Fora de ritmo

Quem troca o dia pela noite trava uma luta contra o próprio organismo, que sente os impactos negativos à saúde

Luiza Vidal De VivaBem, em São Paulo Deborah Faleiros/UOL

Não adianta. Somos seres diurnos, ou seja, nosso corpo foi moldado para realizar as funções durante o dia e, à noite, descansar e dormir. É o ciclo circadiano que determina isso durante as 24 horas.

Com a redução da luz solar, o organismo se prepara para dormir. A melatonina, hormônio que induz ao sono, começa a ser produzida em maior quantidade assim que o sol vai embora. Nossa temperatura corporal e a pressão arterial vão diminuindo. É hora de relaxar... Exceto para quem, nessa hora, prepara-se para trabalhar.

Há diversos serviços essenciais que só funcionam no período noturno: algumas pessoas preferem esse horário para realizar suas funções —o maior salário por causa do adicional noturno e o silêncio são alguns dos motivos. Outros indivíduos trabalham à noite por falta de opção e tentam manter o ritmo como dá, até que uma nova oportunidade de emprego apareça.

O ponto é que trocar o dia pela noite, em curto, médio e longo prazo, impacta a saúde. São consequências graves ao organismo do indivíduo. Isso envolve ganho de peso, que pode levar à obesidade, alterações metabólicas, problemas cardiovasculares e cerebrais, além de favorecer o desenvolvimento de depressão e ansiedade.

Você pode gostar de dormir mais tarde e tudo bem, cada um tem suas preferências. Mas passar noites acordado é um caminho arriscado, uma briga constante contra o próprio relógio biológico em que não há como sair ileso.

O que acontece ao trocar o dia pela noite?

Quando trocamos o dia pela noite desalinhamos nosso ciclo circadiano. Isso gera várias alterações no organismo, especialmente na produção de melatonina, cortisol (hormônio do estresse) e GH (hormônio do crescimento) —os dois últimos responsáveis por fazer o corpo "acordar" e enfrentar o novo dia.

Com o impacto no metabolismo, há maior risco de desenvolver obesidade, hipertensão e diabetes tipo 2. Consequentemente, aumenta a probabilidade de ter problemas cardiovasculares. É como se fosse uma bola de neve que só vai ficando maior.

Um estudo da USP (Universidade de São Paulo) com trabalhadores noturnos mostrou que, além do maior risco de doenças relacionadas com a síndrome metabólica, virar a noite favorece o envelhecimento precoce, pois modifica as reações fisiológicas responsáveis pela proteção contra agentes oxidantes.

A saúde mental também é afetada: a pessoa tende a relatar mudanças no humor, além de transtornos ansiosos e sintomas depressivos. Ela fica mais estressada e cansada.

Trocar o dia pela noite ainda causa outras consequências negativas ao cérebro. É durante o sono que fazemos uma grande manutenção do que aprendemos no dia e formamos memórias —ou simplesmente as descartamos. Quando não dormimos bem, isso é totalmente impactado: ficamos mais distraídos e temos maior dificuldade de aprendizado.

Quando mexemos no ciclo circadiano, a lista de consequências é longa.

Sono é essencial para a sobrevivência. Ele é tão essencial que se você não dormir por vários dias, você morre. Precisamos dar dimensão da importância do ato de dormir. As pessoas, quando precisam cortar algo para ter mais tempo, diminuem as horas de sono como se fosse a coisa mais simples do mundo e que, um dia, elas poderão repor. Mas não é bem assim.

Claudia Moreno, bióloga especialista em cronobiologia e vice-presidente da Associação Brasileira do Sono

Relações sociais abaladas

Há nove meses, Angel Matheus Araujo, 22, resolveu mudar seu horário de trabalho como motorista de Uber. Pelas ruas da cidade de Boa Vista, em Roraima, ele dirige das 18h às 6h. "Prefiro esse horário porque o valor das corridas é mais alto", explica.

