Paciente e protagonista

Método clínico centrado na pessoa permite ao paciente definir tratamento e pode ser solução de queixas atuais

Cristina Almeida Colaboração para VivaBem

O homem é o único animal do mundo que tem consciência de que, um dia, vai morrer. Isso talvez explique por que ter vida em abundância seja o ideal de todas as doutrinas religiosas, e a saúde seja considerada um bem que pertence à categoria de direito humano universal e constitucional.

Garantir saúde e bem-estar à população é prioridade máxima das agendas de institutos de saúde globais e, para esse fim, são investidos tempo e dinheiro em políticas de saúde pública e estratégias para a sua promoção.

De olho nisso, especialistas da área médica estão sempre aprimorando e desenvolvendo modelos capazes de abranger preocupações, necessidades e experiências relacionadas à saúde e às doenças.

A partir da observação da qualidade da comunicação entre médico e paciente e da influência de elementos pessoais e subjetivos no resultado terapêutico, nasceu um novo modelo de atendimento médico: o método clínico centrado na pessoa (MCCP).

Esse tipo de assistência estimula a construção de vínculo entre a pessoa doente e o profissional da saúde, tira o paciente de sua posição passiva e dá poder para que ele tome decisões importantes sobre o tratamento, estabelecendo uma parceria capaz de melhorar a eficiência e a eficácia dos serviços médicos. Será utopia?

Como tudo começou

No passado, os médicos se deparavam com problemas de saúde objetivos e palpáveis. Infecções e pestes eram enfrentadas sem vacinas ou antibióticos. Nascido no século 19, o método clínico tradicional (convencional ou biomédico) foca na doença e no médico, a quem são conferidos autoridade e poder para definir o tratamento. Esta é a prática ensinada nas escolas de medicina até os dias de hoje.

Mas o mundo mudou. E "o processo de transformação da sociedade é também o processo de transformação da saúde e dos problemas sanitários". A observação consta da Política Nacional de Promoção da Saúde, do Ministério da Saúde.

Se assim é, parece natural que o método biomédico viesse a ser questionado. Afinal, ser saudável, adoecer e morrer, no século 21, demandam outros tipos de competências e cuidados.

Tal percepção começou a ficar mais evidente sob a influência de estudos de médicos como Michael Balint —que se dedicava a pesquisas sobre a relação médico/paciente—, Ian McWhinney, Moira Stewart e do psicólogo Joseph Levenstein, cujos interesses eram os atendimentos e motivos pelos quais as pessoas buscavam ajuda médica. Os achados desses pesquisadores resultaram na idealização de um novo modelo para as consultas médicas: o MCCP.

A consulta médica ideal

A médica de família Mírian Santana, da UFV (Universidade Federal de Viçosa), diz que é notório que o método convencional (biomédico) já não é capaz de resolver todos os problemas de saúde e, entre os profissionais da saúde e os pacientes, a insatisfação só cresce.

Esses fatores têm dificultado a prática de uma medicina de qualidade. Por isso, diante do quadro atual, costumamos dizer que o método clínico centrado na pessoa representa uma evolução

O que caracteriza essa prática é que ela foca no aspecto essencial do cuidado, ou seja, busca atender às necessidades do paciente para além da queixa que o levou ao consultório.

De acordo com um artigo publicado no periódico Cadernos de Saúde Pública, é como se o diagnóstico fosse colocado entre parênteses, para, antes, considerar o ser humano vivendo suas incertezas, medos, angústias, entre outros aspectos que compõem a sua vida. A ideia é colocar a ciência —ferramenta que poderá ou não ser utilizada— a serviço desse paciente, que é único.

"O MCCP nos ajuda a fazer uma consulta que estimula o maior entendimento da pessoa, do seu processo de adoecimento em todos os níveis, visando um cuidado mais assertivo", completa a médica de família e comunidade Zeliete Zambon, presidente da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade).

A partir daí, constrói-se, junto ao paciente, um plano de corresponsabilidade —que também é um exercício de cidadania— no tratamento, que o coloca sempre como pessoa autônoma e protagonista da sua própria saúde.

Princípios do MCCP

Se ao paciente se confere maior protagonismo, ao médico se sugere que ele mude a sua forma de pensar. E tal mudança parte da renúncia do controle que, tradicionalmente, foi conferido ao especialista, e se move em direção ao equilíbrio entre os aspectos subjetivos e objetivos, a mente e o corpo de cada paciente, visando a solução da sua queixa (ou doença).

