Separados por uma tela

Encontros virtuais ficaram comuns, mas não substituem o contato presencial e isso pode afetar a saúde mental

Sibele Oliveira Colaboração para o VivaBem

Quando embarcou para a Irlanda, Daniela Daia, 39, não tinha ideia da falta que sentiria dos entes queridos. O motivo da mudança para Dublin era ganhar fluência em inglês. Lá, a brasileira trabalhou como babá, barista, supervisora de um café-restaurante, fez faculdade de business e conseguiu um bom emprego numa distribuidora de cosméticos. E assim seis anos se foram.

Ela se achava totalmente adaptada em terras europeias, mas a parte difícil era não ter quem amava por perto. As redes sociais ajudavam a aliviar a saudade, porém, quando foi decretado lockdown na Irlanda por causa da pandemia, a solidão apertou e ela sentiu o peso de estar longe da família e dos amigos.

O encontro diante das telas foi a solução para encurtar um pouco a distância e a saudade das pessoas queridas. "Ver a minha mãe todos os dias e saber que ela estava bem me trazia um pouco de paz. Não só ela, mas as minhas irmãs, sobrinhos e amigos também".

Como Daniela, não imaginamos mais a vida sem os aplicativos que estão nos "salvando" nesse momento em que precisamos ficar isolados. Mas a verdade é que as redes sociais já vinham substituindo os encontros físicos antes. Isso faz muita gente especular que no futuro os relacionamentos virtuais irão tomar o lugar dos presenciais. Será mesmo? E qual é o impacto na saúde mental dessa troca do encontro presencial pelo virtual?

Mesmo depois da vacina, quando teremos mais chances de nos relacionarmos presencialmente, talvez haja uma diminuição dessa necessidade".

Fernando Gomes, Neurocirurgião e neurocientista do Hospital das Clínicas de São Paulo

Juntos, mas sozinhos: um dos problemas das relações virtuais

No livro "Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other", a psicóloga norte-americana Sherry Turkle afirma que no ambiente virtual as relações são menos profundas que as do mundo físico. De acordo com ela, nós nos iludimos com o número de contatos e seguidores que acumulamos em nossos perfis, o que ajuda a mascarar a solidão. Ao ver nossas telas repletas de pessoas, simplesmente esquecemos que estamos sozinhos.

Segundo a especialista, a tecnologia vem redesenhando as fronteiras entre a intimidade e a solidão. Esses dispositivos tecnológicos nos seduzem porque oferecem uma espécie de capa de proteção para esconder nossas vulnerabilidades, que não teríamos num encontro cara a cara. São lugares seguros para quem tem medo da intimidade ou quer fugir das exigências de uma amizade mais forte. Para muita gente, a ilusão de companheirismo é o bastante. "No entanto, de repente, à meia-luz da comunidade virtual, podemos nos sentir totalmente sozinhos", ela ressalta.

Não é novidade que as redes sociais oferecem coisas boas. Mas o fato é que relações virtuais não costumam satisfazer tanto quanto as presenciais, pois seguem em um ritmo acelerado. "Os laços que formamos na internet não são, em última análise, os laços que nos unem. Mas são os que preocupam", salienta Turkle. Isso porque, em muitos casos, eles são frágeis. Não é raro as pessoas serem tratadas como "provisórias" na web ou serem "canceladas" quando aparece alguém "mais interessante". Essa rotatividade é usada como um remédio contra o tédio. Mas, no fim das contas, faz o usuário afundar na solidão.

Além disso, as redes sociais capturam a atenção e interesse de algumas pessoas de tal maneira que elas não conseguem desgrudar os olhos das telas enquanto caminham, passeiam, viajam, comem ou estão com outras pessoas. Então, mesmo acompanhadas, elas permanecem sozinhas, já que não trocam palavras com quem está ao lado.

Estamos nos acostumando com a ausência?

Ao mesmo tempo em que parte das relações virtuais não vinga, outras duram a vida inteira. Não é a qualidade do vínculo que está em xeque. O que empobrece os relacionamentos é a ausência do contato físico. "Uma coisa é a quentura da presença, outra é essa mediação por telas. Isso está mudando para um certo esvaziamento no sentido da outra pessoa, da presença, porque a expressão do corpo fica extremamente prejudicada", observa Antonio Valverde, professor de filosofia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Detalhes que num primeiro momento podem não parecer tão importantes, como expressões corporais, nos escapam quando estamos separados por uma tela. E são eles que enriquecem a nossa percepção, pois nos ajudam a compreender o que o outro está pensando e não expressa com palavras.

