Ponto de vista

Ela perdeu a gordura que sustenta o olho e fez cirurgia inédita para recuperar a forma do rosto e a boa visão

Letícia Naísa Do UOL

A cada dia que se olhava no espelho, Sonayra de Araújo Moreira, 36, via seu rosto diferente. Ele estava ficando mais fino e os olhos, cada vez mais distantes um do outro. E, por dois anos, não foi só a aparência que mudou. A visão, sempre perfeita, também começou a pregar peças.

Graças ao olho afundado e o rosto atrofiado, a cabelereira desenvolveu diplopia, um problema que causa visão dupla. "Forçava tanto a vista que no fim do dia ficava completamente zoada", conta Sonayra.

"Era uma sensação de embriaguez, olhava para o lado e não enxergava, ficava tonta. Forçava muito uma vista para compensar a outra, aí precisava descansar para poder enxergar direito."

"Olhava no espelho e só chorava"

Ironia do destino, o problema da cabeleireira começou por conta de uma queda de cabelo. "Eu trabalhava em um jornal e tinha muito estresse. Apareceu uma falha bem pequena no meu couro cabeludo. Fui tentar consertar e deu no que deu", lamenta.

Os problemas na vida de Sonayra começaram a aumentar após um tratamento com infiltração de corticoide para corrigir a falha capilar, que aparecia sempre que ela abaixava a cabeça. Primeiro, sua sobrancelha caiu. Depois, foram os cílios e o cabelo. "Foi virando uma bola de neve. Lentamente, senti a testa afundar, fez uma fenda. Aí, percebi a alteração na bochecha e, por último, no olho, que percebia estar cada vez pior quando me maquiava. Levou de seis meses a um ano para ficar assim."

O "assim" foi uma diferença de 4,7 mm³ entre uma órbita e outra de seus olhos que, assim como as alterações em seu rosto, foi provocada pela perda de gordura da face e da cavidade orbitária ("buraco no crânio onde fica o olho"), um efeito colateral raro do uso de corticoide.

Tomografia e ressonância magnética viraram seus procedimentos de rotina para tentar encontrar um diagnóstico. A suspeita era de que Sonayra tinha uma doença autoimune, provavelmente a síndrome de Guillain-barré, que causa atrofia e paralisia. Em Araraquara, cidade do interior de São Paulo onde mora, ela passou por mais de 20 especialistas. Neurologistas, reumatologistas, dermatologistas, oftalmologistas, dentistas. Também consultou médicos em Botucatu e Campinas, na mesma região.

"Caí em um hospital na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), porque acharam que lá poderiam me dar um diagnóstico. Quando cheguei com todos os meus exames, vi que eu era a única pessoa 'sem problema' que estava ali. Tinha gente com deformidades na face e no crânio que não eram como a minha. O que eu tinha era só estético", lembra.

Após as consultas, os médicos disseram que Sonayra não tinha doença alguma. "Saí de lá aliviada por não ter algo grave, mas também chateada por não receber um diagnóstico e não saber o que estava acontecendo com meu rosto. Só que, depois de ver tanta gente pior que eu, sem conseguir comer e falar, mudei minha percepção sobre meu problema. Foi um tapa."

A partir de então, Sonayra procurou um cirurgião plástico que pudesse apenas consertar seu rosto. Fez aplicações de ácido hialurônico e preenchimento facial para disfarçar a perda de gordura. Vaidosa, não saía nunca sem maquiagem, que ajudava a esconder o problema, e decidiu trabalhar no ramo da beleza (hoje, é dona de um salão). Apesar dos procedimentos estéticos para minimizar as alterações no rosto, as mudanças na face continuaram e a cabeleireira passou anos sem tirar foto, nem mesmo com a filha, que hoje tem 13 anos.

Hoje, eu conto essa história dando risada, mas no início olhava no espelho e só chorava, não conseguia falar sobre isso, as pessoas achavam que eu tinha sofrido um acidente. E, imagina, eu tenho salão de beleza, ficava de frente para o espelho o dia inteiro vendo meu rosto daquele jeito, me incomodava muito.

Sonayra de Araújo Moreira

"Solução inédita para um caso inédito"

"Todo o mundo quer viver, ser saudável e feliz. Eu não posso dar mais um problema para o paciente", reflete Eduardo Hochuli. Dentista de formação, Hochuli traçou sua carreira em cirurgia bucomaxilofacial. Sua rotina é em hospital, não no consultório. "Trato lesões e deformidades, sejam de nascimento, sejam adquiridas durante a vida. Vejo de tudo o que você pode imaginar, gente que sofreu acidente, fraturas, que tomou tiro", enumera.

