Até o fim!

Cuidados paliativos transformam paciente em protagonista da sua própria história até o último segundo

Samantha Cerquetani Colaboração para VivaBem

Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, não somente para ajudá-lo a morrer em paz, mas também para você viver até o dia de sua morte"

A frase de Cicely Saunders, médica britânica, pioneira nos cuidados paliativos, resume a abordagem que visa colocar o paciente com uma doença incurável no cerne do cuidado, respeitando até o último momento os seus desejos e a sua individualidade.

É provável que boa parte das pessoas ainda não saiba o que são os cuidados paliativos —ou só entenda a sua real necessidade após receber um diagnóstico de uma doença grave que ameace a própria vida ou de algum familiar, como câncer. No entanto, o objetivo é oferecer conforto, qualidade de vida e aliviar o sofrimento de quem sofre.

Independentemente da faixa etária ou enfermidade, para os paliativistas morrer é tão importante quanto nascer. Para eles, é preciso viver com qualidade até o último dia e que a pessoa seja vista como um ser humano, muito além da doença.

Quando não é possível mais realizar intervenções médicas que possam curar o paciente, entram em campo os profissionais de cuidados paliativos porque, após um diagnóstico, ainda há muito a se fazer, tanto pela pessoa quanto por seus familiares.

O que realmente importa?

É comum acharmos que temos tempo. E, muitas vezes, adiamos os planos e seguimos uma rotina cansativa. Mas isso muda após um diagnóstico apontar que a finitude da vida está mais perto do que imaginávamos.

Para Douglas Crispim, paliativista e presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, quando a pessoa se depara com uma doença que ameaça a vida, inevitavelmente pensa no que é essencial.

Os cuidados paliativos apoiam a ressignificação e operacionalização daquilo que é a essência de cada um. Valorizando sua biografia e seus desejos. Para uma pessoa viver plenamente o final da vida, precisa ter cuidados físicos adequados, controle dos sintomas, apoio psicológico e espiritual e segurança. Os paliativistas dão condições para a dignidade acontecer de fato.

Na prática, os cuidados paliativos oferecem uma assistência bastante ampla por meio de uma equipe multidisciplinar. Os paliativistas não medem esforços para melhorar a qualidade de vida de quem tem uma doença incurável (e de sua família), mas todas as ações respeitam os limites do paciente, a sua autonomia e crenças.

Princípios básicos dos cuidados paliativos

  • Promover o alívio da dor e de outros sintomas

  • Afirmar a vida e considerar a morte como um processo natural

  • Não acelerar nem adiar a morte

  • Integrar os aspectos psicológicos e espirituais no cuidado ao paciente

  • Oferecer suporte para que o paciente viva tão ativamente quanto possível

  • Melhorar a qualidade de vida e influenciar positivamente o curso de vida

  • Ser iniciado o quanto antes, junto de outras medidas para prolongar a vida

  • Auxiliar os familiares durante a doença do paciente e a enfrentar o luto

Mudança no olhar

Apenas na década de 1990 surgiram os primeiros serviços organizados de cuidados paliativos no Brasil. Desde o ano 2000, a médica Maria Goretti Maciel* atua nesta área. No início, realizava assistência domiciliar em pacientes com câncer e depois montou o Serviço de Cuidados Paliativos no Hospital do Servidor Público, em São Paulo.

"Quando começamos, ainda eram pouquíssimos os profissionais da área. A filosofia é o elo de tudo. Não é uma medicina de protocolos, mas de princípios. Proteger é a palavra-chave. Os paliativistas devem proteger o paciente do sofrimento envolvido em adoecer e ter a vida ameaçada", completa a diretora de Serviços de Cuidados Paliativos do Iamspe (Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo).

É preciso olhar o paciente de uma forma mais humana e individualizada, compartilhando suas dores. E sempre é necessário enxergar a pessoa inteira —seus valores, trajetória, medos, desejos, crenças— e não apenas a sua doença.

Após o diagnóstico de uma doença grave, o paciente vê a perspectiva da sua morte. E os paliativistas diminuem o sofrimento e o ajudam a atravessar essa fase. Nós acompanhamos a pessoa no processo de morrer para que isto seja o mais leve possível e menos sofrido para a família.

*A ilustração acima deste texto foi feita baseada numa foto da médica Maria Goretti

Cuidados paliativos em números

Como você quer vivenciar a sua morte?

A maioria dos médicos é treinada para curar. Mas diante de uma doença incurável, a equipe de cuidados paliativos realiza intervenções específicas para aliviar o sofrimento físico e permitir que a vida siga seu curso natural. E assim, a pessoa tenha uma "boa morte" (kalotanásia).

De acordo com Crispim, as intervenções médicas devem ser implementadas apenas quando oferecem benefícios. "Prolongar uma vida é maravilhoso, desde que seja com qualidade. Qualquer procedimento deve ser comprovado cientificamente e ter concordância do paciente e de seus familiares".

A equipe de cuidados paliativos é composta por diversos profissionais que controlam os sintomas:

  • Do corpo (médicos e enfermeiros);
  • Da mente (psicólogos e psiquiatras);
  • Espirituais (padre, pastor, rabino, entre outros);
  • Sociais (assistentes sociais).

A pessoa que está em processo de morte precisa decidir como deseja que sejam os seus cuidados e os tratamentos que quer (ou não) receber no momento da finitude. Para isso, há as diretrizes antecipadas de vontade (ou testamento vital).