Há pessoas que não sentem tanta falta das trocas afetivas que ocorrem pessoalmente, pois se voltam tanto para os meios digitais que se sentem preenchidas apenas com encontros presenciais mais espaçados. Isso não significa que a presença física deixa de ser importante para elas. Há coisas que só acontecem quando estamos fisicamente próximos, como perceber com clareza o que um olhar está dizendo, sentir o perfume da pessoa ou observá-la tridimensionalmente, além de tocá-la, é claro. É o toque físico que nos faz liberar o hormônio oxitocina, que estimula os vínculos afetivos. E o relacionamento nas redes sociais oferece a possibilidade de atraso na resposta, diferente do ao vivo, quando se tem a conexão imediata acontecendo, explica Fernando Gomes, neurocirurgião e neurocientista do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Ele diz que a experiência de isolamento que estamos vivendo na pandemia pode mudar a maneira como sentimos e vivemos as relações. Como somos dotados de neuroplasticidade, ou seja, da capacidade de nos adaptarmos ao que é novo, ela nos leva a fortalecer os vínculos virtuais. Isso quer dizer que a necessidade de ter encontros presenciais tende a diminuir quando nos habituamos aos virtuais? A resposta é sim. "Mesmo depois da vacina, quando teremos mais chances de nos relacionarmos ao vivo, talvez haja uma diminuição dessa necessidade."

O isolamento físico e as emoções

O isolamento físico faz mal em qualquer situação, mas na pandemia ele acendeu o sinal vermelho. Nunca a ausência da presença física de parentes e amigos fez tanta gente sofrer como agora, principalmente os idosos e quem mora sozinho. Não é para menos. Ficar em casa para se proteger do vírus não é só ficar longe das pessoas queridas. É não encontrar os colegas de trabalho na empresa, não ter companhia para almoçar, não dividir a sala de aula da escola ou da faculdade com outros alunos e professores, nem trocar palavras com conhecidos no caminho até esses lugares.

Pode não parecer, mas essas coisas simples são extremamente importantes para a saúde mental. "Aplicativos de comunicação não suprem a falta da presença", ressalta Bruno Netto Reys, psiquiatra, psicanalista e professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Quando a ausência física de pessoas que são importantes para nós é prolongada, ela causa sentimentos intensos de solidão, vazio e abandono, capazes de nos levar ao adoecimento.

Um estudo feito na Holanda revelou que pessoas que têm transtornos depressivos, ansiosos ou obsessivo-compulsivos estão sofrendo um impacto negativo na saúde mental. Outra pesquisa mostrou taxas relativamente altas de sintomas de ansiedade (6,33% a 50,9%), depressão (14,6% a 48,3%), transtorno de estresse pós-traumático (7% a 53,8%), sofrimento psicológico (34,43% a 38%) e estresse (8,1% a 81,9%) nesse momento em que estamos vivendo. Foram pesquisadas pessoas da China, Espanha, Itália, Irã, Estados Unidos, Turquia, Nepal e Dinamarca.

Além do medo e da preocupação com o vírus, muitos desses sintomas se devem ao isolamento físico. "Pessoas que já tinham deixado de tomar fármacos, como antidepressivos e ansiolíticos, e nem estavam mais em tratamento tiveram que voltar a ser medicadas, porque não suportaram a angústia desse isolamento", reforça Reys.

O sofrimento pela distância de quem a gente ama costuma chegar sorrateiro. A pessoa começa a se sentir mal, não consegue dormir direito, fica ansiosa, deprimida, desanimada e tem crises de choro frequentes, mas acha que vai passar. Não desconfia que esses sinais às vezes são a ponta do iceberg de algo que pode se tornar muito mais grave, como perder a vontade de viver. Por isso, não é bom esperar para buscar ajuda. Até porque esse desconforto emocional não deve acabar tão cedo. "Os trabalhos sobre pandemia mostram que após a primeira ou segunda onda da doença vem uma terceira ou quarta onda de saúde mental", enfatiza o psiquiatra.

