Iguais, mas únicos

Personalidade é como um retrato particular e ao mesmo tempo um universo a ser explorado pela ciência

Marcelo Testoni Colaboração para o VivaBem

Estima-se que em 2021 a Terra tenha passado dos 7,8 bilhões de seres humanos. Todos pertencentes à mesma espécie, Homo sapiens, sujeitos a agrupamentos por cor, classe social, religião, geração, traços comportamentais, mas únicos em se tratando de personalidade.

Esse termo da psicologia vem de "persona", máscara, em latim. Se na Antiguidade o acessório era utilizado para distinguir os personagens de teatro, hoje a personalidade denota a maneira como nos apresentamos socialmente. Constitui uma organização de características definidoras, próprias do nosso modo de sentir, pensar e se expressar em relação ao mundo.

Mas o que será que forma nossa personalidade: o ambiente ou nossos genes? Ou seria uma mistura dos dois? Isso explicaria por que gêmeos criados pelos mesmos pais podem ser tão diferentes?

Descobrindo como a personalidade se forma, conseguimos moldá-la e mudar quem somos (ou como serão nossos filhos)?

Como desenvolvemos nossa personalidade?

Cada personalidade segue um padrão recorrente e estável, mas isso não quer dizer que seja estática, imutável. O processo de desenvolvimento é gradual e se inicia na infância —há quem considere até antes, no útero materno.

Aos 8 meses de vida, a criança já pode apresentar ataques de raiva. Entre 1 e 3 anos, a imitar os adultos, questionar decisões e desafiar os próprios limites. Dos 3 aos 4 anos mostra que tem opinião e aprende a resolver conflitos.

Com o ingresso escolar até os 6 anos, sua consciência se torna cada vez mais complexa, assim como seu conhecimento sobre as relações humanas e, sobretudo, sobre si mesma. Entre os 8 e os 14 anos, ocorrem grandes e súbitas mudanças no organismo e que influenciam no nosso modo de ser, sentir e pensar.

A personalidade também muda em relação às pessoas e, quando adultos, amadurece, mas ainda assim é plástica e adaptável. De acordo com um projeto da Universidade de Edimburgo, na Escócia, a personalidade em idosos se altera à medida que as mudanças em suas vidas começam a ser mais rápidas e intensas, relacionadas a perdas diversas.

Já alterações repentinas, extremos de humor e alucinações podem ter relação com AVC (acidente vascular cerebral), transtornos psíquicos, esclerose múltipla, Alzheimer e Parkinson.

Fatores que moldam nosso modo de ser

  • GENÉTICA

    Estima-se que de 30% a 60% das características de personalidade sejam hereditárias, de acordo com estudos recentes. Já foram identificados genes associados à extroversão, agressividade, ao perfil antissocial, à depressão e a transtornos alimentares.

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  • AMBIENTE

    O contexto em que se nasce, cresce e vive é fundamental para definir se seguiremos, ou não, as tendências de personalidade que vieram do DNA. O ambiente também molda os tipos de comportamento. Pesquisas mostram que maus-tratos e exposição à violência familiar, por exemplo, influenciam no desenvolvimento de comportamento agressivo. O risco de reprodução de tais comportamentos é de 30%.

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  • EXPERIÊNCIAS

    Acontecimentos na infância marcam muito mais do que na adolescência e idade adulta. Carl Rogers, psicólogo americano criador da Abordagem Centrada na Pessoa, defendia que pessoas poderiam usar suas experiências distorcidamente para se autodefinir, tornando-as partes de sua personalidade.

  • EDUCAÇÃO

    A escola traz ensinamentos diferentes dos aprendidos em casa e trabalha e revela as particularidades e escolhas. Integrada ao desenvolvimento mental e somada à realidade da criança, a cultura influencia sua identidade, conduta futura e adaptação social.

  • PUBERDADE

    Com a transição entre infância e adolescência, há uma efervescência hormonal, neural, sexual e emocional que impacta a personalidade. Ampliam-se conceitos, discussões, medos, autorreflexões. Nessa fase, segundo estudos, reduzem-se a autodisciplina dos meninos e a estabilidade emocional das meninas.

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  • ESTILO DE VIDA

    Hábitos atuam diretamente no DNA e as alterações podem ser repassadas para nossos filhos, daí o termo epigenética. Estudos publicados na revista Nature mostram que dependência em drogas e alcoolismo modificam o genoma e aumentam a suscetibilidade ao vício hereditário em até 60%.

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Existem tipos ou traços de personalidade?

Todo ser humano tem personalidade, é um erro achar o contrário. O que pode acontecer é que alguns podem ser mais dependentes, influenciáveis ou reprimidos do que outros. No livro "Tipos Psicológicos", o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung dividiu as pessoas entre "introvertidas" e "extrovertidas", termos posteriormente estudados por outros autores e desdobrados em muitas classificações.