"É importante elaborar o plano de cuidados. Tudo o que for feito é preciso ser estudado para não abreviar a vida ou causar dor", explica Goretti.

Tipos de morte

Eutanásia

É uma forma de abreviar a vida de alguém com uma doença grave e incurável a pedido da própria pessoa. É considerada crime no Brasil, assim como o suicídio assistido.

Ortotanásia

É a morte natural com dignidade, ou seja, quando não há interferência da ciência. A pessoa tem uma morte sem sofrimento, no momento adequado, sem alterar o processo natural, sem apressar ou retardar o fim da vida.

Distanásia

É o prolongamento desnecessário da vida por meio de intervenções médicas que podem ser invasivas. O objetivo é estender a vida do paciente, mas isso acaba causando grande sofrimento e angústia.

Kalotanásia

Conhecida como a "boa morte", consiste em um conjunto de ações para que o processo de morrer seja o mais suave e sereno possível. Promove a consciência da morte, controla sintomas desagradáveis, respeita o desejo dos pacientes e promove a sua autonomia até o fim.

Muito além do câncer

Os pacientes recebem os cuidados no local ou são encaminhados para unidades de internação específicas. Também realizamos serviço de atendimento domiciliar e por telefone. Contamos com cerca de 40 profissionais de saúde atuando

Ricardo Tavares, coordenador do Núcleo de Serviços Paliativos do HC-FMUSP

Cuidar de quem está morrendo

O que leva um médico a atuar com quem está na reta final da vida? Para Marco Túlio Mourão, médico de família e comunidade, geriatra e paliativista, o caminho foi natural. "Ao me tornar geriatra passei a conviver com idosos que estavam chegando à finitude. Percebi que esse processo poderia ser sem dor e humanizado".

O médico atua em uma UBS no Ceará e realiza atendimento domiciliar em pacientes que não conseguem se locomover. Para ele, é fundamental conhecer a história da pessoa, conversar com a família e saber o contexto social para realizar um diagnóstico realista e o tratamento humanizado.

Quando há uma doença sem cura, meu papel é cuidar do paciente, dar conforto, evitar que ele sinta dor e não sejam realizados procedimentos desnecessários

Ele conta que atendeu uma mulher com paralisia cerebral até os 40 anos. "Nunca vou me esquecer da mãe me agradecendo por ter cuidado dela até o fim. É gratificante que ela tenha partido com tranquilidade."

E comemora que sua paciente de 92 anos, em processo de morte, acamada com sequelas de um AVC, siga sem dor: "Eu a acompanho há quatro anos. E ela se comunica cantando. O cuidado ao paciente traz paz e conforto para quem está morrendo e aos familiares".

Vivendo com intensidade todos os dias

Em 2015, a administradora de empresas Josi Damasceno*, 49, foi diagnosticada com câncer de mama. Depois do baque inicial, saiu de Belém e veio para São Paulo realizar seu tratamento.

"O câncer foi detectado no começo, mas descobri que não tinha cura. Recebi um doloroso diagnóstico de metástase óssea, pois remete à morte. Não parava de pensar: 'Eu nunca vou ficar boa?" ou 'Como vou contar para a minha família?'. Para mim era o fim."

Com ajuda de uma médica, Josi descobriu os cuidados paliativos e várias possibilidades para ter qualidade de vida. "Comecei a encarar a minha finitude de outra forma. Sabia que teria dificuldades, mas viveria bem, mesmo em um corpo adoecido."

Ela conta que com os cuidados paliativos passou a entender que tem autonomia sobre a sua vida e a sua morte. A abordagem ajudou Josi a descobrir que é importante continuar e que ela não deve deixar o câncer "roubar nada" de sua vida.

"Hoje, busco a cura da minha alma e tento errar menos. Não espero um milagre, pois venço o câncer todos os dias. Quero que a minha vida seja intensa, se não puder ser extensa. Não tenho medo da morte, tenho medo de morrer em vida."

*A ilustração acima deste texto foi feita baseada numa foto de Josi

É preciso leveza para lidar com a morte

Ainda há resistência em falar sobre a morte e o luto, mas o tema deveria fazer parte das conversas de familiares e amigos. No entanto, o assunto nem sempre precisa ser abordado com tristeza, dor ou de forma pesada.

É no que acredita Rodolfo Moraes, médico paliativista que atua no Hospital do Câncer de Franca (SP). Em 2018, ele criou uma conta no Instagram (@dr.rodolfo.moraes) para divulgar os cuidados paliativos e explicar procedimentos de forma leve e descontraída.

Vi a necessidade de divulgar esse novo olhar da medicina para a saúde, essa mudança de foco para os pacientes. Eles se identificam com o conteúdo e perdem a vergonha de perguntar. O humor ajuda a trazer leveza para a morte, sem ser desrespeitoso.

No final de 2020, a escritora Gisela Rao criou o Luto na Lata (@lutonalata) e passou a divulgar frases que os enlutados mais escutam. Com um humor ácido, ela recebe um feedback positivo sobre os conteúdos e consegue dialogar sobre o tema.

"Sempre tive dificuldade em enfrentar a morte e resolvi estudar. Percebi que as pessoas não sabem o que falar para quem está morrendo ou quem fica. É difícil sentir a dor do outro e não somos ensinados a falar sobre o assunto. O humor contribui com a discussão", diz Rao.

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