Quando me reconheci trans

Sofrimento, desconforto e alívio: o pensamento de duas pessoas que não se identificaram com o sexo biológico

Luiza Vidal Do VivaBem, em São Paulo

Uma sensação de desconforto com o próprio corpo; um sofrimento difícil de explicar em palavras; uma sensação de que as peças não se encaixam como deveriam. É assim que Camila Godoi, 49, e Masao Hikaru, 50, descrevem quais foram os pensamentos quando se reconheceram trans, ou seja, quando não há identificação com o sexo com o qual nasceram.

Na infância, puberdade ou até mesmo na vida adulta, o reconhecimento trans não tem uma regra e cada pessoa vai seguir o caminho que achar mais adequado —reposição hormonal, cirurgia, entre outros. Também não é papel de um profissional de saúde "atestar" se a pessoa é transexual ou não, e sim ser instrumento de auxílio naquele momento.

Abaixo, Camila e Masao contam sobre como foi sua descoberta e o VivaBem explica com a ajuda de especialistas alguns pontos do processo.

"Se eu cruzar a perna diferente aqui, vai dar ruim"

Camila Godoi, 49, musicista, educadora e artista: "Quando era criança, sentia muito desconforto por causa da genitália com a qual eu nasci. Foi no período da ditadura militar, eu vivia em um ambiente muito fechado tanto familiar quanto político. Não sentia ter espaço para me expressar.

Me reprimir foi um modo de proteção. Na época, não raciocinava assim. Mas, hoje, percebo que era uma forma de defesa. Pensava: 'Se eu cruzar a perna de um jeito diferente aqui, vai dar ruim'.

Nunca 'dei pinta' quando criança. Vivia preocupada, com medo de represálias. Para dar conta da situação, fingia que meus pensamentos sobre minha identidade de gênero não existiam.

Na adolescência, não tínhamos, como hoje, outras mulheres transgêneras como referência, inclusive dentro da lesbianidade. Naquela época, a única possibilidade para uma mulher, mesmo que trans, era desejar sexualmente homens. Como não sentia isso, minha cabeça 'bugava'.

Pensava: 'Sou mulher, mas me sinto apaixonada por uma amiguinha da escola'. Era difícil entender o que acontecia.

Me reprimi por décadas. Só aos 44 pude realmente aceitar, me assumir e construir um caminho para viver plenamente como uma mulher"

Não sofri violência ao longo desse processo, pois sou de uma classe privilegiada, branca. Tive condições de me preparar, de ter certos cuidados.

Mas sei que se tivesse 'dado pinta' quando era nova, provavelmente sofreria violência na escola e poderia até ser expulsa do ambiente escolar e familiar.

Reprimir a situação teve um alto preço psicológico. Por outro lado, foi uma proteção até eu aceitar que não iria mais fugir de mim mesma. Mesmo com as dores e perdas, tive condições materiais e uma rede de apoio que me ajudaram a assumir publicamente quem eu sou."

O que ocorre na mente de pessoas trans

Segundo Daniel Mori, psiquiatra do IPq (Instituto de Psiquiatria) da USP (Universidade de São Paulo), estudos apontam que, mesmo com estrutura diferente em relação ao tamanho e volume, o cérebro de uma mulher trans, por exemplo, funciona de maneira similar ao de uma mulher cis —o mesmo vale para homens trans.

Isso reforça que ser trans não é uma "mera escolha", como muitos argumentam. "É algo que acontece, pode começar na infância e tem base biológica. Não é uma revolução contra o que está estabelecido socialmente, é quem a pessoa é", diz Alexandre Saadeh, coordenador do Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual) do IPq.

Quem trabalha com adolescentes e crianças trans conta que é comum que elas sintam um desconforto intenso e persistente. Quanto mais nova a criança, mais fácil é falar abertamente sobre o assunto, pois elas têm "menos filtro" para se expressar.

"Porém, nem sempre é fácil. A criança tem uma noção de que ocorre algo diferente, mas muitas vezes não consegue nomear. Em alguns casos, a família ou o ambiente reprimem essas expressões de gênero", diz Saadeh.

Quanto mais velho, mais difícil é colocar a sensação em palavras, principalmente se o ambiente não é favorável. Por isso algumas pessoas fazem a transição na fase adulta. Para Mori, o acesso à informação abriu espaço para as pessoas trans e legitimou que a questão existe e é possível. "Por isso, muitas acabam se reconhecendo em outras faixas etárias."

"Eu não consigo ser uma mulher porque não sou uma"

Masao Hikaru, 50, desenhista: "Me reconheci aos 45 anos —o que na comunidade trans chamamos de reconhecimento tardio.

Na infância, apresentava certo desconforto, mas confesso que não posso dizer que já era uma questão naquele momento. Em crianças, uma menina não querer usar vestido ou não gostar de se arrumar, por exemplo, não necessariamente quer dizer que ela é trans. Para mim, eram sinais, eu tinha comportamentos que me levavam a um perfil mais masculino.

Adulta, não me enquadrei como mulher nem me encaixar no papel que minha mãe e a sociedade queriam. Até tentei: casei duas vezes, e um desses relacionamentos foi bem abusivo, das duas partes.

Meu processo de descoberta começou ao ler o relato de um rapaz trans em um grupo do Facebook com pessoas LGBT friendly [amigável ao público]. As mesmas coisas que passavam na cabeça dele apareciam na minha. Então, bateu aquele 'Será?'.

