Complicação pós-transplante: 'Medula que recebi me destruiu por dentro'


Bárbara Therrie
Colaboração para VivaBem
24/03/2025 05h31
Diagnosticada com câncer, Rita de Cássia Giorno, professora de português e literatura, foi submetida a um transplante de medula óssea. Alguns dias após o procedimento, ela desenvolveu a doença do enxerto contra o hospedeiro, conhecida pela sigla DECH, uma condição na qual as células do doador atacam os tecidos do receptor, causando vários sintomas debilitantes no paciente transplantado.
Rita teve diarreia, vômitos, feridas da boca ao ânus, entre outras complicações. Hoje, aos 62 anos, ela compartilha sua história.
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"Ao passar em uma consulta de rotina com o clínico geral, ele solicitou alguns exames de sangue. Quando os resultados saíram, o médico disse que estava tudo ok, mas comentou que as plaquetas estavam um pouco abaixo da referência mínima de 150 mil.
Três meses depois fui à ginecologista, fiz novos exames e foi constatado que as plaquetas tinham diminuído mais um pouco. A médica disse que eu não estava com anemia, mas me orientou a passar com um hematologista.
Passei com três hematologistas, o primeiro não detectou nada de anormal além das plaquetas baixas, disse que poderia ser estresse por causa do meu trabalho, me receitou vitamina C e pediu para eu repetir um novo hemograma a cada 20 dias —fiz isso durante quatro meses, a essa altura as plaquetas já estavam em 71 mil [o número normal de plaquetas no sangue é de 140 mil a 440 mil].
Busquei um segundo especialista, ele solicitou uma biópsia da medula e um mielograma, exame que analisa a produção de células sanguíneas na medula óssea. Levei os resultados para um terceiro hematologista que resolveu me internar para investigar o que tinha. Não apresentava nenhum sintoma, mas as plaquetas caíram gradativamente até chegar em 11 mil.
O médico levantou duas hipóteses: poderia ter uma doença autoimune chamada púrpura trombocitopênica idiopática ou um câncer na medula óssea (síndrome mielodisplásica). Após fazer uma bateria de exames, foi confirmado que tinha câncer na medula óssea.
Durante essa fase tive algumas complicações, fiquei internada, tive anemia, tomei injeção na barriga e fiz algumas transfusões de sangue. Meu quadro não melhorou e fui informada de que precisaria fazer um transplante de medula.
Ao ouvir isso não tive nenhuma reação, disse ao médico que talvez não precisasse fazer o transplante. É como se não acreditasse que estivesse com câncer e não entendesse a gravidade da doença. O hematologista reforçou que era necessário fazer o procedimento e perguntou se eu tinha algum irmão que pudesse fazer o teste de compatibilidade. Meu irmão fez o teste e foi constatado que ele era 100% compatível.
No dia 25 de agosto de 2005, fiz o transplante de medula óssea, mas uma semana depois comecei a ter diarreia e vômitos. Minha medula "pegou" no 12º dia, mas conforme os dias foram passando fui apresentando mais sintomas.
Tive uma inflamação da mucosa (mucosite), fiquei com feridas na boca, na vagina, no ânus. Não conseguia me alimentar por causa disso. Fiquei com a pele avermelhada, escura, manchada e ressecada. Também tive ressecamento ocular, não tinha mais lágrimas nos olhos e quase não tinha saliva. Tive fraqueza nos braços e nas pernas. Os exames também apontaram alterações nas enzimas do fígado e nos rins.
Os médicos descobriram que eu estava com a doença do enxerto contra o hospedeiro, uma condição na qual as células do doador atacam os tecidos do receptor, causando vários sintomas debilitantes. A doença atingiu meu fígado, intestino, rins e pele.
A medula me destruiu por dentro.
Sofri com os sintomas da DECH na forma aguda por quase um ano, entre idas e vindas ao hospital e alguns tratamentos. Tive que tomar corticoide, imunossupressor e fazer profilaxia para os pulmões. Fiquei com diabetes devido ao uso prolongado de corticoide.
Além das medicações, tinha que hidratar bastante a pele, usava colírio lubrificante nos olhos, fiz algumas sessões a laser para tratar as úlceras na boca e praticava atividade física para ajudar no fortalecimento dos braços e das pernas. Fiquei com algumas sequelas: diarreias, úlceras na boca e na vagina, mas convivo bem com elas.
