Uma batalha invisível

Dor crônica é condição comum que afeta qualidade de vida e pode ser incapacitante

Samantha Cerquetani Colaboração para VivaBem Carol Malavolta/UOL

Acordar, viver e dormir com dor. Esta é a rotina de pessoas que realizam atividades básicas, como respirar ou caminhar, com a presença de um desconforto intenso, frequente e até paralisante.

Invisível aos olhares alheios, ela chega de mansinho (ou do nada, sem avisar) e vem para ficar, causando uma sensação indescritível. Essa dor afeta a rotina, os relacionamentos, a fome, o raciocínio, o humor e até a vontade de viver.

Considerada um mecanismo de defesa do organismo, a dor é classificada como crônica quando persiste por mais de três meses. E, ao passar do limite, é comum que se torne uma doença.

"Geralmente, as dores agudas (provocadas por doenças ou acidentes) que não foram tratadas adequadamente se tornam crônicas. Essa condição afeta e impacta a funcionalidade do indivíduo, tanto a parte psíquica quanto social", destaca João Valverde, chefe do núcleo de dor do Hospital Sírio-Libanês (SP).

'Sentia 9 vezes mais dor do que o normal'

Bastante sorridente, a paulistana Dina Barile, 67, passou a infância acreditando que ter dor era algo normal. Sempre que brincava, jogava bola ou andava de bicicleta sentia um desconforto intenso e sem explicação.

"Não sabia qual médico procurar. Encontrei um reumatologista que me receitou vários medicamentos e nada adiantou. Depois, recebi o diagnóstico de fibromialgia. Foi constatado que eu sentia nove vezes mais dor do que era considerado normal."

Formada em ciências atuariais, ela relembra que a dor sempre atrapalhou os seus relacionamentos e seu bem-estar.

"A minha dor lateja, é como se enfiassem agulhas repetidamente no meu corpo, e demora muito para passar. Evito andar em multidões, não gosto que encostem em mim. Muita gente acha que é frescura, mas a sensação é que a dor nunca mais vai passar."

Dina começou a tomar antidepressivos para lidar melhor com a condição, que não tem cura. Atualmente, convive melhor com a dor, criou estratégias para ficar bem e faz tudo para que o desconforto não a impeça de viver.

Conheço 142 países e fui a primeira mulher brasileira a chegar à estratosfera (segunda camada mais próxima da Terra). Gosto de quebrar paradigmas e sempre lutei pelo que quero.

Não é igual para todo mundo

A dor e a forma como ela se manifesta não são iguais para todo mundo. Por isso, a sensação e sua presença costumam ser definidas pela própria pessoa.

"A dor é sempre uma experiência pessoal que é influenciada, em graus variáveis, por fatores biológicos, psicológicos e sociais. No caso da dor crônica, ela é mal compreendida e subestimada pela sociedade, incluindo profissionais de saúde", destaca Amelie Falconi, especialista em dor e professora de pós-graduação de medicina intervencionista do Hospital Albert Einstein (SP).

Os principais tipos de dor crônica

  • INFLAMATÓRIA

    Há um aumento da sensibilidade devido a uma resposta inflamatória associada ao dano de algum tecido. Pode causar calor local, vermelhidão, inchaço e dor na região afetada, que se manifesta de forma pulsante, latejante ou em pontadas.

  • NEUROPÁTICA

    Ocorre quando há alguma lesão ou problemas no sistema nervoso central ou periférico, atingindo os nervos. A dor costuma ser intensa e se apresenta em forma de agulhadas, ardências, formigamentos e choques.

  • NOCIPLÁSTICA

    É aquela que ocorre quando os tecidos envolvidos se encontram sensibilizados, mas a dor acontece mesmo que não haja evidência de lesão real, ameaça ou doença. É o caso da fibromialgia.

'Não sei mais o que é viver sem dor. Passo o dia na cama ou sentada'

Em 2016, a fonoaudióloga Adriana Rodrigues, 48, teve uma crise forte de dor nas pernas e foi ao hospital. Foi aí que sua vida mudou para sempre. Após vários exames, uma punção medular (coleta de líquido da medula espinhal, feita com uma agulha) foi solicitada para investigar a causa da sensação tão intensa.