Hoje, "tipo", que é bastante confundido com "traço" (tendência comportamental), não tem sido muito usado na psicologia. A maioria dos pesquisadores acredita que é impossível explicar a diversidade da personalidade humana com um pequeno número de categorias distintas.

Em vez disso, chegaram a cinco grandes características que podem traçar alguém quando combinadas. São elas: abertura, consciência, extroversão, afabilidade e neuroticismo, que contam com um lado oposto, respectivamente de pessoas fechadas, impulsivas, introvertidas, não amigáveis e emocionalmente estáveis.

Esse modelo de seleção ou, para facilitar, teste de personalidade, criado nos anos 1980 pela ciência, é chamado de "Big Five" e nada tem a ver com quizzes de internet. Para saber o que as cinco grandes características revelam sobre você é preciso responder a um questionário, em geral disponível em consultórios ou empresas e agências de recrutamento profissional.

'Big Five' ou Modelo dos Cinco Grandes Fatores

Entenda os grupos das principais características que traçam nossa personalidade

  • ABERTURA

    Indica interesse e curiosidade por experiências relacionadas à arte, à aventura e a assuntos complexos. É um traço que distingue pessoas imaginativas, sensíveis e abertas.

  • CONSCIÊNCIA

    Relaciona-se com objetividade, autodisciplina, persistência. Influencia a forma como freiam-se os próprios impulsos. Em vez de espontâneos, são indivíduos mais planejados.

  • EXTROVERSÃO

    Busca por profundo envolvimento com o exterior, em estar com pessoas. Essa característica é voltada para a ação, a intensidade e a capacidade de se alegrar e de chamar a atenção.

  • AFABILIDADE

    Fator que leva em conta a cooperação com os outros, em ser compassivo e respeitoso aos sentimentos e pensamentos alheios. São pessoas amigáveis e generosas.

  • NEUROTICISMO

    Traço que explica pessoas instáveis, que oscilam de um estado de alegria para um negativo, de raiva, tristeza, ansiedade. Levam a vida como ameaça, estresse, frustração.

Teorias tentam nos encaixar em perfis. É possível?

Analisados os traços do "Big Five" em conjunto, pesquisas sugerem então que existiriam três perfis de pessoas: reservadas (emocionalmente estáveis, agradáveis e conscientes, mas não extrovertidas), autocentradas (pontuam bem em extroversão, mas estão abaixo da média no restante) e exemplares (têm baixa pontuação em neuroticismo e altas nos demais aspectos).

Pararia por aí, até que em 2018 a revista Science anunciou a descoberta de uma possível quarta "personalidade". Com base em mais de 1,5 milhão de dados pessoais, cientistas da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, realizaram o maior estudo de variações de personalidade da história e concluíram que muita gente não se destacava dentro dos três grupos preexistentes.

Foi assim que estabeleceram o perfil normal/mediano (average, em inglês). A pontuação de quem se reconhece nele fica na média e não nos extremos das características do "Big Five". Isso vai se manter nos próximos 10 anos ou até o fim do século? Ninguém sabe, pois as descobertas não param.

A literatura científica dispõe de vários métodos para apontar personalidades. Dos ainda utilizados "Inventário de Temperamento e Caráter de Cloninger" e "Tipologia de Myers-Briggs" a outros considerados por profissionais um pouco mais ultrapassados, como a "Teoria das Personalidades Tipo A (ambiciosas, impacientes e competitivas) e Tipo B (relaxadas e pacientes)".

O caso dos "Três Estranhos Idênticos"

Testes e experimentos com um mesmo grupo de pessoas que são acompanhadas à medida que crescem ou envelhecem são comuns e realizados com frequência por instituições científicas em todo o planeta. Vez ou outra, porém, geram polêmicas pela forma como foram conduzidos. Nesse quesito se destaca um estudo que, em 2018, rendeu o documentário "Três Estranhos Idênticos" (Three Identical Strangers, em inglês), disponibilizado na Netflix.

Encabeçado nos anos 1960 pelo até então Child Development Center —instituição que hoje é a Jewish Board—, com apoio da agência de adoção Louise Wise, ambos nos Estados Unidos, o trabalho científico consistiu em separar trigêmeos idênticos ainda recém-nascidos, para monitorá-los e estudar o que mais influenciaria a personalidade de cada um deles: a genética ou a socialização e o ambiente.

As crianças eram órfãs e foram designadas para serem criadas por três famílias socioeconomicamente distintas, sem que nenhum dos pais soubesse que os bebês adotados tinham irmãos.

Até agora não sabemos o que concluiu a pesquisa, pois o resultado não foi publicado e só estará disponível em 2065, quando termina o período de acesso restrito autorizado pela Justiça americana. Isso porque os trigêmeos acidentalmente se descobriram aos 19 anos, impedindo a continuação do experimento, que posteriormente foi investigado e arquivado por não ter sido autorizado pelos envolvidos. Porém, hoje já sabemos que nossa personalidade é fruto de múltiplos fatores.