Em três anos de residência e inúmeros cursos no exterior, Hochuli ficou fascinado pela região da cavidade orbitária, que guarda os olhos.

A maior dificuldade de operar nessa região é que você tem que tomar cuidado com o nervo óptico, não pode nem encostar para não causar problemas de visão. As paredes não são retas, uma parte é côncava e outra convexa, é bem complexo"

Sendo a janela da alma uma das coisas que mais encanta Hochuli, ter em mãos o caso de Sonayra foi um encontro perfeito, que aconteceu quando a cabeleireira procurou uma especialista em harmonização facial. A dentista que Sonayra encontrou era aluna de Hochuli, foi sua orientanda no mestrado e no doutorado na Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Araraquara. "Ela sempre me manda umas coisas diferentes e me falou da Sonayra, me mandou os exames", lembra Hochuli. "Olhei e falei que era possível resolver, só precisava encontrar uma empresa que produzisse próteses do jeito que eu necessitava para colocar dentro da cavidade orbitária dela", diz.

A cirurgia de reconstituição da cavidade orbitária de Sonayra teve seis meses de preparo e foi a primeira no Brasil. No exterior, não existe caso similar registrado na literatura inglesa. "Uma solução inédita para um caso inédito. Já fiz reconstituição de uma parede, duas, mas desse jeito eu nunca vi", admite Hochuli.

A cavidade orbitária é composta em um terço pelo olho e o resto por músculos, nervos, vasos e gordura. O que aconteceu com Sonayra é chamado de enoftalmia, ou seja, afundamento do globo ocular para dentro da órbita. "Ela não tem uma atrofia severa da gordura, as cavidades direita e esquerda dela são iguais, não é uma deformidade. A órbita dela está igual, ela perdeu conteúdo e nós tivemos que preenchê-lo", explica Hochuli.

Realidade virtual e impressão 3D: alta tecnologia empregada nas próteses

Na teoria, o problema de Sonayra estava resolvido. A primeira conversa entre doutor e paciente foi em dezembro de 2019. Com a virada do ano, Hochuli foi atrás de alguém que pudesse entender sua demanda e produzir as próteses de que Sonayra precisava. Antes da existência das próteses, esse tipo de cirurgia era realizado com o próprio osso do paciente. "Mas, quando você faz isso, o osso remodela depois de um tempo, ele se acomoda e é absorvido, não fica como desejamos", afirma Hochuli. O que o cirurgião queria eram próteses de titânio, um material seguro, que apresenta baixo risco de infecção e não sofre deformações com o tempo, além de ser conhecido por sua biocompatibilidade.

Poucas empresas no Brasil fazem próteses sob medida. Segundo Hochuli, a maioria é fabricada em tamanhos padrão P, M e G. O paciente se adapta à prótese, não contrário. Em contato com alguns nomes, Hochuli estava disposto a levar o caso de Sonayra para a Suíça, onde estudou, como último recurso. O problema seria autorizar a confecção da prótese lá e depois ainda obter liberação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para seu uso aqui.

"Mas achamos uma empresa no Brasil que topou fazer. Só que o problema não era produzir as peças, era entender exatamente o que a gente queria", conta.

Quem conseguiu materializar o desejo de Hochuli foi Felipe Marques, CEO da Bio Architects, empresa de tecnologia voltada para a área médica. Com os exames de Sonayra em mãos, uma equipe de 20 pessoas trabalhou para produzir as quatro próteses que colocariam o olho da paciente no lugar certo. "Era um caso extremamente difícil, mas tínhamos o conhecimento e aceitamos o desafio", diz Marques.

Existem próteses da região da órbita, normalmente da parte debaixo dela, mas peças para uma órbita completa era uma coisa que a gente nunca viu ser feita."

Foram muitas reuniões entre os especialistas da Bio Architects e o cirurgião Hochuli, além de muita matemática envolvida para chegar ao modelo final das próteses. Com ajuda de muitos softwares, a equipe desenvolveu um modelo em realidade virtual e realidade aumentada usando os exames de Sonayra e conseguiu calcular exatamente o tamanho do espaço que precisava ser preenchido na cavidade orbitária da paciente. Vários biomodelos foram enviados para aprovação de Hochuli até chegar naquele que seria perfeito. O processo todo de desenvolvimento das próteses (peças azuis que você pode ver nas duas fotos acima) levou um mês e meio e foi feito com impressão 3D.

