A vida continua

Do paciente com morte cerebral até a chegada em um novo corpo, saiba como é o caminho do órgão para doação

Luiza Vidal Do VivaBem, em São Paulo

Tudo começa com o diagnóstico de morte encefálica, quando o cérebro deixa de funcionar. Depois, entra uma parte essencial para que o processo se inicie: a conversa com a família. São os parentes do paciente que devem autorizar ou não a doação de órgãos ou tecidos.

Não pode ter nenhuma falha neste momento. Os enfermeiros e as enfermeiras aprendem técnicas específicas para garantir a comunicação "perfeita". Primeiramente, a família deve entender que não há nenhuma chance de o paciente acordar —e o protocolo brasileiro é extremamente seguro quanto a isso.

A equipe esclarece qualquer dúvida e algumas perguntas podem surgir. "A religião permite o ato?" Sim, todas permitem. "O corpo do doador sofre 'mutilações'?" Não, o corpo é completamente reconstituído para o velório. Além das questões de saúde do paciente, os enfermeiros buscam entender o perfil da pessoa: se ela gostava de doar roupas, se era altruísta e se desejava ser um doador.

Se a família autoriza a doação, é dada a largada para um processo que necessita da agilidade dos profissionais. Quando os órgãos são retirados, o relógio começa a contar. Fora do corpo, eles têm um "prazo de validade" e cada segundo é importante para que o órgão ou tecido chegue ao receptor.

A fila do transplante: quem vem primeiro?

Segundo a ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), em nosso país há mais de 43 mil pessoas na fila aguardando um transplante. Dados consolidados pelo Ministério da Saúde apontam que, em 2019, foram realizados 27.688 transplantes no país, já o número de doadores efetivos foi 3.768 —a diferença é grande já que a doação pode ser de mais um órgão/tecido e se transformar em inúmeros transplantes.

Não existe uma regra igual para todos os órgãos e tecidos, cada um deles possui critérios e especificidades diferentes. Na fila de espera por um fígado, coração ou pulmão, pacientes em estado mais grave são prioridade. Com o rim, o que mais importa é a compatibilidade entre doador e receptor; já o pâncreas leva em conta o tempo de inscrição na fila.

Critérios de desempate existem, mas também variam. A gravidade do paciente é motivo de priorização e as crianças, por exemplo, têm preferência quando o doador também tem a mesma faixa etária ou quando estão concorrendo com adultos.

Quem organiza essa fila é a central de cada estado, que deve se reportar ao SNT (Sistema Nacional de Transplante). É esse sistema que também cuida da logística, principalmente quando um estado vai receber um órgão ou tecido de outro lugar do do Brasil.

O ideal é que os pacientes sempre realizem o transplante no estado em que residem, porém pode acontecer de o local não ter estrutura suficiente e a cirurgia ocorrer em outro lugar. No site da ABTO é possível encontrar todos os centros de transplante distribuídos pelo país.

Além da doação de pacientes mortos, há também a doação em vida. É quando alguém doa parte do fígado, por exemplo, ou um dos rins, além da medula óssea. Neste caso, quem necessita do órgão ou tecido pula a etapa da fila, pois a doação do órgão ou tecido é feita para uma pessoa específica (um filho que doa para o pai, por exemplo), aí um dos "desafios" é encontrar uma pessoa que seja compatível com ela.

O Brasil tem um dos mais seguros sistemas de doação de órgãos e tecidos do mundo. No diagnóstico de morte encefálica, realizamos diversos exames para comprovar o quadro. Também temos uma transparência enorme durante a doação para evitar qualquer viés.

José Huygens, presidente da ABTO

"Ganhei um coração 20 anos mais novo"

Marcia Maluf, 68, tradutora

"Passei por um transplante de coração em fevereiro de 1996. Tive uma miocardiopatia dilatada que os médicos chamam de 'idiopática' —isso é, sem causa definida. O cardiologista disse que eu não sobreviveria se não encontrassem um coração compatível em até três meses. Doze dias depois ganhei um coração 20 anos mais novo, de um atleta assassinado.

Não tive tempo de sentir a ansiedade típica da fila, porque foi muito rápido. Mas, mesmo nessa breve espera, por diversas vezes estive com a vida 'por um fio', com os médicos dizendo para a minha família que, se acreditassem em Deus, deveriam começar a rezar porque a medicina já havia feito tudo o que poderia fazer por mim.

Depois do transplante é preciso tomar medicamentos. Após quatro anos, por efeito colateral dos remédios mais agressivos de imunossupressão, tive um câncer de mama e fiz mastectomia parcial.

Em 2019, também perdi um rim e agora tenho um novo. Tenho um mantra que sigo há 25 anos: Isso tudo só aconteceu porque estou viva. Morto não tem câncer, não faz transplante e não sente efeitos colaterais."

"Fiquei sete meses na fila até conseguir uma córnea"

Kayque Cordeiro, 22, estudante

"Há três anos, fui diagnosticado com ceratocone, uma doença degenerativa na córnea [localizada no olho]. Desde criança busquei solução para o problema de visão, mas os médicos o trataram da forma errada e minha condição foi piorando. Chegou ao ponto em que precisei do transplante em um dos olhos. Fiquei sete meses na fila até conseguir. Entrava umas duas vezes na semana no site para ver qual era minha posição na fila.

