Corrida por um sonho

Com baixa visão, Tamiru se refugiou no Brasil após protesto na Paraolimpíada do Rio e quer competir pelo país

Giulia Granchi Do VivaBem, em São Paulo André Giorgi/UOL

Nascido na cidade de Gerba Guracha, em Oromia, na Etiópia, Tamiru Demisse teve uma infância normal mesmo quando começou a perder a visão, aos 10 anos de idade. Apesar das dores que sentia nos olhos, ia para escola, brincava com os amigos na rua e voltava para casa no fim do dia, onde sua mãe esperava com a comida para a família toda --além dele, seu pai e quatro irmãos.

Quando os sintomas da doença começaram, sua família procurou ajuda médica, mas o diagnóstico nunca chegou. "Até hoje não sei o que me fez perder a visão. Cheguei a realizar alguns tratamentos, mas nenhum deles ajudou muito", diz Tamiru. O problema progrediu e o etíope ficou completamente cego do olho esquerdo e tem apenas 20% de visão no direito. A condição poderia ter sido limitadora, mas abriu as portas para um mundo muito libertador: a do atletismo.

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"Corria para ganhar"

Quem acompanha atletismo, mesmo que bem pouco, certamente já ouviu que a Etiópia é berço de alguns dos melhores corredores do mundo. Porém, no país o esporte paraolímpico não é tão incentivado. Tanto que Tamiru começou a treinar somente em 2012, aos 19 anos, por convite de um professor que simplesmente apostou no "menino" --até então, ele não tinha nenhuma experiência com a corrida.

O grupo era composto por cerca de 30 mulheres e 30 homens, somente Tamiru possuía deficiência. "A organização para os paraolímpicos na Etiópia é muito ruim, o suporte e direcionamento para esses atletas é quase nulo", desabafa.

Apesar de correr com um guia na época, algo que não faz mais hoje, sua mãe temia que ele caísse e prejudicasse o pouco funcionamento dos olhos. "Ela tinha muito medo, dizia que não era bom para mim e que não me queria correndo. Em 2013, ela passou a não me deixar treinar de jeito nenhum, me acompanhava até a escola e ficava de olho em mim", lembra.

Com o apelo do treinador e uma série de conversas com a família, a mãe acabou sendo convencida e Tamiru voltou às pistas. Então, brincou com os amigos: "Eu ganho de todos nos 1.500 metros." No começo, ninguém acreditou. Mas, em pouco tempo, Tamiru provou seu talento e pegou gosto pelo treino.

"Eu, paraolímpico, batia o tempo de todos os atletas olímpicos do grupo. Corria para ganhar"

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4 causas de cegueira na infância

Tamiru não sabe por que perdeu a visão, mas estes são problemas comuns em crianças

  • 1

    Retinose pigmentar

    Doença genética com perda progressiva da visão periférica, que pode evoluir para visão tubular ou cegueira. A severidade depende do tipo de transmissão genética e de quando o problema surge -- costuma ser mais grave se aparece na infância.

  • 2

    Ceratocone

    É uma doença degenerativa que faz com que a córnea fique mais fina no centro, com pequenas rupturas que produzem cicatrizes que alteram sua transparência. Em casos mais graves, é recomendado o transplante de córnea.

  • 3

    Xeroftalmia

    É a cegueira causada pela falta de vitamina A. Pode ser resultado de desnutrição, má absorção do nutriente ou dietas altamente restritivas. É uma das principais causas de cegueira na infância e mais comum em países de baixo desenvolvimento econômico.

  • 4

    Atrofia ótica

    A atrofia do nervo óptico resulta na desconexão das ligações nervosas que unem o olho ao cérebro. A condição ocorre por causa neurológica, que pode ser genética, infecciosa, como a meningite, ou secundária a trauma. É irreversível.

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Protesto na Rio 2016 mudou seu destino

Tamiru conta que sabia que disputaria a Paraolimpíada do Rio 2016 um ano antes, já que tinha alcançado o índice para participar da competição. Mesmo assim, ficou muito feliz quando recebeu a convocação oficial. "Meu professor acreditava muito em mim e disse que eu poderia ganhar o ouro."

No ano da competição, o etíope garantiu o ouro nos 1500 m, com o tempo de 3min58s90, no Grand Prix de Tunísia, um dos campeonatos mais importantes da África. Os treinos focados para competir no Rio e a alimentação regrada começaram apenas dois meses antes dos Jogos --apesar do tempo curto, o atleta se sentia totalmente pronto.

Mas, se a medalha já era algo garantido na mente de Tamiru, morar no Brasil pelos próximos anos não estava nos seus planos. No dia 11 de setembro, ele garantiu a prata chegando apenas alguns milésimos atrás do campeão --poderia ter conquistado o ouro, mas perdeu tempo ao levantar os braços em protesto contra as ações do governo da Etiópia em relação ao povo Oromo, maior grupo étnico do país, que na época sofria violações de direitos humanos.

Os protestos do grupo começaram após o governo etíope apresentar um plano para expandir a capital do país, Adis Abeba, ameaçando as terras de cultivo do povo. O governo, apesar de teoricamente democrático, reagiu com violência. "Em um dia, mataram mais de 150 pessoas. Quem protestava era assassinado ou preso. Dois amigos da escola, que cresceram comigo, foram mortos. Isso me chocou demais", conta o atleta.

