Camila Godoi, 49, musicista, educadora e artista: "Quando era criança, sentia muito desconforto por causa da genitália com a qual eu nasci. Foi no período da ditadura militar, eu vivia em um ambiente muito fechado tanto familiar quanto político. Não sentia ter espaço para me expressar.
Me reprimir foi um modo de proteção. Na época, não raciocinava assim. Mas, hoje, percebo que era uma forma de defesa. Pensava: 'Se eu cruzar a perna de um jeito diferente aqui, vai dar ruim'.
Nunca 'dei pinta' quando criança. Vivia preocupada, com medo de represálias. Para dar conta da situação, fingia que meus pensamentos sobre minha identidade de gênero não existiam.
Na adolescência, não tínhamos, como hoje, outras mulheres transgêneras como referência, inclusive dentro da lesbianidade. Naquela época, a única possibilidade para uma mulher, mesmo que trans, era desejar sexualmente homens. Como não sentia isso, minha cabeça 'bugava'.
Pensava: 'Sou mulher, mas me sinto apaixonada por uma amiguinha da escola'. Era difícil entender o que acontecia.
Me reprimi por décadas. Só aos 44 pude realmente aceitar, me assumir e construir um caminho para viver plenamente como uma mulher"
Não sofri violência ao longo desse processo, pois sou de uma classe privilegiada, branca. Tive condições de me preparar, de ter certos cuidados.
Mas sei que se tivesse 'dado pinta' quando era nova, provavelmente sofreria violência na escola e poderia até ser expulsa do ambiente escolar e familiar.
Reprimir a situação teve um alto preço psicológico. Por outro lado, foi uma proteção até eu aceitar que não iria mais fugir de mim mesma. Mesmo com as dores e perdas, tive condições materiais e uma rede de apoio que me ajudaram a assumir publicamente quem eu sou."