"Será que ela vai enxergar quando acordar da anestesia?"

As próteses viajaram cerca de 270 km da capital paulista até Araraquara e a cirurgia aconteceu no dia 11 de setembro de 2020. A data emblemática na história ganhou um novo significado para Sonayra. "Achei que não ia acontecer por conta da pandemia, tudo parou na cidade, inclusive o centro cirúrgico", comemora. O novo coronavírus assustou cirurgião e paciente, mas não atrasou o procedimento. "Desmarcamos duas vezes, uma por falta de anestésico e outra porque a Anvisa demorou para aprovar a prótese customizada", diz Hochuli.

Dias antes da cirurgia, conversamos com Sonayra e ela estava ansiosa, mas otimista: "Sempre me sentia diferente de tudo, de todo o mundo. Quando chegava em consultórios, falavam que não sabiam o que eu tinha, o que me dizer ou o que fazer comigo. Eu já me achava um caso inédito, a diferença era que ninguém queria pôr a mão no meu olho porque tinha medo de afetar minha visão, mas agora estou confiante", contou.

"Quero poder tirar os óculos que precisei começar a usar por causa do meu problema, olhar no espelho e ver o resultado, ver meu olho normal."

A cirurgia realizada na paciente teve alto custo (cerca de R$ 500 mil) e foi totalmente coberta pelo plano de saúde, assim como as próteses (com valor de cerca de R$ 150 mil). O procedimento levou duas horas e correu muito bem. "A grande sacada dessa cirurgia é justamente o planejamento, que foi o que deu trabalho. Depois, já sabíamos o que íamos encontrar e não tivemos surpresas", disse Hochuli.

Claro que, como qualquer operação, houve apreensão. O cirurgião bucomaxilofacial começou abrindo o subciliar da paciente para colocar a prótese inferior e a lateral. Depois, partiu para a colocação das próteses medial e superior, que exigiram que fosse feito um corte de orelha a orelha (incisão conhecida como acesso coronal, que é realizada dentro do couro cabeludo, para a cicatriz não ficar visível).

"Na hora que você termina é que se pergunta se vai ficar como queria. Será que ela vai enxergar quando acordar da anestesia? Enquanto você não descobre se o paciente está enxergando, você não dorme", relatou o Hochuli.

De volta à vida normal

"Eu acordei e coloquei a mão na cabeça para ver se tinha cabelo", lembra Sonayra. Por causa da incisão no couro cabeludo, ela ficou com medo de precisar raspar, o que não foi necessário. "Aí, tentei piscar e senti dor. Tive reação à anestesia, então passei mal. Mas pensei: 'Bom, está tudo certo com a cabeça e o olho deve estar no lugar'. A hora que equipe chegou para trocar o curativo, meu marido viu meu rosto e disse que estava perfeito. Mesmo inchado, um olho estava igual ao outro. Agradeci por tudo ter passado e por eu estar enxergando", contou à reportagem dez dias depois da cirurgia.

Para Hochuli e Marques, a satisfação após o procedimento foi enorme. "É gratificante ver que você conseguiu fazer o que queria e está ajudando uma pessoa que procurou isso por tanto tempo. A cirurgia reconstrutiva muda a vida de uma pessoa em questão de horas, é uma sensação boa poder fazer isso", relata o cirurgião, que pretende publicar em revistas acadêmicas o caso de Sonayra. "Queremos mostrar que é possível."

De tampão e com um sorriso largo no rosto, Sonayra contou, por videoconferência, que sua nova tomografia está "a coisa mais linda do mundo". Assim que o olho desinchar e ela puder tirar o tampão, seu desejo é fazer uma maquiagem elaborada, "bem linda".

O processo de recuperação total de Sonayra deve demorar até três meses, tempo que seus olhos devem levar para se adaptar à posição original. "Ela ficou quase sete anos com o globo ocular em uma posição inadequada, o cérebro vai ter que se acostumar de novo com a nova realidade", explica Hochuli. "Acho que ela vai se adaptar rapidamente por conta da força de vontade, isso ajuda muito."

Topo