Se antes as propagandas de cigarro, quando eram permitidas, mostravam o galã da época feliz e "saudável", andando a cavalo enquanto fumava, hoje a história mudou e há um novo apelo. Basta ligar o celular e encontrar influenciadores digitais usando algo muito mais moderno e atraente: o cigarro eletrônico, conhecido também como vape, pod, jull e até pendrive —pelo fato de se parecer com o dispositivo.

Pequenos, "saborosos" e cheirosos, os DEFs (dispositivos eletrônicos para fumar) funcionam da seguinte maneira: ao colocar o produto na boca e sugá-lo, o líquido (essência) inserido no cartucho é aquecido internamente e, depois da tragada, resulta no tal do vapor —que, segundo os médicos, pode, sim, ser chamado de fumaça.

Apesar de estarem proibidos no Brasil pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), esses produtos são facilmente comprados na internet ou em lojas de tabacaria e estão cada vez mais populares entre pessoas de 13 a 24 anos, conforme mostram pesquisas recentes. Por isso, não é difícil encontrar adolescentes e jovens adultos usando o dispositivo em bares, festas e até nos arredores de escolas —e, às vezes, dentro delas.

Após um longo tempo de análise, a Anvisa não liberou os cigarros eletrônicos, pois eles oferecem diversos riscos à saúde, como dependência de nicotina (presente na grande maioria) e problemas no pulmão e no coração, principalmente.

Entidades médicas, instituições e profissionais de saúde e da educação pedem mais fiscalização, além de campanhas para orientar os jovens e seus responsáveis sobre os perigos desses dispositivos.

Por acharem que os cigarros eletrônicos são inofensivos, muitos pais acabam permitindo que os adolescentes usem os produtos em festas ou até em casa, sem saber que isso pode levar seus filhos a se transformem na nova geração de fumantes —além de sofrerem com diversos problemas de saúde.

'É um pendrive, professora'

Quando as aulas presenciais retornaram, em agosto de 2021, Eliane Nieman Mello notou um cenário novo na escola em que é diretora, localizada na zona sul de São Paulo: muitos estudantes, de 12 e 13 anos, falando (e usando) do tal do cigarro eletrônico.

Uma das alunas do 7º ano do colégio particular levou o produto e mostrou para as amigas. Quando uma das coordenadoras perguntou o que era aquilo, a adolescente disse ser um pendrive —os vapes estão cada vez mais parecidos com produtos do dia a dia de adolescentes.

Mas Eliane sabia exatamente o que era o dispositivo. Quando questionou a aluna, a garota confirmou a suspeita e disse, repetidas vezes, que aquilo não fazia mal. "Já percebi que os jovens não têm noção do quão perigoso é o cigarro eletrônico", conta.

A diretora tentou resolver a história conversando e alertando os pais. O problema é que muitos não acham que o cigarro eletrônico faça tanto mal assim para o corpo —o que dificulta o controle do uso.

Alguns pais proíbem o consumo de álcool, mas permitem que os filhos usem o cigarro eletrônico. Há uma falta de informação, então, por mais que eu fale que faz mal, vem um outro lado e diz: 'Não, não faz mal'. Eliane Nieman Mello, diretora de uma escola em São Paulo

Outro ponto levantado por Eliane é a facilidade de acesso: os alunos conseguem comprar em qualquer lugar —apesar de a venda dos dispositivos ser proibida no Brasil, com multa diária de R$ 5 mil para estabelecimentos que comercializarem o produto.

Dentro da escola ocorreram outros casos, e o que os profissionais de educação tentam fazer é sempre alertar, dar informações baseadas na ciência e realizar palestras com especialistas, sempre que possível. Mas será que é o suficiente?

O jovem precisa compreender que ele está com um dispositivo eletrônico na boca. Existem vários riscos à saúde e eles não se dão conta disso porque temos a indústria do tabaco dizendo que é um produto menos danoso. Então, a gente vai absorvendo essa ideia e normalizando o uso. Mas esse produto veio da indústria que mata mais da metade dos seus consumidores. Não podemos nos esquecer disso.

Andréa Reis, pedagoga e chefe da Divisão de Controle do Tabagismo e Outros Fatores de Risco do Inca (Instituto Nacional de Câncer)

Novidade, cheiro e sabor: o que atrai os mais jovens

Camila Chamas* e Letícia Camargo têm algo em comum. As duas usam o vape principalmente nos fins de semana, em festas e com amigos. O que atraiu as jovens de 20 anos foi a curiosidade e o cheirinho bom do vapor. As duas fumavam narguilé (produto de tabaco e também perigoso à saúde) e o cigarro eletrônico apareceu como uma opção mais agradável.

