Não é doença de rico

Como a desigualdade afeta a saúde mental e provoca depressão em quem vive em vulnerabilidade no Brasil

Helaine Martins Colaboração para o VivaBem

"Pegaram a pessoa errada. Pegaram a pessoa errada". Essas eram algumas das poucas palavras que Nice Lima, 49 anos, conseguia ouvir na roda que se formava em torno do seu filho morto no chão. Naquela madrugada de setembro de 2017, vizinhos bateram na porta dando a notícia: Daniel, que tinha saído para encontrar amigos do bairro, havia sido executado aos 22 anos com dois tiros na cabeça. Nasceu, cresceu e morreu no Jardim Guapira, periferia da zona norte de São Paulo.

Uma semana depois, a diarista ligou para a patroa na época. Queria voltar a trabalhar. Não apenas porque o salário faria falta no final do mês, mas também porque a dor que sentia era tão grande que não sabia como lidar com ela. Sem saber o que fazer, se jogou no serviço. Trabalhava o dia inteiro e à noite, quando chegava em casa, continuava trabalhando madrugada adentro. Fazia faxina, cozinhava, passava roupa. Escondida do marido e da filha, vestia roupas de Daniel e saía com o cachorro para passear. Voltava para casa com o raiar do sol. Seu corpo chegou à exaustão.

"Houve um dia em que não consegui mais levantar para trabalhar. Não conseguia me mexer e pedi ajuda ao meu marido, que me levou a uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento). Lá, o clínico geral perguntou o que eu tinha e contei que doía do fio de cabelo à unha do pé", lembra. Da UPA, saiu com um encaminhamento para o psiquiatra e a orientação para procurar o posto de saúde mais próximo de casa. Um mês após o assassinato do filho, com o diagnóstico de depressão, Nice já estava tomando a primeira das sete medicações diárias prescritas atualmente.

Os impactos da violência, preconceito e pobreza na saúde mental

A depressão é considerada a doença mais incapacitante do mundo, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde). No Brasil, são cerca de 11,5 milhões de pessoas que convivem com o problema

Carregado de estigmas, o discurso de que a "depressão é frescura", "doença de rico", "coisa de gente louca" ou mesmo "falta de fé" atravessa décadas. Não por acaso, estima-se que apenas 10% das pessoas com a doença procuram ajuda. Mas, ainda segundo o documento da OMS, embora qualquer um possa ter o transtorno, o risco de desenvolver depressão é maior em situações de pobreza.

Segundo a psicóloga Ana Carolina Barros, coordenadora da Casa de Marias, espaço terapêutico na Vila Esperança, zona leste de São Paulo, que se propõe a escutar e acolher a população negra e periférica da cidade, o avanço da depressão nas periferias acontece de forma progressiva e sistemática no Brasil. A condição tem origem em questões estruturais, ou seja, está relacionada com a maneira como a pessoas vivem. Não há como pensar que essa parcela da população permaneça saudável mentalmente enquanto lida com a falta de moradia digna, de renda mínima, de emprego, de saneamento básico, de segurança, de acesso à cultura e lazer, por exemplo. Além da recorrente exposição ao racismo, considerando que negros são 75% entre os mais pobres, segundo o IBGE.

"Não tem como dissociar a saúde mental de todos esses fatores. A depressão não é puramente uma desregulação neuroquímica. O contexto social, racial, econômico e territorial tem uma grande influência e quando um profissional da saúde o ignora, acaba banalizando e normalizando o sofrimento dessas pessoas. Elas tendem a se culpabilizar pela condição em que vivem. Se são pobres é porque não se esforçaram o suficiente. Se não são felizes é porque não fizeram por onde. Se estão deprimidas é porque não têm força de vontade", alerta.

Assim como Barros, a psicóloga e pesquisadora Mônica Mendes, doutoranda na Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), acredita que a falta de reconhecimento das realidades das pessoas negras e periféricas nos consultórios psicológicos é recortá-las de um mundo que está acontecendo ao redor delas. Não enxergar as particularidades leva à crença de que pessoas pobres não podem acessar sentimentos de alegria, de prazer, de autocuidado, de merecimento. E não precisam, portanto, de tratamento.

"O pensamento é 'ah, eu vou arrumar uma casa, vou lavar uma louça e minha tristeza vai passar.' Porque se você está com tempo de ficar triste é porque está com tempo demais, então basta arrumar alguma coisa para fazer. Passam a achar que esse é o normal da vida e não que isso pode ser depressão."