Para ajudar os profissionais de saúde nessa empreitada, os idealizadores do método clínico centrado na pessoa idealizaram passos interativos que devem guiar a consulta. O médico precisa focar e considerar os seguintes aspectos:

  • A doença e a experiência do adoecer
  • A integralidade do paciente
  • O aprimoramento da relação médico-paciente
  • A possível convergência sobre problemas, prioridades, papéis e objetivos do tratamento
  • O estabelecimento de estratégias de prevenção e promoção da saúde
  • Ser realista diante do quadro de saúde do paciente

Pontos fortes da consulta realizada sob a ótica do MCCP

  • Escuta ativa

    O médico faz perguntas, respeita os pontos de vista do paciente e suas preocupações e, ainda, busca saber o nível de compreensão sobre a queixa/doença

  • Respeito

    Necessidades emocionais e psicossociais, preferências e valores da pessoa devem ser respeitados na hora de estabelecer o plano de tratamento

  • Comunicação clara e constante

    O paciente é informado de todos os fatos, inclusive sobre resultados esperados, possíveis efeitos colaterais e incertezas do processo terapêutico. A cada consulta se resolve uma questão

  • Decisão compartilhada

    O paciente é o especialista da própria saúde. Ele é estimulado a integrar a tomada de decisão sobre o plano personalizado de tratamento, e é habilitado a ter maior controle sobre a sua saúde, além de menor dependência de serviços médicos

  • Vínculo forte

    A continuidade da parceria é estimulada. O médico acompanha o paciente, seu tratamento, orienta o acesso a outras especialidades, hospitais, e até mesmo alta hospitalar, quando é o caso

O ponto de vista do paciente

O estagiário de engenharia civil Hiago Afonso Pereira, de São Bernardo do Campo (SP), relata que sua experiência com o MCCP ocorreu no momento em que seu pai teve o diagnóstico de leucemia.

Ele foi atendido no posto de saúde da região onde morava por uma médica de família, que fazia as consultas aplicando esta abordagem. Mesmo diante de um quadro tão grave, o paciente recebeu atenção e seu grupo familiar foi integrado aos cuidados.

Hiago lembra que foi uma surpresa receber a visita da profissional na casa do pai. Ele diz que, em um momento de medo e desespero, trouxe conforto saber que havia uma médica interessada na família.

Tê-la acessível e disponível para explicar com calma tudo o que estava acontecendo —e ainda viria a acontecer— mudou a forma como todos nós, inclusive meu pai, enfrentamos o problema

"O melhor dessa prática é que ela trouxe dignidade para a vida e a morte de meu pai, e para nós também. Sem o método, nós jamais teríamos isso", conclui.

Na opinião de Jessica Leão, médica de família e comunidade da Amparo Saúde, é exatamente esse o maior ganho promovido pelo MCCP: a possibilidade de estabelecer uma relação de confiança, ou seja, criar vínculo.

"Quando isso acontece, e se soma à boa comunicação, tudo fica melhor. O tratamento é mais adequado, o paciente colabora mais porque entende sua importância —e ele ainda se sente parte do processo. Aí, a coisa flui", fala a especialista.

Uma relação em que todos ganham

Entusiasta do método clínico centrado no paciente, Alberto Kazuo Fuzikawa, especialista em clínica médica de Belo Horizonte, afirma que as evidências científicas confirmam as impressões de Hiago: os pacientes se sentem mais confortáveis e confiantes com os serviços médicos —em boa parte porque são compreendidos como um todo.

O médico pondera que, hoje, a tendência é fragmentar as pessoas, até mesmo por meio de um tuíte, um pedaço de informação pelo qual se julga quem é o autor. "Mas esta é apenas uma expressão mínima dele. O MCCP busca exatamente o contrário", diz.

O método propõe que haja uma abertura sem julgamento a priori, além da escuta atenta e ativa e, sobretudo, presença. Aliás, essas práticas deveriam nortear todas as relações

Fuzikawa acrescenta que algumas instituições privadas já se mostram interessadas em treinar seu corpo clínico para esse tipo de abordagem e que, mesmo quando há preocupação em equilibrar fatores econômicos, a literatura sobre o MCCP garante que a maior satisfação do paciente e os melhores resultados na saúde têm impacto positivo nos custos e uso dos serviços médicos.

Entre os profissionais, também há maior contentamento no ambiente profissional, além de menores queixas por negligência.

Apesar de todas essas vantagens, o MCCP ainda não é uma política de saúde pública. Mas há esperança: ela já integra o currículo de alguns cursos de especialização em Medicina de Família no Brasil e no exterior.

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