Inflamação: culpada ou não?

O processo inflamatório é vital para o corpo, mas quando se torna crônico vira problema; saiba lidar com ele

Danielle Sanches Colaboração para VivaBem, em São Paulo

O que uma dor de garganta, uma fratura na perna e um corte na mão têm em comum? À primeira vista, nada. Mas, para o corpo, a forma de resolver as três situações é a mesma: gerar uma inflamação no local afetado enquanto trabalha na regeneração dos tecidos danificados.

"A inflamação é algo vital e natural, feito para proteger o corpo e reparar o tecido ou órgão, para que ele volte a funcionar normalmente", afirma Marília Dagostin, reumatologista da Imuno Brasil e médica dos hospitais São Luiz e Santa Catarina, em São Paulo.

O processo inflamatório tem começo, meio e fim. Só que nem sempre funciona assim e, às vezes, o corpo não para nunca de trabalhar.

É aí que entra em cena um segundo tipo de inflamação, considerada maléfica: a crônica ou de baixo grau, que gasta energia do organismo e, a longo prazo, prejudica órgãos e tecidos que estão saudáveis.

Inúmeros estudos já ligaram a inflamação crônica a doenças como obesidade, diabetes, hipertensão, depressão, câncer e até Alzheimer.

Melhor do que tratar, no entanto, seria prevenir. Mas isso é possível? Como? Explicamos abaixo.

Primeiro passo: o que é inflamação?

"A inflamação é uma reação do organismo diante de alguma agressão, que pode ser desde uma infecção até um traumatismo", explica o médico Nelson Iucif, responsável pelo Departamento de Geriatria da Abran (Associação Brasileira de Nutrologia).

  • Ela começa quando o corpo entende que há uma ameaça. Pode ser um corte, uma lesão, uma fratura ou uma infecção causada por vírus, bactérias, fungos etc.; e até contato com substâncias químicas e tóxicas (no trabalho ou pelo fumo, por exemplo).
  • O sistema imunológico é ativado e envia glóbulos brancos (leucócitos) para circundar a área afetada.
  • A partir daí, uma cascata de sinalização química --as citocinas-- avisa as células de defesa que é preciso trabalhar.
  • Ocorre uma vasodilatação, aumentando a corrente sanguínea e facilitando o transporte dos glóbulos brancos, nutrientes e outras substâncias ao local.
  • Calor, inchaço (edema) e vermelhidão surgem na região por causa do maior fluxo sanguíneo.
  • Enquanto "soldadinhos" trabalham para impedir que microrganismos se espalhem, outras células chamadas macrófagos vão remover os restos de tecidos mortos ou danificados para que, em uma próxima etapa, tudo seja reconstruído.

"O principal objetivo do processo inflamatório é que o corpo volte a funcionar de forma plena", afirma André Ramos, médico reumatologista da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo.

Quando o tecido ou órgão é reparado, o organismo produz moléculas anti-inflamatórias para suspender a inflamação.

Na inflamação crônica, isso não ocorre. "Há uma contínua produção de moléculas inflamatórias e diminuição de substâncias anti-inflamatórias", afirma Pedro Saddi, endocrinologista do Fleury Medicina e Saúde, em São Paulo.

O que a inflamação crônica provoca no corpo?

Uma inflamação que dura mais de três meses já é considerada crônica e começa a fazer mal ao organismo.

Em longo prazo, o ataque organizado do corpo —que, vamos lembrar, é muito importante— cria lesões em tecidos e órgãos saudáveis.

"Se um processo inflamatório dura anos, pode levar à perda de função daquele tecido por lesões consideradas irreversíveis", afirma Dagostin.

Há estudos que ligam a inflamação crônica ao surgimento de doenças como diabetes tipo 2, aterosclerose (acúmulo de gordura nas veias e artérias, fator de risco para AVC e infarto) e até demência em adultos mais velhos.

O quadro também cobra seu preço na qualidade de vida. É comum que pessoas com inflamação crônica tenham:

  • 1

    Fadiga

  • 2

    Dores no corpo

  • 3

    Depressão ou ansiedade

  • 4

    Problemas gastrointestinais (como gastrite, diarreia ou prisão de ventre)

  • 5

    Variações de peso (ganho ou perda)

  • 6

    Infecções constantes (imunidade baixa)

Tudo isso é provocado pelo estresse que a inflamação impõe ao corpo. Com o sistema imunológico trabalhando o tempo todo, é natural que a energia seja direcionada para ele e deixe de atender a outras áreas de forma eficiente.

