Muitos pais se irritam quando as crianças tiram os objetos do lugar, mas no dia em que Marina Moraes de Souza Roda, 4, fez bagunça em uma gaveta na cozinha, sua mãe quase chorou de felicidade.

Até os dois anos, Marina não conseguia sentar sem cair para os lados, tinha dificuldades para erguer o tronco, faltava força para levantar os braços, e suas pernas quase não se mexiam. Ela tem atrofia muscular espinhal (AME), doença genética rara que afeta os neurônios motores.

No dia 7 de agosto de 2020, uma injeção dividiu a vida da criança, nas palavras de seus pais, em um "antes e depois".

O medicamento Zolgensma, aplicado em dose única, é capaz de impedir a evolução da AME em bebês e já foi considerado o "remédio mais caro do mundo": custava US$ 2,1 milhões, R$ 12 milhões na cotação do dólar na época —no ano passado, ele perdeu o posto para outro lançamento do mercado farmacêutico, o Hemgenix, droga de US$ 3,5 milhões (R$ 17 milhões) que trata a hemofilia B.

Para conseguir o valor, o casal recorreu a uma vaquinha, porque o remédio não era coberto pelo SUS ou por planos de saúde.

Marina adora pedalar de um cômodo para o outro em cima de seu minitriciclo colorido, apelidado de "motoquinha", e desde o ano passado frequenta uma escola na zona sul de São Paulo. No colégio privado, sua babá a acompanha apenas para ajudá-la a se levantar ou mover objetos e usar o banheiro.

"Ela brinca e faz todas as atividades que as outras crianças fazem", celebra a gerente comercial Talita Souza Roda, 33, mãe de Marina. "A única diferença é que ela faz tudo sentada em sua motoquinha".

A AME é considerada rara, estima-se que entre 280 e 300 crianças são diagnosticadas com a mesma condição genética de Marina todo ano no Brasil.

O tipo 1 da AME, considerado o mais grave, pode levar à morte antes dos dois anos de idade. Marina recebeu esse diagnóstico aos oito meses.

"Quando Marina completou 4 anos, eu falei 'caramba, minha filha fez 4 anos!'. O que para qualquer pai é normal, para a gente é um negócio surreal, porque foi o dobro da idade que falaram que ela ia viver", Renato Moraes, 39, pai da Marina.

Até pouco tempo antes do nascimento de Marina, não existia nenhum medicamento específico para tratar a AME.

"O que nós dizíamos às famílias dos pacientes era: 'Infelizmente, é uma doença grave. A gente vai oferecer tratamento multidisciplinar, mas vai piorar, piorar e piorar'", relembra o neuropediatra Edmar Zanoteli, que acompanha pacientes com a condição há mais de duas décadas.

Hoje, existem três medicações que estão mudando o curso natural da doença, afirma Zanoteli, chefe do Ambulatório de Atrofia Muscular Espinhal do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Os remédios permitem que a criança volte a produzir a proteína necessária para a sobrevivência dos neurônios motores, neutralizando os sintomas.

A principal diferença é a forma de administração. O Spinraza, da Biogen, é aplicado a cada quatro meses, por meio de uma injeção na base da coluna vertebral. O Risdiplam, da Roche, vem na forma de um líquido e deve ser tomado todos os dias. Já o Zolgensma, da Novartis, é de aplicação única intravenosa e deve ser administrado até os dois anos de idade.

Atualmente, os três são oferecidos no SUS. O preço máximo do Zolgensma acordado pela farmacêutica com o Ministério da Saúde é de R$ 6,5 milhões.

"O receio de as drogas faltarem na rede pública ou de o acesso ser negado pela rede privada é algo que traz muita apreensão para as famílias. Por isso, a ideia de uma injeção única é vista com um certo alívio pelos pais" Diovana Loriato, presidente do Instituto Iname (Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal)

Diovana também é mãe do Davi, que tem AME tipo 1 e, segundo ela, já sofreu com a falta do oferecimento do Spinraza pelo plano de saúde.

Segundo o Ministério da Saúde, até o momento foram atendidas 140 demandas judiciais de famílias que acionaram a Justiça para que o sistema público arcasse com os custos do Zolgensma, que é produzido no laboratório da farmacêutica Novartis, nos EUA, e enviado diretamente para o hospital no qual o paciente receberá o tratamento.

A droga foi incorporada ao SUS em dezembro de 2022 para bebês de até seis meses de idade, mas, na prática, ainda não começou a ser fornecida pelo sistema público de saúde por questões burocráticas.

A AME tem pressa

Quanto mais cedo a doença for descoberta e tratada, mais neurônios terão sido preservados e menores serão as sequelas para o paciente.

"Para a AME, tempo significa neurônio motor. Então, cada dia que se passa sem tratamento é neurônio motor que morre. Esses neurônios, depois de mortos, não voltam mais, independente do remédio utilizado", explica Lorena Mesquita, neuropediatra do Hospital Infantil Lucídio Portella, no Piauí.

A maioria das crianças com AME tipo 1 no Brasil, contudo, é diagnosticada entre cinco meses e um ano de idade, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem. O intervalo de tempo é considerado tardio.

A mãe de Marina diz que às vezes se pergunta como a menina estaria hoje se tivesse recebido o diagnóstico mais cedo.

Talita percebeu sinais de atraso motor na bebê antes mesmo dos seis meses: seu corpo parecia "mais molinho" do que o de outras crianças da mesma faixa etária, ela não conseguia manter a cabeça erguida e engasgava com certa frequência.