Foi uma surpresa imensa e senti muita felicidade quando me ligaram para avisar que tinha chegado minha vez. Hoje estou muito bem, consegui recuperar a visão, não totalmente, mas consigo realizar várias atividades.

Todo mundo quer trabalhar e construir algo para ser lembrado na vida. Mas, para mim, não existe algo mais bonito e importante do que o ato de doar órgãos.

É extremamente necessário. Além da empatia por uma pessoa que você nem conhece, você também oferece uma nova oportunidade de vida para quem está precisando. Precisamos naturalizar mais a doação.

No meu caso, sei que existem dois 'Kayques': um antes e um depois do transplante. Desde que recebi a córnea, enxergo o mundo de outra forma, inclusive, com um olhar compartilhado, não apenas meu. Isso mudou minha vida."

A temida rejeição após um transplante

O sistema imunológico reconhece o novo órgão como um corpo estranho e reage. Isso pode ocorrer com qualquer órgão ou tecido logo após o transplante ou muito tempo depois. Para que isso não aconteça, os pacientes transplantados precisam tomar medicamentos imunossupressores pelo resto da vida, além de fazer acompanhamento médico periódico.

"Essa rejeição pode não apresentar sintomas, por isso colhemos exames periodicamente para uma avaliação completa, principalmente após os primeiros meses do transplante", explica Alcides Salzedas, professor e coordenador de transplante de fígado pediátrico da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Existem três tipos de rejeição: hiperaguda, aguda e crônica, segundo Bruna Araújo, enfermeira da OPO (Organização de Procura de Órgãos), também da Unifesp.

"A hiperaguda acontece minutos ou poucos dias após o transplante, e esse tipo de rejeição é mais suscetível nos pacientes de transplantes renais", diz. A aguda pode ocorrer nos primeiros meses do transplante e a crônica surge ao longo da evolução do procedimento, de forma lenta e progressiva.

Casos de rejeição leve ou moderada costumam ser resolvidos com ajustes nos medicamentos. Já em casos graves, a rejeição pode se tornar crônica e afetar o funcionamento do órgão, fazendo com que a pessoa necessite de um novo transplante.

No Brasil, são mais de 43 mil pessoas na fila de transplante. Nunca teremos doadores suficientes, não só no Brasil como no mundo inteiro. Precisamos reforçar à população que a doação de órgãos é um gesto de solidariedade e cidadania.

Marcelo Perosa, coordenador da equipe de transplantes do Grupo Leforte

"Já fiz dois transplantes de rim e, hoje, estou em busca do terceiro"

Fábio Calcini, 42, advogado

"Quando estava no fim da faculdade de direito, aos 21 anos, descobri uma doença autoimune chamada doença de Berger. Poucos meses depois, já estava em hemodiálise e, apesar de me sentir frustrado e triste, busquei continuar minha vida normalmente.

Fiz meu primeiro transplante de um doador vivo, que foi meu pai. Embora seja complexa, a recuperação para quem doa o órgão é muito rápida.

Após seis anos, tive alguns problemas de saúde, como tuberculose ganglionar, perdi a função deste rim e precisei voltar para a hemodiálise. Foi tudo muito rápido e, em dois meses, estava na mesa de cirurgia de novo. Mas, desta vez, quem doou um dos rins foi minha mãe.

Meus pais têm muito orgulho do ato que fizeram por mim. Eles passavam muita segurança e diziam que eu ficaria bem.

Abusei um pouco no estilo de vida, na alimentação e no excesso de estresse. Em 2019, também peguei Sars (síndrome respiratória aguda grave) e fiquei intubado por 30 dias na UTI. Tudo isso prejudicou o rim, novamente. No fim de 2020, voltei para e hemodiálise e estou nela. Estamos avaliando, agora, um terceiro doador.

A doação, de um paciente morto ou ainda em vida, é um dos atos mais significativos que uma pessoa pode ter com outra. Basta conversar com um transplantado para entender a importância da doação, de alguém que teve a oportunidade de ficar vivo em razão deste ato de amor."

    Doar órgãos é doar vida

    Se você tem desejo de ser um doador ou doadora de órgãos, avise seus familiares e amigos. São eles que vão tomar essa decisão por você.

    "O que a gente sempre conversa com os parentes é que este momento da doação dos órgãos pode ser a última chance de realizar o desejo da pessoa", explica Araújo, enfermeira da Unifesp, que tem essas conversas diariamente com as famílias. Ela acredita ser fundamental a conscientização da população sobre a importância do ato que é doar um órgão:

    É um ato de amor e é pela vida de pessoas que não conhecemos. Doar órgãos é doar vida.

    Watanabe relembra que muitas pessoas não autorizam a doação por conta de mitos envolvendo o assunto. "50% das famílias dos potenciais doadores não autorizam o procedimento. Manifeste seu desejo de ser doador, pois normalmente a família respeita. Um só doador pode salvar diversas vidas", afirma. "Você acompanha um paciente em estado muito grave e, com o transplante, é possível devolver a vida dele, em um curto espaço de tempo. Você muda a vida dessa pessoa."

    Ainda em vida, é possível ajudar pessoas que precisam de transplante de medula óssea ao se cadastrar no site do Redome (Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea), do Ministério da Saúde. Não há nenhum outro cadastro para doar, voluntariamente, outros órgãos ou tecidos.

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