Angel conta que se adaptou rapidamente por causa de empregos anteriores à noite ou de madrugada —como cozinheiro e barman. Mas também tem consciência de que a mudança na rotina traz impactos na vida dele.

Sono perdido não se recupera. A alimentação também é difícil de regular, o que me causa, às vezes, mal-estar, mau humor e estresse.

O motorista é casado com Ágata e tem um filho de quase 2 anos, o Ravi. Como está trabalhando no horário em que as pessoas normalmente têm "tempo livre", isso impacta suas relações sociais e familiares, principalmente com a esposa. "No começo, abalou bastante, mas depois conseguimos nos adaptar e conciliar as atividades", diz.

Hoje, já mais acostumado, Angel preza para manter a rotina de exercícios físicos, pois também é atleta de futebol americano, além de uma alimentação equilibrada e, principalmente, um tempo para namorar a esposa. Quando precisam de ajuda para encaixar os horários, contam com o serviço de uma babá.

"Fiz as pazes comigo"

3h30 é a hora em que a jornalista Maiara Bastianello acorda para iniciar o dia. Ela trabalha no telejornal "Bora SP", da TV Bandeirantes, que começa às 5h50. Faz a previsão do tempo, passa alguns textos na TV e, depois, realiza reportagens na rua.

Vespertina, Maiara, 36, estava acostumada a trabalhar em horários "mais comerciais" e sofreu bastante para se adaptar.

"Tinha medo de perder a hora e acordava muito durante a noite para ver o relógio", conta. Precisou até se consultar com um especialista e fazer o exame de polissonografia, para avaliar a qualidade do sono. O resultado mostrou que estava tudo normal.

A primeira coisa que o médico falou para a jornalista foi: "Você está indo contra o seu ciclo circadiano. Coloque um prazo e saia do emprego". No entanto, "sair" não era uma opção.

Já entendi que vou sempre passar o dia com sono porque acordo às 3h30. Não é o natural. Mas já fiz as pazes comigo.

Para isso, teve de fazer uma grande adaptação: colocou janela antirruído no quarto, usa óculos escuros a partir das 17h30 (para ir preparando o corpo para dormir), não vê TV nem mexe no celular horas antes de ir para a cama —onde só vai quando está com sono— e escuta músicas leves para adormecer. Também faz exercícios físicos com frequência e tem acompanhamento com uma psicóloga do sono.

Quando o relógio marca 19h30, para Maiara, é hora de dormir.

É tão ruim trocar o dia pela noite que a sociedade precifica. O trabalhador ganha adicional noturno porque nem todo mundo quer aquele serviço. Faz muito mal à saúde, tudo fica pior: tem maior risco de ter obesidade, depressão e insônia. A pessoa sai completamente dos ritmos naturais dela.

Geraldo Lorenzi Filho, pneumologista e diretor do Laboratório do Sono do InCor

Como reduzir o impacto de trabalhar à noite

  • 1

    Durma (mesmo que pouco)

    A privação de sono é uma das principais responsáveis pelas consequências negativas à saúde de trocar o dia pela noite. Portanto, é fundamental ter um mínimo diário de horas para dormir --mesmo que esteja claro, mesmo que não seja o tempo considerado ideal.

  • 2

    Mantenha sua rotina de sono

    Nas folgas ou aos finais de semana, tente seguir o mesmo horário que você vai dormir nos dias de trabalho.

  • 3

    Melhore o ambiente

    Quando for dormir, tente ter um ambiente propício para isso: use cortinas para deixar o local mais escuro e elimine o barulho (com protetor de ouvido, por exemplo).

  • 4

    Adote hábitos mais saudáveis

    Tenha uma boa alimentação e inclua a prática de atividades físicas no dia a dia.

  • 5

    Procure um especialista

    Se possível, passe em uma consulta médica para receber orientações e, assim, organizar seu sono e sua rotina. Procure, de preferência, especialistas no assunto.

