minimamente ser a mulher que a sociedade queria que eu fosse. Ser identificada como mulher, mas ter o corpo e pensamentos de homem era uma anomalia para mim.

"Médica suspeitou que eu fosse intersexo"

Uma outra coisa diferente no meu corpo é que o meu clitóris era muito grande, tinha um tamanho anormal.

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Mostrei pra minha mãe, ela ficou espantada e me levou a outra endocrinologista. A médica suspeitou que eu fosse hermafrodita [esse termo não é mais usado, hoje em dia se diz 'intersexo].

Fiz diversos exames, mas não descobriram a causa dessas alterações no meu corpo, nenhum diagnóstico foi fechado. Segundo a médica, teria que fazer reposição hormonal com progesterona para sempre, mas não aceitei.

Nessa época comecei a pesquisar para entender porque era diferente e descobri o universo dos homens e das mulheres trans. Procurei alguns médicos particulares que me auxiliassem na transição, mas não achei ninguém.

Fui a um local que atendia pessoas intersexo, mas me disseram que eu só poderia fazer o acompanhamento lá se retirasse o útero. Naquele momento não estava preparado, achei uma conduta radical e passei a fazer a minha transição sozinho e de forma gradativa.

Parei de tomar anticoncepcional, tomava testosterona por conta própria, deixei a barba crescer, usava roupas masculinas e mantinha o cabelo curto e preso.

Durante esse processo, soube de um ambulatório que atende pessoas trans e passei a fazer acompanhamento com um endocrinologista. Comentei com uma ginecologista de lá que me incomodava ter uma vagina e que sentia vergonha quando tinha relação sexual. Sempre me relacionei sexualmente apenas com mulheres.

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A médica me indicou o doutor Ubirajara, cirurgião especialista em reconstrução genital. Conversei com ele, disse que tinha o desejo de ter um pênis, mas meu medo era fazer a cirurgia e perder a sensibilidade na genitália.

Ele me apresentou os métodos tradicionais e comentou que tinha criado uma técnica inovadora de TCM (total corporal mobilization) para reconstrução peniana [saiba mais no fim deste texto].

Em 2022, fui o primeiro paciente trans a ser submetido à TCM para reconstrução peniana pelo SUS, na UFBA (Universidade Federal da Bahia).

Na primeira etapa, foi feita a construção do pênis utilizando a técnica TCM, a reconstrução inicial da uretra com tecido da mucosa da boca e a criação do escroto. Em 2023, fiz a segunda etapa, a uretra foi concluída, a vagina foi fechada e o útero foi retirado por uma equipe de ginecologia. Este ano vou fazer a terceira e última etapa que será a implantação das próteses nos testículos.

As cirurgias foram um sucesso e superaram as expectativas. Fiquei muito feliz e satisfeito com o resultado. Minha genitália ficou com a aparência de um micropênis, mas a maior vantagem ao utilizar essa nova técnica, é que o falo ficou um pouco maior, possibilitando a penetração, algo que geralmente não ocorre nos métodos tradicionais de reconstrução peniana. Além disso, minha sensibilidade aumentou, tenho ereção e urino em pé.

Na época, minha namorada me apoiou e ter relação sexual com o meu pênis foi um momento de aprendizado e descobertas para nós dois. Hoje em dia estou solteiro, mais confiante, tenho uma boa autoestima e nenhum outro homem me intimida mais. Se levar um fora de uma menina, não me sinto inseguro, sei que tenho minhas qualidades e defeitos.

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Quem não me conhece antes da transição, acha que sou um homem cisgênero. No meu trabalho, por exemplo, ninguém sabe de nada.

Geralmente, quando começo a me relacionar com uma mulher, conto que sou um homens trans e que fiz a cirurgia genital afirmativa de gênero. Acho importante ter essa transparência para a pessoa ter a liberdade de escolher se deseja continuar no relacionamento ou não.

Ainda não encontrei a mulher certa, mas, quando encontrar, tenho o desejo de me casar, ter filhos e formar a minha família."

O que é a técnica TCM?

A TCM (total corporal mobilization) surgiu em 2019 para reconstrução peniana em um menino que perdeu o órgão após um ataque de cão. Até então, as técnicas disponíveis não permitiam trazer os corpos cavernosos para a superfície de forma funcional. A TCM foi criada para resolver esse problema e, desde então, já foi realizada em cerca de dez pacientes.

Como funciona a técnica? A TCM mobiliza os corpos cavernosos, estruturas responsáveis pela ereção, que normalmente estão fixadas ao osso do períneo. O procedimento os desloca para a superfície, tornando o pênis mais visível e funcional. Um pequeno segmento ósseo é preservado para garantir a estabilidade da ereção. A cirurgia inclui deslocamento do corpo cavernoso, remoção do osso de fixação, refixação na arcada púbica e enxerto de pele. O curativo permanece por sete dias.

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Para quem é indicada? A técnica é voltada para homens trans, pacientes com micropênis ou que sofreram amputação peniana devido a câncer ou acidentes.

Diferenças em relação a outras técnicas. A TCM permite um ganho maior no tamanho do pênis, diferente da metoidioplastia e da faloplastia, que mantêm os corpos cavernosos fixos ao osso pélvico, limitando a extensão do órgão. Além disso, preserva a inervação e irrigação originais, garantindo ereção funcional e estabilidade durante a penetração.

Riscos e critérios para a cirurgia. Os riscos incluem rejeição do enxerto de pele e, em casos raros, possíveis complicações vasculares ou nervosas. Para ser candidato, o paciente precisa ter peso adequado, boa saúde cardiovascular e respiratória, além de não ser fumante. A cirurgia pode durar até seis horas.

Cirurgia de Leonardo. Após a cirurgia, ele já consegue urinar de pé e tem um falo de 6 cm, um ganho de 2 cm em comparação à metoidioplastia. Ele também relata ereções funcionais e penetração, um resultado raro em técnicas convencionais.

Como acessar a TCM pelo SUS? O procedimento é realizado na UFBA para pacientes que já fazem acompanhamento no ambulatório multiprofissional da instituição. Pessoas de outros estados precisam integrar o programa para serem consideradas.

Fonte: Ubirajara Barroso Jr., chefe do Departamento de Cirurgia Afirmativa de Gênero da Sociedade Brasileira de Urologia; chefe da Divisão de Cirurgia Urológica Reconstrutora e Urologia Pediátrica do Hospital da UFBA, professor livre docente de mestrado e doutorado e coordenador da disciplina de Urologia da UFBA.

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*O nome foi trocado para preservar a identidade do entrevistado.

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