Podemos alterar quem somos?

No documentário é mostrado que, após terem se aproximado, os trigêmeos ficaram mais parecidos em comportamento. A ciência explica que a personalidade, embora possa ser influenciada pela interação entre aspectos inatos e acontecimentos da vida, não se altera radicalmente a ponto de nos tornamos 100% contrários, mas que podemos nos esforçar para isso.

Quem é muito tímido, por exemplo, raramente se arrisca em se expor, assim como não é esperado que alguém muito conservador frequente encontros liberais. Mas, por necessidade e com empenho, dá para tentar falar mais em público ou mesmo aceitar ideias diferentes. Adaptar-se é uma questão de sobrevivência e há vários meios de obter sucesso nisso, inclusive contar com a ajuda de um psicólogo.

Pessoas passionais, instáveis e que reagem antes de pensar têm mais dificuldade. A boa notícia é que permanecer mais ou menos igual reflete uma vida equilibrada. Não dá para ser uma pessoa diferente a cada instante, o que também não é saudável. Você precisa se reconhecer, assim como os outros.

Agora, assumir diferentes comportamentos a depender do ambiente e das relações é natural, isso tem a ver com adaptação ao contexto. É bem diferente de se apresentar "dupla" ou "múltiplas" personalidades e que se alternam não por vontade própria, mas por transtorno.

Quando a personalidade é preocupante

Se os traços de personalidade sugerem padrões de pensamento, percepção, reação e relacionamento estáveis, mas ainda assim são mutáveis e adaptáveis, isso não se aplica aos traços dos transtornos de personalidade. Pessoas com essas condições são caracterizadas por serem inflexíveis, acentuadas, mal adaptativas e carentes de autorreflexão, prejudicando relações e causando sofrimento.

Em geral, os transtornos de personalidade começam a se evidenciar durante o final da adolescência e início da idade adulta, mas durante a infância também é possível e podem ainda se cruzar. O DSM-5, "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais" ("Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders"), da Associação Americana de Psiquiatria, enumera 10 tipos de transtornos de personalidade, divididos em três grupos.

  • GRUPO A (TRANSTORNOS ESTRANHOS OU EXCÊNTRICOS)

    Paranoide (TPP): caracterizado por desconfiança e paranoia; esquizoide (TPE): se isola e mostra desinteresse pelos outros; esquizotípico (TPE): tem ideias e comportamentos excêntricos.

  • GRUPO B (TRANSTORNOS DRAMÁTICOS, IMPREVISÍVEIS E IRREGULARES)

    Antissocial (TPAS): demonstra irresponsabilidade social, manipulação, desrespeito, falsidade, falta de empatia (sociopatia e psicopatia); borderline (TPB): tem intolerância à solidão, inconstância emocional, insatisfação constante; histriônico (TPH): busca por atenção, exageros, superficialidade, provocação; narcisista (TPN): apresenta arrogância, sentimento de superioridade, antipatia.

  • GRUPO C (TRANSTORNOS ANSIOSOS OU APREENSIVOS)

    Esquivo (TPE): apresenta timidez excessiva, ansiedade, sentimento de inferioridade e rejeição; dependente (TPD): demonstra submissão, carência, necessidade de ser cuidado, sentimento de culpa; obsessivo-compulsivo (TOC): caracteriza-se pelo perfeccionismo, pela inflexibilidade, obstinação.

Como são feitos diagnósticos e tratamentos

Os diagnósticos de transtornos de personalidade são realizados por meio de exames clínicos. Um psiquiatra consegue detectar o problema levando em consideração o histórico do paciente e as características apresentadas por ele em consultório —problemas de autoimagem, dificuldades em estabelecer e manter relacionamentos etc. Como muitas condições podem vir associados com depressão, ansiedade e compulsões, é preciso atenção redobrada.

Nesse sentido, também devem ser descartadas outras causas possíveis, como distúrbios mentais, uso de drogas, alcoolismo, traumatismo craniano, doenças neurodegenerativas.

Quanto aos tratamentos, não há medicamentos específicos para reverter transtornos de personalidade, mas os remédios podem amenizar ou controlar os sintomas. Também são indicadas as psicoterapias, direcionadas para uma evolução saudável e construção de ferramentas para melhorar a interação social e de habilidades de enfrentamento gerais.

O apoio da família e de amigos, com uma rede multidisciplinar (além de médicos psiquiatras, psicólogos, acompanhantes terapêuticos, assistentes sociais, grupos de ajuda), é fundamental para evitar recaídas, descontinuidade de recomendações e ameaças de autoflagelo e suicídio.

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