  • 6

    Busque outra oportunidade

    Se isso for algo dentro de suas possibilidades, os especialistas explicam que é importante procurar outro trabalho que não seja noturno.

Relógio biológico: cada um tem o seu

Trocar o dia pela noite é diferente de quem, por exemplo, prefere dormir mais tarde. Cada pessoa irá se adaptar melhor em determinado horário —isso se chama cronotipo, algo definido principalmente pela genética.

Há aqueles que funcionam melhor no período da tarde e/ou da noite, os vespertinos. Há quem prefira iniciar o dia bem cedo, os chamados matutinos —essas pessoas, inclusive, seriam mais felizes e saudáveis, de acordo com um estudo realizado em 2012, publicado no periódico Emotion. Por outro lado, o simples ato de ir dormir mais tarde já é capaz de aumentar o risco de morte.

A média ideal da quantidade de sono é de oito horas diárias, mas isso também varia: algumas pessoas dormem seis horas, por exemplo, e ficam bem (são os chamados dormidores curtos). Já alguns precisam de mais tempo, entre oito e nove horas de sono por noite (os dormidores longos).

Desde que isso não impacte na qualidade do sono, não há problemas. Até porque não adianta dormir por nove horas e não se sentir revigorado. O sono deve ser, prioritariamente, de qualidade.

Existem ainda as doenças que alteram o nosso ciclo circadiano, principalmente as neurodegenerativas, como o Alzheimer, além de pessoas diagnosticadas com transtorno do ciclo vigília-sono, quando os horários delas são invertidos. Todas as situações podem ser tratadas com auxílio de especialistas.

O desejo de mudar de área

"Trabalho à noite há 9 anos", explica a biomédica Patricia Ribeiro, 31. Por atuar em um laboratório hospitalar de São Paulo, seu expediente é em turnos: faz 12 horas de trabalho e folga 36 horas seguidas.

Ela vai dormir por volta das 9h e, geralmente, levanta às 14h. Chega ao hospital às 19h e vai até as 7h do dia seguinte.

Você não dorme do mesmo jeito que dorme à noite. Por mais que eu durma o dia todo, não descanso. Você também come errado. Engordei 20 kg porque não consigo me alimentar bem.

Por conta das alterações no metabolismo, ela tem dificuldade para perder peso. Além disso, Patricia diz estar "esgotada" dessa rotina. Não é só o cansaço. A biomédica já perdeu momentos importantes na vida social, como festas e viagens.

Por outro lado, acha motivador o adicional noturno que aumenta em quase R$ 900 seu salário. Também gosta de ficar sozinha no ambiente de trabalho, sem ninguém cobrando ou atrapalhando sua concentração nas análises clínicas.

Mas, em breve, pretende mudar de área. Enquanto esse dia não chega, segue à risca sua rotina: volta para casa, deita-se na cama, coloca os tampões no ouvido e dorme até mais tarde.

É complicado trabalhar à noite. Temos que orientar as pessoas para que seja um processo curto. Não dá para ficar tanto tempo nessa vida porque há diversos prejuízos. Mesmo quando esses indivíduos voltam para a rotina normal, é muito duro: eles ficam mais insones e com o sono bastante fragmentado. É bastante evidente.

Luciane Luna de Mello, médica especialista em medicina do sono e pneumologista do Instituo de Sono

Como ter uma boa noite de sono

  • 1

    Vá para a cama apenas quando realmente estiver com sono

  • 2

    Evite substâncias estimulantes antes de dormir, tipo cafeína

  • 3

    Evite telas (celular, TV, computador) cerca de duas antes de dormir

  • 4

    Deixe o ambiente propício para o sono: escuro e sem barulhos

  • 5

    Tenha rotina de sono, mantenha os horários de sempre

  • 6

    Faça atividades físicas, mas não cerca de duas horas antes de ir dormir

  • 7

    Cuide da sua saúde mental

  • 8

    Mantenha uma alimentação saudável

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