Falei com ele e outros homens trans. Depois, procurei o João Nery, primeiro trans do Brasil a fazer redesignação sexual. Nessas conversas, me reconheci em vários aspectos e as coisas passaram a fazer sentido. Percebi que a vida inteira tentei encaixar peças quadradas em buracos redondos. Mas não ia mais ficar batendo a peça no lugar errado.

Foi uma sensação de alívio enorme que me fez pensar: 'A culpa não é minha e não há nada de errado comigo'. Tudo era muito simples. Não conseguia ser uma mulher porque não sou uma.

Meu reconhecimento foi 'tardio' pois não tinha como fazer isso antes. As coisas aconteceram como tinham de acontecer. Já estava fora da casa dos meus pais, tinha passado por dois casamentos. Decidi por mim mesmo. Me reconheci e pude assumir. Mas tem muita gente que não pode."

Papel do profissional de saúde é auxiliar pessoas trans

Quando ocorre uma compreensão do que estava acontecendo, a sensação é de alívio. É como se a vida daquela pessoa "ganhasse um colorido a mais". Mas e depois, o que pode ser feito? O primeiro ponto é entender que não é um profissional da saúde, seja ele psicólogo, seja psiquiatra, seja endocrinologista, que vai "atestar" se a pessoa é trans ou não —é ela quem irá dizer.

É papel do profissional agir como um "instrumento" para a pessoa decidir qual caminho seguir. O especialista deve ter uma escuta ativa para entender quais são as demandas da pessoa: ela vai querer fazer terapia hormonal ou não? Vai optar por fazer alguma cirurgia ou não? Quais são os benefícios? Quais são as contraindicações? Ela quer ajudar com a documentação?

O que cada pessoa vai querer fazer é muito individual, e essa individualidade é o que o profissional deve buscar. Ser trans não define o que aquela pessoa quer fazer em relação às demandas de saúde. Não são todos que querem fazer a terapia hormonal ou alguma cirurgia" Daniel Mori, psiquiatra do IPq da USP

O caminho é sempre procurar informações de fontes fidedignas, seja no SUS (Sistema Único de Saúde), seja em instituições privadas, seja em médicos de convênios de saúde. O mais importante é contar com profissionais capacitados para esse acolhimento.

Como é o acompanhamento médico e psicológico no processo de transição

Via SUS, o processo de transição é visto por muitos como "burocrático", principalmente para procedimentos cirúrgicos. Isso porque o Ministério da Saúde pede um acompanhamento médico e psicológico de, pelo menos, dois anos para realizar uma cirurgia. Já o CFM (Conselho Federal de Medicina) aconselha um tempo menor, de um ano. Na prática, os especialistas contam que o tempo pode variar, tanto para mais quanto para menos.

Maria Inês Lobato, psiquiatra e coordenadora do Protig (Programa de Identidade de Gênero) do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS), conta que o tempo de espera é entre 2 a 3 anos. "Sei que muitas pessoas questionam o tempo, mas não se pode usar hormônio e fazer cirurgias sem ter a perspectiva correta do que isso representa na vida, do significado que isso vai trazer em termos de benefício ou não."

Esse acompanhamento é importante para notar se há algum transtorno mental descompensado. "A gente não indica iniciar a hormonioterapia para quem está deprimido, mais ansioso ou com algum transtorno bipolar descompensado. Isso porque os hormônios [da reposição] descompensam ainda mais", diz Mori.

Em crianças e adolescentes o processo é diferente, pois só é possível realizar o bloqueio puberal (interrupção da produção de hormônios sexuais) —e não cirurgias ou reposição hormonal— caso ela apresente muito sofrimento com o corpo e após diversas conversas entre equipe médica e familiares.

O sofrimento trans é imenso. Imagine viver em um mundo que não te aceita e não foi feito para você? O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo

Mariana Amorim, Psicóloga e mestre em Direitos Humanos pela UFG (Universidade Federal de Goiás)

Sofrimento trans: a importância do acolhimento e escuta ativa

A escuta e o apoio são essenciais para minimizar o sofrimento de pessoas trans, especialmente no momento da transição. Bruna Sofia Morsch, escritora e psicóloga pós-graduada em psicanálise pela Associação Catarinense, dá exemplos de como fazer essa abordagem: "Vai depender muito do que é acolhimento para a pessoa, mas você pergunta 'Como está sendo tudo isso?' ou 'Eu quero entender sua história, me conte mais'".

Para a psicóloga, o momento da transição é quando as pessoas mais precisam do acolhimento, pois "é um momento 'monstruoso' aos olhos da sociedade" e é por isso que é importante que a pessoa não esteja só. "Vai que ela está em um posto de saúde, mas ainda não ratificou o nome na identidade. Ela pode passar por um constrangimento, se alguém decidir não reconhecer o nome social. Por isso é importante ter alguém ao lado para correr e chorar junto."

Pensando em acolher e oferecer atendimento psicológico para pessoas trans e também para os familiares de crianças e adolescentes, Mariana Amorim, psicóloga e mestre em direitos humanos pela UFG (Universidade Federal de Goiás), criou em 2014 a clínica Transformar, que oferece atendimento psicológico e acolhimento para pessoas trans e queers em Goiânia (GO). O motivo, segundo ela, é "derrubar a transfobia [discriminação e preconceito contra pessoas trans]", com cada um fazendo sua parte.

Mesmo assim, Amorim acredita que seja papel da sociedade, como um todo, agir para acolher as pessoas trans, além de se criar mais políticas públicas. "O sofrimento trans é imenso. Imagine viver em um mundo que não te aceita e não foi feito para você? O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no planeta."

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