"Comecei a usar mais em festas, aquilo de ver todo mundo com um na mão. Fui experimentando de algumas pessoas e aí resolvi ter o meu. Assim, peguei o costume de, todos os fins de semana, comprar um", conta Camila, que é estudante em São Paulo.

Deborah Carvalho Malta, médica e professora da escola de enfermagem da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), coordenou um estudo sobre o tema (veja abaixo) com jovens de 13 a 17 anos. Ela conta que, hoje, o cigarro eletrônico já é visto como um grande problema de saúde pública.

"Os jovens vão sendo induzidos pela indústria [do tabaco], que afirma que o produto é inofensivo e que, inclusive, é uma opção para ajudar a largar o cigarro comum, reduzindo danos. Mas isso é uma falácia, é um produto do marketing", explica.

Segundo a médica, o cigarro eletrônico tem feito exatamente o oposto com os mais jovens: é uma forma de iniciar o hábito de fumar, que depois leva ao uso do cigarro tradicional —conforme um estudo do Inca já apontou. "Ele tem vários atrativos [para associar o ato de fumar a algo agradável]: a forma, a cor, o cheiro, o gosto", afirma Malta.

*O nome foi alterado a pedido da entrevistada.

'Tive vidro fosco no pulmão'

Anthony Rodrigues*, 20, fumava o cigarro tradicional e o eletrônico. Em 2019, ele começou a ter problemas no pulmão (algo que é relatado por outros jovens): ao praticar esportes, sentia muita falta de ar e fadiga.

O médico, então, pediu uma tomografia, que mostrou "vidro fosco" no pulmão —problema caracterizado por uma lesão inflamatória no órgão, mas sem muita especificidade, como ocorreu com o sertanejo Zé Neto em dezembro do ano passado.

Como estava ao lado da mãe, o jovem omitiu a parte do cigarro tradicional e citou apenas o vape —o uso dos dois é ainda mais agressivo para a saúde, segundo os médicos. Anthony logo cortou o cigarro eletrônico e diminuiu o uso do convencional. Ainda sente um certo cansaço, mas já está melhor.

"O vape tirava minha vontade de fumar o cigarro tradicional, então usava mais o eletrônico. E, quanto mais você fuma o dispositivo, mais você quer experimentar outros sabores", conta o jovem de Cuiabá.

De acordo com especialistas, utilizar esses produtos nesta faixa etária pode ser ainda mais agressivo para o corpo. Motivo: além do maior risco de ter dependência química, o pulmão —porta de entrada do vapor— ainda está em desenvolvimento.

"O órgão se desenvolve entre os 12 e os 25 anos. Quando você submete o pulmão a tanta agressão, seu desenvolvimento é menor. A reserva que ele precisaria para funcionar bem até os 30 anos diminui", afirma João Batista de Sá, pneumologista do Hospital Universitário da UFMA (Universidade Federal do Maranhão).

*O nome foi alterado a pedido do entrevistado.

Sou professor do ensino fundamental e médio em uma escola pública. Ocorreu um único caso no colégio, quando um aluno de 13 anos trouxe o objeto e fumou dentro da sala de aula. O produto foi tomado e os pais foram notificados. Não tivemos nenhuma orientação sobre as medidas a serem adotadas, só que nas minhas aulas eu não deixarei ninguém fumar, somente se vier uma ordem de instâncias superiores.

Thiago Sprovieri, professor de uma escola pública de São Paulo

Mitos e verdades do cigarro eletrônico

  • MITO: AJUDA A PARAR DE FUMAR

    Diversos estudos já mostraram que o cigarro eletrônico não trata o tabagismo --seria como trocar um tipo de cigarro por outro. De acordo com pesquisa do Inca, para quem não fuma, o efeito é justamente o contrário: uma porta de entrada para o tabagismo tradicional. Para quem deseja abandonar o cigarro comum há outras alternativas mais eficazes e menos nocivas, como adesivos e chicletes de nicotina.

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  • MITO: O VAPOR É SOMENTE ÁGUA

    A fumaça (vapor, aerossol) é, sim, prejudicial à saúde. As substâncias presentes no líquido inserido no produto são tóxicas e cancerígenas. O vapor inclui partículas ultrafinas, que desencadeiam processos inflamatórios pelo corpo e estão diretamente relacionadas com doenças cardiovasculares.