Durante o procedimento, saiu muito sangue e fiquei paraplégica. Logo depois, fiz uma ressonância que comprovou que a medula tinha sido perfurada e estava com hemorragia. Deixei o hospital sem andar e com muita dor.

Sem entender o que havia acontecido com seu corpo, gastou todos os seus recursos financeiros em consultas com diversos especialistas de São Paulo, cidade en que ainda mora. Pouco depois, foi diagnosticada com aracnoidite adesiva crônica, um tipo de lesão que acontece após uma reação inflamatória nos nervos.

"Não sei o que é viver sem dor. A intensidade varia bastante e, algumas vezes, é quase insuportável. Não tenho mais rotina e não consigo mais trabalhar. Passo o dia na cama ou sentada. Hoje, minha saúde está abandonada e sigo sem tratamento."

Conheça as principais causas das dores crônicas

  • FIBROMIALGIA

    Imagine viver com dor constante no corpo todo e não saber a causa exata? É o que acontece com quem tem fibromialgia, uma síndrome reumatológica que não tem cura e afeta principalmente a musculatura. Estima-se que 2% da população brasileira tenha o problema, considerado um dos principais motivos das dores crônicas. Geralmente, a dor se manifesta nos músculos, ossos e articulações e provoca uma sensação de queimação ou pontada.

  • CEFALEIAS

    Conhecido popularmente como dor de cabeça, o problema de saúde costuma causar sintomas que variam de intensidade. No entanto, algumas pessoas apresentam enxaquecas crônicas ou crises intensas de dor.

  • CÂNCER

    Muitas vezes, quem está enfrentando um tumor também lida com a dor crônica. Geralmente, o desconforto acontece por causa do próprio câncer, mas pode ainda ocorrer devido aos tratamentos, como quimioterapia, radioterapia e cirurgias.

  • DOENÇAS REUMÁTICAS

    Além da fibromialgia, condições como artrite reumatoide, gota, tendinite, bursite e febre reumática provocam dores frequentes e constantes. Nesses casos, é comum haver também o comprometimento da locomoção, já que essas doenças afetam as articulações, os músculos, as cartilagens e os ligamentos.

  • DOENÇAS CRÔNICAS

    É comum que pessoas com condições que não têm cura ou persistem por vários anos e exigem tratamento constante, como diabetes, obesidade e problemas cardiovasculares, também apresentem dores crônicas. Isso ocorre por conta da condição de saúde do paciente e alguns tratamentos.

  • PROBLEMAS NA COLUNA

    Entre as doenças na região dorsal que provocam desconforto constante estão a hérnia de disco, a artrose e o bico de papagaio.

  • CIRURGIAS

    Existe uma condição conhecida como dor crônica persistente pós-operatória. Essa situação causa dor por mais de dois meses em pessoas que realizaram algum tipo de cirurgia. É comum que ocorra após procedimentos cirúrgicos de reparação de hérnias, amputações e revascularização miocárdica.

'Um tombo mudou a minha vida'

A assistente administrativa Viviani Bertholetti, 38, escorregou na escada do trabalho e bateu o ombro e o tornozelo. Era 2006 e até hoje ela convive com dores por causa do acidente.

"Pouco tempo depois, comecei a sentir uma dor de cabeça horrível. Fui para o hospital e o exame mostrou que a torção causou um vazamento do líquido da coluna. Já fiz mais de seis procedimentos para fechar o local."

Ela, que mora na cidade de Cajuru, no interior de São Paulo, recebeu o diagnóstico de aracnoidite adesiva e dor neuropática. Devido a essas condições, diminuiu o ritmo, pois as dores são excruciantes.

Tive que parar totalmente minha vida. Deixei de estudar e trabalhar e, de repente, me vi na cama chorando de dor. Tenho um filho e não conseguia cuidar dele. Sentia como se fosse uma cãibra na perna toda. A sensação era que tomava um choque e depois queimava. Não aguentava nem a roupa encostando na pele.