Um discurso de autoculpabilização que prejudica quem já está em condições de vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, retira do Estado a responsabilidade de cuidar dessas pessoas e oferecer um sistema de saúde de qualidade.

Zé Maia/UOL

Questão de saúde pública

No Brasil, mais de 75% da população brasileira depende exclusivamente do SUS (Sistema Único de Saúde) para ter acesso a tratamentos. Os principais usuários são negros. Oito em cada dez pessoas que se autodeclaram como pretas e pardas no país dependem da rede pública. De acordo com dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), os atendimentos ambulatoriais e internações no SUS relacionados à depressão cresceram 52% entre 2015 e 2018, passando de 79.654 para 121.341.

Com o avanço da depressão nas periferias, o tratamento da doença na atenção básica também só cresce. Cerca de 69% dos atendimentos e diagnósticos de depressão no país são realizados nas UBS (Unidades Básicas de Saúde). É lá que as pessoas encontram o primeiro acolhimento de suas demandas e têm os seus tratamentos pensados por uma equipe multiprofissional, com médicos, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras, entre outros.

Os casos considerados de leves a moderados da doença recebem o acompanhamento na própria UBS e não requerem cuidados mais extremos. Já as ocorrências de maior gravidade, como a falta de interesse no convívio social e tentativas de suicídio, ou que estão associadas a outras doenças como bipolaridade e esquizofrenia, são encaminhadas aos Centros de Atenção Psicossocial, os CAPS.

Hoje, três anos após o assassinato de seu filho, Nice Lima segue em tratamento na UBS que fica a cinco quadras de sua casa. Entre tantos relatos de pessoas que passam meses, às vezes anos, para conseguir uma consulta pelo SUS, ela é uma exceção. Com o encaminhamento em mãos, em um intervalo de um mês já estava com o seu tratamento elaborado: consultas quinzenais e individuais com psicóloga e psiquiatra. "Fui tratada como emergência e prioridade. Fui abraçada", conta.

Apesar da desconfiança inicial, ela descobriu na psicoterapia que tem voz ativa. "A mulher da periferia é pouco ouvida, mas a gente precisa falar." Nas sessões, sentiu-se livre para contar sobre lembranças dolorosas da infância, como a da mãe alcoólatra que a agredia e ligava o rádio para abafar os gritos. Ou sobre a vida marcada pelo suicídio dos pais e do irmão. Em uma das sessões, teve uma crise de choro.

"Pela primeira vez ninguém me mandou calar a boca, ninguém mandou eu ficar quieta, ninguém me ignorou. Pude chorar sem ser repreendida. Acho que ali, enfim, comecei a viver o luto pela morte do meu filho" Nice Lima, diarista

A morte de Daniel segue sem solução. Nice, porém, não vive um dia sequer sem se perguntar quem o matou. Pelo menos uma vez por mês procura a Dhpp (Delegacia de Homicídio e Proteção à Pessoa) para saber novidades do inquérito que ainda está aberto.

Ter respostas é uma das suas grandes motivações para seguir em tratamento. "Eu quero viver para ver quem matou o meu filho pagar pelo que fez. E eu preciso estar bem para ver isso acontecer".

O impacto do desmonte

Valéria Alves Santana, 40 anos, de Francisco Morato, município da região metropolitana de São Paulo, também tem a vida marcada pela violência. Perdeu a mãe com um ano de idade e, aos 2 anos, foi abandonada pelo pai em uma lata de lixo. Achada por uma mulher em situação de rua, viveu com ela até os 7 anos, quando encontraram o corpo da moça carbonizado. Cresceu sozinha nas ruas, tendo crises e desmaios que não sabia o motivo. Apenas aos 21 anos, em uma convulsão durante o parto do seu primeiro filho, que recebeu o diagnóstico de epilepsia.

No hospital, Valéria foi encaminhada para o neurologista, mas foi necessária uma espera de mais de quatro anos para conseguir a primeira consulta. "Falavam que não tinha essa especialidade em Francisco Morato", conta. Nesse intervalo, a cada crise era internada no Hospital Santa Casa de Misericórdia onde, segundo seu relato, passava até uma semana amarrada e dopada. Também foram inúmeras as tentativas de suicídio. Em uma delas, quando tomou veneno para rato, recebeu o socorro pelo SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e foi encaminhada para o CAPS. Em 2012, finalmente recebeu o diagnóstico de depressão.