  • MITO: NÃO EXISTE FUMO PASSIVO

    O vapor é prejudicial à saúde do fumante e também das pessoas ao redor, que podem ser impactadas pelo aerossol repleto de substâncias tóxicas e cancerígenas --como ocorre com o cigarro comum.

  • MITO: NÃO TEM NICOTINA

    De acordo com os especialistas, a maioria dos e-líquidos possui uma quantidade de nicotina que, quanto mais inalada pela pessoa, mais dependência pode causar.

  • VERDADE: O USO PODE MATAR

    Em outubro de 2019, a evali, doença pulmonar relacionada ao uso de cigarro eletrônico, adoeceu mais de mil pessoas e matou mais de 20 nos Estados Unidos.

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  • VERDADE: AUMENTA O RISCO DE USAR O CIGARRO COMUM

    Segundo estudo do Inca, pessoas que fumam o dispositivo eletrônico têm maior risco de iniciar uso de cigarro convencional.

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  • VERDADE: O PRODUTO PODE EXPLODIR NA BOCA

    Já existem relatos de explosão da bateria de cigarros eletrônicos. Isso pode resultar em queimaduras graves, inclusive na garganta e no pulmão, segundo os médicos.

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  • VERDADE: O CIGARRO ELETRÔNICO VICIA

    Como a maioria dos e-líquidos possui nicotina, há maior risco de dependência da substância com o uso dos DEFs (como acontece com o cigarro comum).

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O cigarro eletrônico é um cigarro. Se uma pessoa parou de fumar o tradicional e recebe nicotina de outro tipo de cigarro, ela continua fumando. Segue igual, mas a proposta da indústria do tabaco é criar uma falsa distinção entre as duas coisas.

Paulo Corrêa, pneumologista e coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da SBPT (Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia)

Muito além do pulmão: o que o uso dos DEFs pode causar?

'Eles usam porque dá um barato'

Flávia Ramos, professora em São Paulo

"Dou aula de matemática para o ensino médio, para alunos de 15 a 18 anos, em uma escola pública de São Paulo. Boa parte deles já tem independência financeira. Desde alunos estudiosos até os menos interessados usam cigarros eletrônicos e/ou narguilé.

É proibido dentro da escola, mas eles dão um jeitinho. Usam a tomada da sala de aula para carregar os tais cigarros.

Outro dia, fiz algumas perguntas para um aluno que pediu para usar a tomada. Quando os outros perceberam sobre o que estávamos falando, eles vieram participar. Foi aí que conheci diversos tipos de cigarro eletrônico.

Os jovens não fazem a menor cerimônia para falar sobre o assunto. Alguns sabem o mal que os dispositivos geram e tentam reduzir os danos não tragando a fumaça. Outros tragam porque dizem que dá 'um barato', mesmo sabendo o quanto isso é ruim.

Eles não fumam cigarros comuns porque não dá para fazer 'bolinha' com a fumaça.

Há um misto de atrativos para a escolha do cigarro eletrônico: o sabor, o cheiro, a 'brisa' e a disputa para ver quem tem mais habilidades com a fumaça. Segundo os alunos, a maioria dos pais sabe e permite o uso.

Eu, particularmente, não gosto de entrar em atrito com aluno. Por isso, faço um combinado: deixo que usem a tomada da sala para carregar os cigarros, desde que não fumem dentro da escola ou pelo menos durante minha aula.

Nós recebemos orientações de que é proibido e, se pegar algum aluno, é para levar para a direção. Alguns professores preferem fazer vista grossa dependendo da situação."

*Em nota, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo lamentou o uso do produto dentro de escolas. Quando casos envolvem uso de drogas (lícitas ou ilícitas) ou substâncias tóxicas, a direção entra em contato com os responsáveis pelos estudantes. Além disso, a pasta explicou que criou projetos como parte da formação de professores, para tratar do assunto, e conteúdos que podem ser vistos pelos estudantes.

Problema de saúde pública: como alertar que o produto faz mal?

  • CAMPANHAS EDUCATIVAS

    De acordo com especialistas, a estratégia deve ser parecida com a adotada com o cigarro comum: fazer com que os usuários saibam dos perigos à saúde que os DEFs trazem. Para isso, é importante a participação da sociedade toda, incluindo médicos, escolas, órgãos de saúde e a mídia, além da divulgação de informações em locais públicos.

  • FORTE FISCALIZAÇÃO

    Com a decisão da Anvisa de proibir os dispositivos, os especialistas reforçam que é essencial que ocorra uma vigilância maior nos estabelecimentos que vendem os produtos, inclusive os online, com aplicação de multas.