Para lidar com a situação, ela já usou um tipo de neuroestimulador medular que estimula o cérebro a não enviar sinais de dor. Também segue tomando diversos medicamentos, faz radiofrequência e atualmente usa o implante de bomba de morfina, que tem sido bastante eficaz.

Para cada dor, um tratamento

"Não existe um tratamento que seja eficaz para todas as síndromes dolorosas crônicas. Geralmente, há a necessidade de associar o uso de medicamentos com fisioterapia e procedimentos intervencionistas, como bloqueio de nervos ou infiltração de substâncias", destaca Rioko Sakata, professora e coordenadora do setor de dor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

  • Medicamentos

Entre os remédios mais usados estão analgésicos simples, relaxantes musculares, opioides e "adjuvantes" —medicamentos que não foram desenvolvidos inicialmente para tratar dores crônicas, mas que são eficazes para isso. Entre eles, estão os antidepressivos e os anticonvulsivantes.

  • Procedimentos intervencionistas

Geralmente, são indicados quando não há melhora com medicamentos e reabilitação. São técnicas usadas para bloquear a dor. Destacam-se infiltrações, radiofrequência, aplicação de botox, entre outros.

  • Fisioterapia

A dor crônica pode atingir músculos, nervos e articulações. Muitas vezes, a reabilitação é uma medida terapêutica indicada. Por meio de exercícios específicos e alongamentos, é possível restabelecer a estrutura acometida e promover a liberação de diversas substâncias analgésicas na corrente sanguínea.

  • Cirurgias

Quando a dor crônica passa a ser a doença em si e outros tratamentos não se mostram eficazes, pode ser indicada uma cirurgia. Entre os tipos mais comuns estão a implementação de neuroestimuladores (como se fosse um marcapasso) que bloqueiam a condução da dor ou de bombas de infusão, que injetam a medicação diretamente na medula.

'Durante as crises, grito e choro o dia inteiro'

Por cinco anos, Mickaelly Santos, 20, procurou médicos para identificar a causa de dores tão intensas no maxilar. Chegou a realizar uma cirurgia para extrair parte da gengiva e dois dentes. Mas dor continuou a atormentar seus dias.

A moradora de Betim (MG) perdeu as contas de quantos especialistas buscou para ter uma resposta. Apenas após o diagnóstico de neuralgia do trigêmeo entendeu o que estava acontecendo. A condição provoca crises de dores intensas em um nervo que controla a musculatura da mastigação e a sensibilidade facial.

É uma dor no ouvido com choques. As crises são insuportáveis. Já acordei gritando e chorando. Parece que estou perdendo os dentes ou que um caminhão passou pela minha cabeça.

As dores podem durar desde cerca de três minutos ou permanecer por vários dias —e depois ficar meses sem aparecer. Mas ela sabe que uma hora o sofrimento vai voltar.

"Quando acontece não consigo fazer nada sozinha. Fico 'dopada' por conta dos medicamentos. As pessoas não acreditam em mim. Você me olha e parece que não tenho nada."

Por conta da dor e das sequelas, Mickaelly perdeu o emprego. Atualmente, não consegue pagar os medicamentos que aliviam, mesmo que momentaneamente, suas crises.

Sequelas a longo prazo

Quando a dor se instala no organismo e não há medicamento ou outro tratamento que ajude a controlá-la, é comum que a pessoa desenvolva depressão e ansiedade.

  • Normalmente, pacientes com dor crônica não dormem bem, perdem o apetite, não têm energia, se cansam facilmente, ficam mais irritados, nervosos e não conseguem se concentrar.
  • Muitos desenvolvem dependência química e abusam do álcool e de drogas ilícitas.
  • Quem tem dor crônica, geralmente, enfrenta o isolamento social e há comprometimento nos relacionamentos.
  • É comum que percam a capacidade laboral, ou seja, ficam sem trabalho e renda.
  • Em casos mais graves, ocorre a perda de autonomia e da independência para realizar atividades básicas, como manter a higiene ou se alimentar.

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