Foram várias consultas a diferentes pediatras até que a criança fosse diagnosticada com AME, aos oito meses. Ela começou o tratamento no 9º mês de vida, com o medicamento Spinraza. A aplicação do Zolgensma aconteceu quando ela tinha 1 ano e onze meses.

O caminho para detectar a doença logo após o bebê nascer é o teste do pezinho. Uma lei assinada em 2021 inclui essa e outras enfermidades entre as rastreadas pelo exame, obrigatório em todos os recém-nascidos brasileiros e fornecido pelo SUS. Mas ela está sendo implementada em etapas e a AME vai ser contemplada na última.

"O fato de o Brasil ainda não ter o teste do pezinho ampliado nos preocupa, porque, sabendo da nossa história, o diagnóstico demora muito a chegar" Renato, pai da Marina

Fisioterapia, colete, bota: os "apetrechos" de Marina

A agenda de Marina é cheia: todos os dias ela faz sessões de fisioterapia motora e respiratória, às quintas ela tem sessão com sua psicóloga, às terças e sextas o compromisso é com a terapeuta ocupacional e, duas vezes na semana, a reabilitação acontece na piscina, enquanto a criança se diverte nas aulas de hidroterapia.

Para crianças com AME, estratégias de suporte como essas podem ser cruciais para potencializar o efeito das medicações. Enquanto o remédio estimula a produção da proteína que mantém os neurônios motores vivos, a fisioterapia estimula o músculo para que ele recupere a força.

"O neurônio leva informação para o músculo, mas o músculo também leva informação para o neurônio. É uma via dupla", explica Renata Ferrari, fisioterapeuta aquática que acompanha Marina e outras sete crianças com AME.

Marina também utiliza o que sua mãe chama de uma série de "apetrechos": dispositivos indicados por seus médicos para evitar possíveis complicações causadas pela doença. De 3 a 5 horas por dia, a criança calça uma bota ortopédica cujo objetivo é prevenir deformidades nos pés.

Um colete de fibra de carbono é mantido em seu corpo durante o mesmo intervalo de tempo para evitar problemas na coluna, como escoliose e cifose. Outros dois aparelhos ajudam a melhorar a mobilidade da menina: o andador, que estimula a marcha, e o parapodium, projetado para permitir que a criança fique em pé de forma segura e controlada.

O acompanhamento é caro. Terapias fora de casa, não cobertas pelo plano de saúde, custam cerca de R$ 4.500 por mês. Juntos, andador e parapodium saíram por R$ 28 mil. Já o par de botas custa R$ 4.000 e precisa ser renovado a cada seis meses, assim como o colete, de R$ 3.000. No final de setembro também deve chegar uma cadeira de rodas importada, de R$ 50 mil.

"A gente ainda tem um bom trabalho e consegue lidar com isso de uma forma melhor, mas imaginamos o que as crianças do Brasil afora passam com relação a isso", observa o pai de Marina.

A falta de acesso impacta diretamente na evolução do paciente. "Há crianças que conseguem ter acesso ao Zolgensma, por exemplo, por meio de vaquinhas online, mas não têm condições de ter todo o suporte que precisam. Elas acabam não tendo o resultado que a gente gostaria", lamenta Zanoteli, do HC-SP.

Esperança equilibrista

A redução da força da gravidade torna os movimentos de Marina mais fáceis e fluidos debaixo da água. Com cilindros de espuma coloridos posicionados ao redor de seus braços, a criança flutua, chuta, dobra os joelhos, traz as pernas para perto do peito. Dá saltos no trampolim.

"Uma perninha atrás da outra", orienta a fisioterapeuta aquática, enquanto a criança se concentra em coordenar seus movimentos sob uma plataforma de suporte colorida. Os pés da menina deslizam pela água com a leveza que é difícil de encontrar em terra firme. Marina está andando.

"Por que eu consigo andar na água e não consigo andar fora da água?", ela perguntou esses dias à Renata.

A fisioterapeuta explicou que Marina fica mais leve na água e, com isso, precisa de menos força para andar. Mas isso não significa que caminhar na piscina seja, por si só, mais fácil. "Quando ela era menorzinha, não conseguia ficar de pé lá dentro sem dobrar o joelho; hoje, tem força para fazer isso sozinha", conta a especialista.

Marina sabe que tem AME. Seus pais contaram para ela em dezembro do ano passado, depois de perceberem que a criança parecia estar confusa ao perceber diferenças entre ela e outras crianças.

Este ano a menina irá começar a usar uma cadeira de rodas. O "carrinho", como ela chama o equipamento, será necessário porque Marina está ficando grande para a "motoquinha".

O nome do perfil da criança nas redes sociais criado na época (@cureamarina) reflete a expectativa que sua família tinha quando o "remédio mais caro do mundo" foi lançado.

"No final das contas, aquilo que eu tinha como expectativa de cura, que ela ia sair andando, correndo, não aconteceu exatamente assim" Talita, mãe da Marina

A jornada de Marina fez a família ver a cura de outra forma. "Foi uma cura no sentido espiritual pra gente. Pra poder entender que a gente conseguiu. Hoje ela consegue ter tudo que ela tem. Ela está incrivelmente maravilhosa".

Poucos dias antes de a reportagem ir até a casa de Marina, a criança aprendeu a escovar os dentes sozinha. Para seu pai, esse é um exemplo simbólico do que o casal deseja para filha agora e no futuro: autonomia.

"Quero que a Marina tenha liberdade e autonomia para fazer o que ela quer e para ser uma mulher superfeliz durante a vida", diz Renato.

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