Além da fé

Espaços religiosos ajudam na recuperação de vícios e outros transtornos, mas não devem substituir tratamento

Bruna Alves Do VivaBem, em São Paulo

A religião tem um espaço importante junto à sociedade. E, além da crença no sagrado, muitas pessoas acabam enxergando na fé a solução para cuidar da saúde mental —especialmente em locais em que o serviço público ainda não oferece um amplo atendimento psiquiátrico e psicológico ou onde transtornos são tabus, considerados "fraqueza" ou "falta de espiritualidade".

Mesmo sem comprovação científica de que, sozinha, a crença é eficaz, especialistas em saúde mental concordam que a fé e o apoio oferecido em espaços religiosos têm seu papel em um tratamento psíquico. Ajuda dependentes químicos, pessoas que sofrem com depressão ou ansiedade, estão em processo de luto ou sofreram grandes traumas a lidar com seus problemas —além de fazer com que se sintam pertencentes a um grupo, em conversas com líderes religiosos e praticantes.

No entanto, psiquiatras, psicólogos e teólogos ressaltam que é preciso haver um limite, uma vez que há transtornos que necessitam de cuidado especializado, acompanhamento em longo prazo e uso medicamentos. Abrir mão do tratamento convencional e se apoiar apenas na fé pode não solucionar o problema ou gerar questões ainda mais complicadas.

'Perdi o companheiro de uma vida'

Há quase um ano, a artesã Marlene Rebech Durigan, 64, perdeu o marido, Ademir, com quem foi casada por 44 anos. "Eu sofro bastante. Sinto muita falta de conversar com ele", diz ela.

Ademir fazia caminhada e sempre passava na janela da cozinha quando chegava, pedindo um café para a esposa. O pé de jabuticaba no meio do terreno onde eles construíram sua casa, em Jaboticabal, no interior de São Paulo, também guarda muitas histórias. "Ele dizia que essa árvore ia ficar linda na nossa casa", diz Marlene.

Tudo mudou em 2018, quando Ademir sofreu um acidente doméstico, que resultou em um traumatismo craniano. "Nessa época, eu ligava para o pastor dele todos os dias. Esse pastor me deu muita força e apoio em um momento tão difícil", conta, acrescentando que frequenta a mesma igreja há 15 anos.

Ademir, que era motorista de ônibus, recuperou-se e três meses depois voltou a trabalhar. O casal retomou sua vida e deu andamento a um projeto antigo: a construção de um ateliê em casa. "Ele não chegou a ver pronto. Faltava pouco", lamenta Marlene.

Em 2021, outro acidente doméstico levou Ademir para o hospital, mas, dessa vez, ele não retornou.

Marlene relata que nunca buscou ajuda de um especialista para lidar com o luto. "Não tinha condições financeiras. Existe o SUS (Sistema Único de Saúde), mas eu sei que é uma coisa muito demorada", argumenta. As Secretarias de Saúde consultadas pelo VivaBem não informaram o tempo médio de um atendimento na rede pública (mais abaixo mostramos todo o caminho a percorrer). Os especialistas ouvidos na reportagem dizem que, em grandes cidades, o tempo de espera chega a ser de seis meses —e ele é ainda maior em regiões periféricas.

Marlene não sabe como seria viver o luto sem o apoio de seus pastores. "São pessoas que acolhem. Eles ligam todas as semanas e perguntam se estou bem ou precisando de alguma coisa", conta.

Qual é o apoio encontrado nesses lugares?

  • Ouvir

    Independentemente da religião, é comum as pessoas buscarem seus líderes para uma conversa, dividir suas dificuldades, medos e anseios. Para Alexander Moreira de Almeida, professor associado de psiquiatria da UFJF (Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora), o simples fato de ser ouvido já serve como apoio e faz diferença para quem está em uma situação difícil.

  • Trazer ideias positivas

    Muitas vezes, os líderes disseminam a ideia de que, se você tem um problema, também tem a capacidade de lidar com ele e resolvê-lo. Tal atitude ajuda a melhorar quadros psíquicos. Além disso, espaços religiosos podem auxiliar a pessoa a entender como lidar com suas dificuldades, superar eventos traumáticos ou aceitar que as coisas mudam. "A pessoa pode encontrar uma perspectiva diferente para encarar o problema", diz Almeida.

  • Aconselhar

    Líderes religiosos geralmente aconselham quem frequenta o espaço. Para algumas pessoas, ter quem sugira um caminho a seguir ou instigue uma reflexão pode ajudar muito. "Seja qual for o templo ou a comunidade religiosa, aquele espaço é onde a pessoa tende a ser acolhida e estimulada a seguir seus sonhos", diz Filipe Degani-Carneiro, doutor em psicologia social e professor do Instituto de Psicologia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

  • Estimular o convívio social

    Os que frequentam templos religiosos compartilham da mesma fé, reúnem-se e fazem amizades. "A religião pode ser um espaço de convívio social muito importante, porque mesmo em lugares onde o Estado, a educação e o acesso à cultura são deficitários, a igreja costuma estar presente", explica Degani-Carneiro. O convívio social muitas vezes ajuda a aliviar transtornos como depressão, ansiedade, estresse crônico, entre outros.