Na época fiquei triste porque era jovem, tinha 42 anos, isso afetou minha carreira acadêmica, meus filhos não tinham a minha presença de forma plena, meu marido acumulou funções do trabalho, da casa e se tornou meu cuidador. Foi um período difícil para a minha família, mas me mantive bem dentro do possível.
Tive que me aposentar por causa das complicações da minha saúde, mas me reinventei, me tornei professora particular, faço correções acadêmicas e criei uma personagem chamada a contadora de histórias.
Vinte anos após ter sido curada do câncer e ter feito o transplante, tenho uma vida normal, faço atividade física e acompanhamento médico.
Convivo com a DECH na forma crônica de forma positiva, porque a vontade de viver e de ser feliz é maior do que qualquer obstáculo.
Acho fundamental que os médicos expliquem previamente aos pacientes que vão fazer o transplante de medula óssea na modalidade alogênica [o que utiliza células saudáveis de um doador para substituir as células doente do paciente] sobre os riscos de desenvolver a doença do enxerto contra o hospedeiro.
Não fui informada antes e só fui entender quando já estava com os sintomas.
Além disso, noto um desconhecimento sobre a condição entre os médicos de outras especialidades quando vou à alguma consulta e preciso explicar tudo que aconteceu comigo."
O que você precisa saber sobre a doença do enxerto contra o hospedeiro
A DECH (doença do enxerto contra o hospedeiro) é uma complicação do transplante de medula óssea, que ocorre quando as células do doador atacam os tecidos do paciente. Segundo as estatísticas, de 40% a 50% dos pacientes transplantados podem sofrê-la. Isso acontece porque o sistema imunológico das células transplantadas reconhece o corpo do receptor como "estranho", causando inflamação.
Esse problema só acontece em transplantes alogênicos, ou seja, quando a medula vem de um doador. Se o paciente recebe suas próprias células-tronco (transplante autólogo), a DECH não ocorre.
A DECH pode ser aguda ou crônica, com diferentes sinais:
DECH aguda (aparece nas primeiras semanas ou meses): manchas vermelhas na pele, icterícia (pele e olhos amarelados), diarreia intensa, náusea e dor abdominal.
DECH crônica (pode surgir meses ou anos depois): sintomas parecidos com doenças autoimunes, como boca e olhos secos, queda de cabelo, alterações na pele, inflamações nos pulmões e maior risco de infecções.
"Os sintomas podem variar muito de paciente para paciente, mas é importante ficar atento, porque um diagnóstico precoce melhora as chances de controle da doença", alerta o hematologista Celso Arrais, coordenador do Serviço de Hematologia e Transplante de Medula Óssea do Hospital Nove de Julho (SP) e professor adjunto de hematologia e hemoterapia na Unifesp.
O diagnóstico é baseado nos sintomas e exames laboratoriais. Em alguns casos, pode ser necessário fazer biópsias da pele, do fígado ou do intestino para confirmar a doença e descartar outras causas.
O tratamento depende da gravidade da DECH:
Casos leves: uso de corticoides e imunossupressores tópicos, como cremes para pele, bochechos para boca seca e colírios para os olhos.
Casos moderados a graves: imunossupressores mais potentes, como corticoides sistêmicos e outras medicações para controlar a resposta do sistema imunológico.
Casos mais resistentes: uso de terapias avançadas, conhecidas como drogas-alvo.
"O objetivo do tratamento é reduzir a inflamação e evitar danos aos órgãos. Felizmente, hoje temos mais opções de medicamentos do que no passado, o que melhora o prognóstico dos pacientes", explica Celso Arrais.
Se não for bem tratada, a DECH pode causar sequelas, como:
Infecções recorrentes, já que o sistema imunológico fica mais fraco.
Fibrose pulmonar, que pode dificultar a respiração.
Alterações na pele e articulações, podendo afetar a mobilidade.
Muitos pacientes conseguem se livrar da doença com tratamento adequado e precoce. Com o tempo, a maioria pode suspender os imunossupressores e levar uma vida normal.
No entanto, algumas pessoas podem ficar com sequelas permanentes, como manchas na pele, unhas alteradas e olhos secos que exigem lubrificação constante. Pacientes com a forma crônica mais grave podem precisar de acompanhamento contínuo.
"O mais importante é o diagnóstico precoce e o tratamento correto. Com os cuidados adequados, muitos pacientes conseguem viver bem, sem grandes limitações", finaliza Celso Arrais.