  • PALESTRAS EM ESCOLAS

    Com o crescente uso entre os adolescentes, os especialistas acreditam que as escolas têm um papel importante de informar alunos, pais e responsáveis sobre os riscos dos DEFs.

  • ALERTAS FOCADOS NOS JOVENS

    De acordo com um estudo dos Estados Unidos, os anúncios para esse público têm maior impacto quando enfatizam as consequências adversas e os danos de cigarros eletrônicos, usando imagens negativas.

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  • DE OLHO NO AMBIENTE DIGITAL

    É fácil encontrar produtos à venda nas redes sociais ou em diversos sites, além de influenciadores fumando o produto em vídeos --o que acaba incentivando o uso. Por isso, é fundamental que os órgãos responsáveis fiscalizem rigorosamente o ambiente digital.

  • REFORÇAR QUE O PRODUTO É ILEGAL

    Pode parecer óbvio, mas é importante relembrar principalmente os pais e os adolescentes de que eles estão usando um produto proibido no país.

Curto o gosto, mas não sou viciada. Não uso no dia a dia, nem em casa, só quando vou sair. O cigarro eletrônico faz mal, tenho plena consciência disso. Na faculdade, bastante gente usa, mas ainda assim vejo mais o pessoal com cigarro normal. Nos rolês em que vou, 80% das pessoas usam algum tipo de cigarro.

Letícia Camargo, 20, estudante em São Paulo

O que a indústria do tabaco diz

No Brasil, os cigarros eletrônicos estão proibidos pela Anvisa desde 2009. Na época, a decisão foi tomada de maneira preventiva e, agora em julho de 2022, após um longo período de discussão com entidades médicas e a indústria, os diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária mantiveram a proibição da venda, importação e propaganda de todos os cigarros eletrônicos.

Em caso de descumprimento da nova norma, o departamento ligado ao Ministério da Justiça determinou multa diária de R$ 5.000 para os estabelecimentos que não cumprirem a medida. A pena será aplicada até que o ponto de venda suspenda a comercialização.

Portanto, os dispositivos que as pessoas compram são ilegais, fabricados ou importados sem nenhuma fiscalização —um ponto que precisa ficar claro, pois a pessoa que fuma o cigarro eletrônico nunca tem certeza do que realmente está inalando.

Nos países em que esses produtos são aprovados, a indústria do tabaco é uma das principais "donas" deles. Grandes multinacionais como a Philip Morris e a BAT (British American Tobacco) compraram participações em empresas de cigarro eletrônicos ou criaram seus próprios produtos.

Na opinião dos porta-vozes da indústria, a regulamentação dos cigarros eletrônicos no Brasil seria a "única forma de controlar" o comércio ilegal e minimizar riscos à saúde —algo que os especialistas consultados por VivaBem discordam, já que os dispositivos eletrônicos são perigosos.

"O único controle possível é por meio da regulamentação", afirma Alessandra Bastos, farmacêutica, ex-diretora da Anvisa e consultora científica da BAT Brasil (antiga Souza Cruz). "Regulamentar o mercado de cigarros eletrônicos, com regras claras sobre publicidade, venda e composição dos produtos, tornaria a fiscalização mais eficiente e ofereceria aos adultos fumantes uma opção legal, de potencial risco reduzido", disse, antes da decisão da Anvisa.

A empresa não explicou qual seria o produto oferecido, até por não haver regras estabelecidas para a venda dos dispositivos no país. "Só seria possível definir os tipos e as especificações para comercialização no Brasil se uma regulamentação fosse estabelecida", diz Delcio Sandi, diretor de relações externas da BAT Brasil.

Já a Philip Morris diz que seu interesse é comercializar por aqui um produto de tabaco aquecido, não um cigarro eletrônico. Ele é parecido com uma caneta, na qual o fumante coloca um cartucho de tabaco (parecido com um cigarro tradicional, só que menor) —e sua queima também ocorre por meio de um dispositivo eletrônico. A principal diferença é que o aparelho usa o cartucho, enquanto os vapes têm um líquido.

"Nosso objetivo é deixar de vender cigarros [tradicionais] e oferecer um produto com menor impacto para os tabagistas (maiores de idade) que vão continuar a fumar", afirma Fernando Vieira, diretor de assuntos externos da Philip Morris Brasil.

Mesmo com a decisão da Anvisa de manter a proibição dos vapes, a empresa diz que "seguirá o diálogo sobre a regulamentação do tabaco aquecido, que é voltado para adultos fumantes, sendo essencialmente diferente dos chamados cigarros eletrônicos."

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