  • Prevenir

    Os especialistas dizem que, graças ao apoio social oferecido, os espaços religiosos contribuem para reduzir o risco do surgimento de doenças psíquicas em geral --pelos fatores que já citamos: ouvir, aconselhar, acolher e estimular o convívio social.

  • Auxiliar tratamento

    A religião também ajuda o indivíduo a encontrar um sentido para a vida --algo importante no tratamento da depressão e para lidar com o luto, por exemplo. Em conjunto com um tratamento médico convencional, líderes religiosos podem ajudar no enfrentamento do processo de recuperação, apoiando cada conquista da pessoa, além de lembrá-la de que não deve desistir.

Religião ajuda, mas ciência não deve ser descartada

Diversas pesquisas demonstram que a religião, seja ela qual for, tem um impacto positivo na saúde mental. Um estudo brasileiro, publicado em 2019, na revista científica Frontiers, avaliou por quase três anos pacientes com depressão internados no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

"Nós descobrimos que as pessoas que tinham uma maior religiosidade intrínseca, que é um conceito muito próximo da espiritualidade, possuíam também maior nível de um marcador neurobiológico entendido como um possível indicador de maior neuroplasticidade cerebral", explica o pesquisador, psiquiatra e autor principal do estudo, Bruno Paz Mosqueiro.

Neuroplasticidade é a capacidade que o cérebro tem de expandir conexões e encontrar novos caminhos para continuar funcionando. Várias substâncias, entre elas os antidepressivos, têm o potencial de facilitar a plasticidade do cérebro. Para Paz Mosqueiro, a possível maior neuroplasticidade em pessoas com maior religiosidade talvez explique o benefício da crença para a saúde mental, especialmente na depressão.

Segundo Alexander Moreira de Almeida, pessoas que tenham a sua espiritualidade e uma vida saudável tendem a ter melhor saúde mental e até a se recuperar mais rapidamente de quadros psiquiátricos. "A gente vê isso na prática", diz.

Entretanto, o ideal é não relativizar o tratamento convencional, que tem eficácia comprovada. "A religião não pode ser ciência. Um líder religioso não é alguém habilitado para tratar da saúde mental e resolver questões emocionais. Não é razoável que uma pessoa que precise de uma cirurgia cardíaca tente resolver o problema só com reza e oração", diz Filipe Degani-Carneiro.

Transtornos mentais, como a depressão, muitas vezes necessitam de tratamento farmacológico. Os medicamentos antidepressivos, por exemplo, aumentam a oferta de neurotransmissores e promovem a volta ao estado normal do paciente, oferecendo qualidade de vida. É perigoso abrir mão disso e buscar apoio apenas na religião, pois muitos transtornos psiquiátricos aumentam o risco de suicídio. Portanto, o tratamento adequado (remédio e/ou psicoterapia) é essencial.

"O papel de uma liderança responsável é encaminhar e estimular as pessoas a buscarem ajuda profissional, seja na terapia privada, seja no SUS", afirma Degani-Carneiro.

Quem sofre com transtornos mentais?

Ciência e religião são importantes

Diferentemente do que se via no passado, hoje há uma visão muito mais integrada entre a religião e a saúde mental. "É um equívoco dizer que você tem de escolher entre um apoio religioso ou psicológico. A gente pode unir isso e usar as duas opções, mas nunca em substituição, sempre em trabalho conjunto", afirma o professor Alexander Moreira de Almeida.

Isso é o que pensam vários especialistas e pesquisadores do tema. "Os recursos da comunidade e da medicina devem caminhar juntos. Não é uma competição", acrescenta o psiquiatra Bruno Paz Mosqueiro.

O ideal seria que todos os tipos de tratamentos e apoio estivessem disponíveis para o paciente. Porém, muitas vezes, a comunidade religiosa é o local em que a pessoa encontra mais rapidamente acolhimento e suporte para lidar com questões mentais.

Entretanto, é preciso cuidado com a inversão de papéis, para que a palavra de um líder religioso não seja confundida com a de um ser superior e influencie a vida da pessoa, inclusive fazendo com que ela pare de tomar uma medicação ou de se consultar com um especialista.

"A igreja não pode se propor a substituir os especialistas. Se as comunidades têm a força de ser uma rede de apoio, elas devem favorecer esse apoio com profissionais", comenta Bruno Oliveira, teólogo e doutorando em filosofia pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Por que as pessoas têm dificuldade de buscar tratamento?

Por mais que os tratamentos psiquiátricos tenham evoluído —a maioria dos remédios não causa dependência— e a importância dos cuidados com a saúde mental seja um assunto cada vez mais falado, o tema ainda é cercado de preconceitos e tabus, especialmente entre as populações mais carentes, o que faz com que muita gente não busque ajuda.