Eu era uma pessoa que falava com todo mundo e achava que levava uma vida normal. Mas tinham momentos em que ficava muito agressiva e, para não machucar ninguém, agredia a mim mesma"

No CAPS, Valéria tem consultas com psicólogo, mas só consegue, com sorte, ter sessões a cada três meses. Mesmo com frequentes tentativas de suicídio, recebeu alta do psiquiatra. O médico, porém, manteve a medicação, que ela nem sempre encontra disponível gratuitamente na Farmácia Básica do SUS. "São remédios caros e que nem sempre dá para comprar com o que ganho fazendo bicos", diz. Quando vai ao centro, não participa das atividades terapêuticas, sempre realizadas em grupo. Prefere ficar sozinha. "Quando converso com os especialistas e o psicólogo, até fico melhor. Mas não dá uma semana para eu só pensar em morrer de novo", confessa.

Para a psicóloga Ana Carolina Barros, as histórias similares à de Valéria, de muita espera e atendimento inadequado, têm origem em uma política de desmonte e subfinanciamento da rede pública de saúde. Mesmo com a maior parte da população dependendo exclusivamente do SUS, faltam equipamentos, treinamento e condições mínimas para realizar esse atendimento. "Temos profissionais incríveis atuando no SUS, excelentes psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais. O que falta, e que implica diretamente na qualidade do serviço oferecido, é estrutura, é investimento, é aumento de equipe. Existem CAPS que precisam de 30 psicólogos atuando para dar conta da demanda. Na prática, só há cinco profissionais. Por mais que esses cinco sejam ótimos, eles não vão dar conta do serviço dos outros 25 que faltam", alerta.

A realidade de corte de gastos cada vez maiores na saúde pública tem como resultado um oferecimento muito mais precarizado de serviços, um acesso mais complicado, tratamentos mais demorados. Quando se fala em saúde mental, esses investimentos são ainda mais escassos porque essa segue não sendo uma área prioritária para os governos. "Existe uma diferença muito grande entre os tratamentos público e privado e ela existe porque está em curso um projeto de desmonte e tentativa de privatização do SUS", completa Barros.

Na ausência do Estado, a união

Mas, diante das falhas dos serviços públicos e da ausência do Estado nas periferias, qual o caminho que as pessoas procuram em alternativa ao tratamento clínico? Dentro das favelas e bairros periféricos, as pessoas, especialmente mulheres negras, estão cada vez mais indo buscar ajuda para superar dificuldades e doenças como a depressão na religião. Assim, as igrejas —principalmente neopentecostais— vão ocupando os espaços onde o Estado está ausente, desempenhando funções na vida comunitária, inclusive política.

A psicóloga Mônica Mendes acredita que, ao contrário das críticas à influência das igrejas nas periferias e de como elas usam esses territórios de vulnerabilidade, precisamos questionar que lugar é esse que elas estão ocupando. "Coletivamente eu não vou estabelecer uma política que tem como prerrogativa a religião. Eu acredito na ciência, eu acredito no SUS. O que temos que fazer não é condenar a igreja ou religião. Nenhuma delas. Mas questionar: que lugar é esse que as igrejas estão ocupando? O que elas estão fazendo que o Estado não está?"

A escuta e acolhimento que as pessoas encontram na religião também estão presentes na coletividade. Para além dos estigmas negativos associados às periferias, esses territórios também são marcados pela potência de quem aprendeu que, como diz o ditado, da união se faz a força. Diante dos obstáculos para ter acesso aos direitos básicos, moradores se unem em projetos e coletivos autônomos de lazer, cultura e promoção de saúde. Existem grupos de mães que se organizam no cuidado com os filhos para todas poderem trabalhar. Têm os grupos que coletam cestas básicas para doação. Ou ainda coletivos que promovem festivais de música ou ensino de práticas esportivas.

"De uma forma coletiva, comunitária, os moradores de favelas e periferias acabam reforçando os laços entre as pessoas e isso traz um pouco dessa escuta, desse acolhimento, desse cuidado necessário e que nem sempre encontram, inclusive no SUS", diz Ana Carolina Barros. "Existe um cuidado da periferia para com a própria periferia. Um lado superpulsante e efervescente que é importante a gente dizer que existe."

Mais especiais do VivaBem

Ser normal é que é louco

Em um mundo tão complexo, atípico é não sofrer com tantas mudanças e exigências diárias

Ler mais

Depressão em xeque

O transtorno mental está realmente crescendo ou só estamos diagnosticando melhor?

Ler mais
Carine Wallauer/UOL

Em vez das drogas, a água

Marcelo superou o vício em drogas e atravessou o Canal da Mancha nadando

Ler mais
Topo