A manifestação de Tamiru fez com que ele fosse banido da Paraolimpíada pelo comitê etíope, e o atleta não chegou a competir a outra prova, de 400 metros. Depois do protesto, foi aconselhado imediatamente por amigos a não voltar a seu país. "Diziam que era muito perigoso, que eu poderia sofrer retaliação e eu sabia que era verdade."

Velocidade na pista!

O tempo de Tamiru na Paraolimpíada foi melhor do que o do atleta que ganhou o ouro nos Jogos Olímpicos do Rio

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Caminho até o Centro Paraolímpico Brasileiro

Com pouco além da roupa do corpo, Tamiru se instalou no Rio com a ajuda de amigos, sobretudo, Feyisa Lilesa, atleta olímpico que conseguiu a prata na maratona dos Jogos do Rio 2016 e também fez um protesto contra o governo quando subiu no pódio.

Ele conta que usou a ajuda financeira para pagar o aluguel e comer, mas não tinha noção dos preços. "No começo, pagava quatro mil reais no aluguel do apartamento, então, claro que o dinheiro não durou muito."

Apesar de nunca ter abandonado os treinos --saía sempre para correr na ruas e nos parques -- Tamiru sentia falta do apoio de um treinador e de infraestrutura adequada, além de sofrer com o clima quente da capital fluminense. "Também sentia muita saudade de casa, o máximo que tinha ficado fora foi duas semanas. Foi muito difícil ficar longe da família e me virar sozinho. Em casa, só estudava e treinava. Minha mãe não me deixava nem preparar o café da manhã", conta.

Em busca de condições melhores, viajou para São Paulo procurando o famoso Centro Paraolímpico Brasileiro, localizado na Rodovia Imigrantes. Morou em um hotel por duas semanas e depois, por falta de dinheiro, em um centro de acolhimento para refugiados onde precisava entrar às 17h e sair às 8h da manhã.

"Tomava café e ia treinar no Parque Ibirapuera. Depois, não podia tomar um banho... Precisava ficar na rua

Depois da primeira visita, o atleta foi acolhido pelo Centro de Treinamento e recebeu a indicação da ADD (Associação Desportiva para Deficientes), onde poderia morar e comer com horários mais flexíveis e começar a treinar no Centro Paraolímpico. Após alguns meses, a associação fechou seus alojamentos, mas Tamiru contou com a ajuda deles para conseguir um pequeno patrocínio e de outros atletas para se manter, por meio de uma vaquinha.

Hoje, o etíope mora perto das instalações de treinamento e sua rotina é dividida entre treinos de corrida na pista, rodagens um pouco mais longas, treinos regenerativos (mais leves) e musculação. "Ele treina de segunda a sábado, alguns dias no período da manhã e da tarde. É um atleta comprometido, que está todos os dias na pista ou buscando alternativas. Se dá bem com os outros e está sempre sorrindo e brincando, apesar das dificuldades", conta Fabio Breda, técnico nacional de atletismo do CPB (Comitê Paralímpico Brasileiro) e responsável pelo treinamento de Tamiru.

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"Quero representar o Brasil"

Hoje, o governo da Etiópia já mudou e não há mais riscos para Tamiru voltar a seu país --o atleta, inclusive, recebeu uma carta que o convidava a retornar, mas nunca respondeu. "Eu me apaixonei pelo Brasil. A infraestrutura aqui é muito melhor e quero ficar. Hoje, meu sonho é representar o Brasil nos Jogos de Tóquio", afirma.

E o sonho de competir usando a camisa verde e amarela não é só dele. "Para mim seria muito importante contar com ele [na Paraolimpíada]. É um atleta com muito potencial e seria ótimo para o Brasil, com certeza brigaria por medalha", diz o treinador.

O processo para conseguir a cidadania, no entanto, não é tão fácil. Tamiru entrou com o pedido em 2018, mas o Comitê Paralímpico não se envolve e ele conta apenas com a ajuda dos voluntários da ADD.

"Ele está um pouco desmotivado com essa questão de não conseguir legalizar a situação dele no Brasil e a dificuldade de participar em competições. Mas, ainda assim, segue treinando com muito foco", comenta Breda.

Tamiru não sabe se voltaria para a Etiópia para competir a Paraolímpíada. Porém, para a mãe do africano, não há dúvidas de que ele deve voltar. "Evito ligar para ela muitas vezes, no máximo uma conversa por semana, porque ela só chora. Primeiro chora, depois pergunta sobre mim. Quer muito que eu retorne. Ela poderia vir me visitar, mas se chegar aqui, com certeza vai tentar me levar com ela", explica o atleta.

Tamiru conta que por muito tempo a mãe nem soube protesto. "Escondemos dela porque ela sofreria ainda mais, com medo por mim. Acabou sendo igualmente difícil, já que ela pensou que escolhi ficar aqui desde o início."

O principal motivo que fez com que ele realmente escolhesse ficar foram as pessoas. "É o que eu mais gosto no Brasil. Para mim, as pessoas daqui foram muito boas, me ajudaram demais", explica.

Segundo os --muitos -- amigos que ele fez no Centro de Treinamento Paraolímpico Brasileiro, o mérito também é dele. "É um menino de coração muito bom, adora abraçar e está sempre dando o seu melhor nos treinos. Estamos torcendo para a naturalização dele sair logo, o verde e amarelo vai ficar bonito nele", afirma Vinícius Rodrigues, velocista paraolímpico e amigo pessoal de Tamiru.

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