Com sintomas tão inespecíficos, no entanto, é difícil detectar o problema apenas com base em exames. Por isso, o ideal é que o médico peça diversas análises e, a partir da conversa com o paciente sobre seu estilo de vida e histórico familiar, trace um diagnóstico.

Outra forma de avaliar uma possível inflamação crônica —causada ou não por doença autoimune— é a utilização de "escores" para a inflamação, um método que avalia o risco de doenças com base na presença ou não de certos fatores, explica João Alho, reumatologista que atua em Santarém, no Pará.

Alimentos inflamatórios: verdadeiro ou falso?

É comum ver nas redes sociais listas de alimentos que "inflamam o corpo" ou dicas para seguir uma "dieta anti-inflamatória" —como se fosse possível impedir o processo de inflamação crônica apenas seguindo o "cardápio certo".

De fato, alguns alimentos tendem a aumentar a produção de moléculas inflamatórias, afirma Saddi. "Os mais conhecidos são os ultraprocessados, com excesso de açúcar e falta de fibras", explica o especialista.

No entanto, a chave dessa questão não é olhar tanto para os alimentos, mas para a quantidade consumida deles. "É o excesso de calorias, de gordura saturada e de açúcar simples que engorda e causa inflamação", afirma Nelson Iucif. "Até mesmo as boas gorduras podem fazer mal se ingeridas em excesso", alerta.

LEITE E GLÚTEN SÃO VILÕES?

Os dois são apontados nas redes sociais como "altamente inflamatórios". Mas todos os especialistas ouvidos por VivaBem foram unânimes em dizer que não existe comprovação científica desse suposto malefício.

  • Glúten de fato é inflamatório para quem tem doença celíaca --que é a intolerância ao glúten, condição que afeta apenas 1% da população, segundo a OMS. "Mas, para pessoas saudáveis e até mesmo para quem tem artrite reumatoide, câncer ou outras doenças, não faz diferença", diz Alho.
  • Já o leite não causa inflamação e existem estudos mostrando o contrário --ele, na verdade, tem efeitos anti-inflamatórios para pessoas saudáveis e que não sejam intolerantes à lactose.

"Alimentos não são inflamatórios ou anti-inflamatórios. Mesmo os que possuem substâncias antioxidantes precisam de uma quantidade muito grande para terem o efeito milagroso vendido nas redes sociais", alerta Alho.

Alimentos são inflamatórios se a pessoa tem alguma resistência a eles ou se o consumo for excessivo

Luna Azevedo, nutricionista, coordenadora de pós-graduação em nutrição vegetariana e vegana pelo Instituto Luciana Harfenist, no Rio de Janeiro

A vida sem inflamação crônica é possível?

Sim. Mas não existe nada de milagroso ou de novidade na receita que nos leva a ter um corpo desinflamado.

"O que funciona é um estilo de vida saudável. Nenhum alimento ou estratégia isolada é capaz de mudar radicalmente a vida de uma pessoa, é preciso ver o contexto", afirma Azevedo.

Isso significa não apenas olhar o que se come e evitar a obesidade, como também ter hábitos saudáveis importantes para modular e ativar a imunidade:

  • gerenciar o estresse
  • ter boas noites de sono
  • praticar atividade física regularmente
  • não fumar
  • maneirar no consumo de álcool

"É durante o sono, por exemplo, que o organismo realiza uma limpeza de substâncias no cérebro que são pró-inflamação e causam doenças neurodegenerativas", explica André Ramos. "Já a atividade física é anti-inflamatória, pois estimula a regeneração muscular e modula a resposta imune", afirma.

Até mesmo a qualidade da microbiota intestinal —que é bastante influenciada pelo consumo de fibras— pode reduzir ou aumentar a resposta inflamatória do corpo, já que as bactérias presentes no intestino "conversam" com as nossas células de defesa.

Ou seja: nada de milagres à vista. Não é fazer somente isso ou aquilo que vai acabar com a inflamação. O importante é adotar bons hábitos. "Não há nada de novo nessas recomendações. Mas é o que sabemos, é o que a ciência nos diz que funciona", finaliza Marília Dagostin.

Mais reportagens especiais

Doenças negligenciadas: com pouco investimento, elas avançam cada vez mais

Ler mais

Adoçante é vilão ou não? Possíveis malefícios ainda estão sendo estudados

Ler mais

Como cigarro eletrônico invadiu escolas e por que culpa pode ser dos pais

Ler mais

Do que você tem medo? Apesar de parecer algo ruim, sensação preserva vida

Ler mais
Topo