"A pessoa não admite que tem uma vulnerabilidade e que ela pode ter uma fragilidade em determinado momento da vida", diz Camilla Braghetta, terapeuta ocupacional do Caism (Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental) da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Outro ponto é a dificuldade de acesso. Heitor Onoda Luiz Caldas, médico psiquiatra, chefe do serviço da psiquiatria do HRBA (Hospital Regional do Baixo Amazonas), em Santarém (PA), ressalta que a saúde mental no Brasil segue sendo negligenciada e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) não são suficientes para atender a demanda.

"A dificuldade de acesso ao serviço público é absurdamente grande, pois carece de profissionais (porque o salário é baixo) e a estrutura não dá conta. Então, muitos pacientes acabam desistindo de se tratar", explica Caldas.

Braghetta diz que, mesmo na capital paulista, muitas vezes não há psiquiatra nem equipe de saúde mental na UBS (Unidade Básica de Saúde). "Às vezes não temos nem para onde encaminhar. Eu conheço um Caps na região central que está sem psiquiatra. Tem a vaga, mas nenhum profissional especializado quer trabalhar lá", lamenta a especialista.

Ela diz que quanto mais afastada for a região dos grandes centros urbanos, mais difícil o acesso. "Se aqui nós já temos problemas, imagine nas zonas mais periféricas ou regiões mais afastadas", diz.

A gente vive em um contexto em que o acesso a serviços públicos de qualidade, sobretudo em regiões mais carentes, é escasso. Então, as comunidades religiosas trazem para a população algo que o Estado não dá conta

Bruno Oliveira, teólogo, doutorando em filosofia pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Como conseguir atendimento especializado

O que o Estado oferta de cuidados à saúde mental

'Vivia caído nas calçadas'

Por 36 anos, as ruas e bares de Maceió, capital alagoana, testemunharam a vida que levou o atual aposentado José Ronaldo Matias Elói, 59. "Eu comecei a beber com 14 anos e mesmo depois de casado não deixei essa vida", conta.

Mas Eliane, sua esposa e católica praticante, insistiu na relação e comentou na igreja sobre os problemas que enfrentava em casa. O padre da paróquia então convidou José para participar de um ECC (Encontro de Casais com Cristo) em um fim de semana.

José foi e se disse tocado pelas palavras do padre. "No final do sábado teve uma palestra, mas parecia que ele estava falando diretamente para mim. Ele dizia que aquilo não era a vida que eu procurei nem o que eu tinha de fazer", diz.

Ao retornar para casa, José sentiu vontade de sair para beber, mas não foi. No domingo, acordou cedo para ir ao encontro novamente. "Foi uma coisa inexplicável que me tocou. Eu entrei com a alma apertada, mas sai com ela tão leve. Eu vi que estava precisando de ajuda", conta.

Ele seguiu as etapas daquele final de semana no ECC e sentiu como se "algo de ruim" fosse saindo aos poucos. "O padre Augusto conversou muito comigo, me deu conselhos e disse que a minha vida seria ajudá-lo na paróquia. Isso foi tocando no meu coração."

Foi quando tomei uma decisão e parei de beber, há 12 anos. Foi graças a Deus e ao padre que, além de me ajudar diretamente, sempre apoiou a minha esposa, com orações nos momentos mais difíceis"

Hoje, com a mesma companheira há 36 anos, pai de três filhos e com um neto, José acredita que a fé o salvou do alcoolismo.

Quantos especialistas existem no país

Quanto mais pobre, maior a religiosidade

De acordo com sete pesquisas da OMS (Organização Mundial da Saúde), realizadas com 6.710 adultos, em seis países das Américas, entre eles, o Brasil, apenas 30% das pessoas que têm problemas de saúde mental recebem algum tipo de tratamento. Dessas, não mais que 40% recebem um tratamento minimamente adequado.

Outro estudo, também liderado pela OMS e com mais de 636 mil participantes, em 24 países, analisou as barreiras que impediam a população de procurar ajuda para combater os transtornos mentais mais comuns. Em casos leves e moderados, o principal fator foi a pessoa não achar que havia um transtorno a ser tratado e acreditar que poderia lidar sozinha com o problema. Já em quadros mais graves, a ideia da dificuldade de acesso foi um dos principais impedimentos para buscar um médico ou psicólogo.

No entanto, Almeida afirma que não é apenas a população mais carente —que demora para conseguir o tratamento convencional na rede pública— que busca apoio na religião. "Pelo contrário. Pesquisas mostram que o uso de terapias complementares, em conjunto com as convencionais, é mais comum ainda entre grupos de maior nível de escolaridade e renda", afirma Almeida.

Porém, vale ressaltar que, no caso das pessoas com maior renda e escolaridade, a crença entra como uma alternativa para cuidar da saúde mental, não a única opção. "No mundo todo, a religiosidade diminui quando aumenta a renda. Isso quer dizer que em países ricos, as pessoas podem recorrer aos médicos e ao sistema de proteção social para cuidar da saúde. Porém, nos países pobres com baixa proteção do sistema de seguridade social, a alternativa é recorrer às religiões", diz José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia, especialista em estudos populacionais.

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