Valéria Alves Santana, 40 anos, de Francisco Morato, município da região metropolitana de São Paulo, também tem a vida marcada pela violência. Perdeu a mãe com um ano de idade e, aos 2 anos, foi abandonada pelo pai em uma lata de lixo. Achada por uma mulher em situação de rua, viveu com ela até os 7 anos, quando encontraram o corpo da moça carbonizado. Cresceu sozinha nas ruas, tendo crises e desmaios que não sabia o motivo. Apenas aos 21 anos, em uma convulsão durante o parto do seu primeiro filho, que recebeu o diagnóstico de epilepsia.
No hospital, Valéria foi encaminhada para o neurologista, mas foi necessária uma espera de mais de quatro anos para conseguir a primeira consulta. "Falavam que não tinha essa especialidade em Francisco Morato", conta. Nesse intervalo, a cada crise era internada no Hospital Santa Casa de Misericórdia onde, segundo seu relato, passava até uma semana amarrada e dopada. Também foram inúmeras as tentativas de suicídio. Em uma delas, quando tomou veneno para rato, recebeu o socorro pelo SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e foi encaminhada para o CAPS. Em 2012, finalmente recebeu o diagnóstico de depressão.
Eu era uma pessoa que falava com todo mundo e achava que levava uma vida normal. Mas tinham momentos em que ficava muito agressiva e, para não machucar ninguém, agredia a mim mesma"
No CAPS, Valéria tem consultas com psicólogo, mas só consegue, com sorte, ter sessões a cada três meses. Mesmo com frequentes tentativas de suicídio, recebeu alta do psiquiatra. O médico, porém, manteve a medicação, que ela nem sempre encontra disponível gratuitamente na Farmácia Básica do SUS. "São remédios caros e que nem sempre dá para comprar com o que ganho fazendo bicos", diz. Quando vai ao centro, não participa das atividades terapêuticas, sempre realizadas em grupo. Prefere ficar sozinha. "Quando converso com os especialistas e o psicólogo, até fico melhor. Mas não dá uma semana para eu só pensar em morrer de novo", confessa.
Para a psicóloga Ana Carolina Barros, as histórias similares à de Valéria, de muita espera e atendimento inadequado, têm origem em uma política de desmonte e subfinanciamento da rede pública de saúde. Mesmo com a maior parte da população dependendo exclusivamente do SUS, faltam equipamentos, treinamento e condições mínimas para realizar esse atendimento. "Temos profissionais incríveis atuando no SUS, excelentes psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais. O que falta, e que implica diretamente na qualidade do serviço oferecido, é estrutura, é investimento, é aumento de equipe. Existem CAPS que precisam de 30 psicólogos atuando para dar conta da demanda. Na prática, só há cinco profissionais. Por mais que esses cinco sejam ótimos, eles não vão dar conta do serviço dos outros 25 que faltam", alerta.
A realidade de corte de gastos cada vez maiores na saúde pública tem como resultado um oferecimento muito mais precarizado de serviços, um acesso mais complicado, tratamentos mais demorados. Quando se fala em saúde mental, esses investimentos são ainda mais escassos porque essa segue não sendo uma área prioritária para os governos. "Existe uma diferença muito grande entre os tratamentos público e privado e ela existe porque está em curso um projeto de desmonte e tentativa de privatização do SUS", completa Barros.