O encontro online não substitui o contato lá fora

Quando a saudade apertou muito lá na Irlanda, Daniela Daia decidiu pegar um voo com destino ao Brasil. Queria passar um tempo em seu país natal, mesmo que não fosse muito. Naquele momento difícil, precisava estar perto das pessoas que amava. Chegou em casa de surpresa e lá estava a mãe, que tinha ido ao portão a pedido de uma neta, pensando que ia receber uma encomenda. "Ela ficou me olhando. Quando a ficha dela caiu que eu estava ali, seu olhinho brilhou de se reencontrar comigo, me ver bem, me tocar, me abraçar e sentir o meu cheiro. Foi indescritível a sensação que nós duas tivemos", recorda.

O contato virtual diário não foi capaz de acabar com a sensação de que elas não se viam há anos. "Quando a gente está falando de saudade, a presença não é substituível. Gosto de abraçar, de encostar o meu peito no peito da outra pessoa. Assim consigo sentir sinceridade, amor. O smartphone nos aproxima de certa forma, mas não mata a saudade, porque quando a gente desliga, continua sozinha", reflete. Para ela, o sabor de um encontro ao vivo é incomparável. É fácil entender o porquê. "A cultura brasileira, latina, é muito ligada ao toque, abraço e beijo. As pessoas precisam desse calor humano. Tem o lado cultural e também o emocional, em que o contato físico dá uma sensação de proximidade", avalia Reys.

A sensação gostosa de estar junto é algo que vem da infância. "Bebês e crianças pequenas precisam disso. A gente forma a identidade e as relações a partir do contato físico, do colo, do manuseio do bebê, da amamentação. A pele é muito importante para esse contato", explica Leila Tardivo, professora de psicologia da USP (Universidade de São Paulo). Carregamos esses registros de felicidade e queremos que ela se repita sempre, por isso a distância física nos incomoda tanto. "É claro que quando a gente vai crescendo, desenvolve outras formas de contato que se somam, que se articulam, mas guardamos aquilo. A presença estrutura a personalidade da criancinha e ali vai ficando para o resto da vida".

Para ela, a pandemia escancarou a importância da presença, que vinha sendo deixada em segundo plano à medida que nos conectávamos mais e mais ao mundo virtual. "As relações mais íntimas precisam ser presenciais. A vida é efêmera, devemos usufruir da presença e do que ela tem de criativo, de construtivo, de nos tornar pessoas melhores e fazer com que a gente valorize mais a amizade e o carinho. O virtual pode ser muito necessário e tem sido, mas ao mesmo tempo ele nos mostra quanta falta faz o presencial", resume Tardivo. Ao que tudo indica, essa é uma lição que veio para ficar.

Amor high-tech: tecnologia facilita busca por um parceiro, mas há ciladas

Aos 26, Priscila Sampaio estava desanimada porque a missão de encontrar um namorado parecia impossível. A sensação era de que todos os homens da faixa etária dela já estavam namorando, noivos ou casados. No trabalho, não havia nenhum solteiro. Nas baladas (antes da pandemia), quando muito, suas tentativas deram "quase certo". Por um lado a jornalista se sentia feliz, pois tinha muitos amigos e uma família unida e afetuosa; por outro, a falta de alguém para beijar e abraçar chegava a doer. Ela até apostou nos aplicativos de paquera, mas desistiu quando perdeu o pai.

Foram necessários dois anos de terapia para que Priscila se recuperasse de diferentes sofrimentos e se desse uma nova chance. "Voltei para o aplicativo muito mais esperta por reconhecer as ciladas e indícios de furada —e mais seletiva. Então chegou o meu namorado", conta. O compromisso foi selado depois muita conversa pelo WhatsApp, quando ambos descobriram várias afinidades. Mas antes de conhecer o parceiro atual, a jornalista tentou se envolver com outros rapazes e nem todas as experiências foram boas. Uns sumiam do nada, outros só queriam sexo. Mas também conheceu alguns amigos.

Tudo isso fez com que Priscila, que hoje tem 35 anos, chegasse a uma conclusão. "O aplicativo é só mais um recurso para conhecer alguém, buscar o amor". Ela frisa que as desilusões que acontecem dentro desses dispositivos são as mesmas que acontecem fora deles. E que não é preciso ter medo, desde que a pessoa faça uma boa análise antes de levar o amor para o mundo real. "Nesse oceano de gente, sempre terá uma pessoa que vai valer a pena", acredita.

Ailton Amélio da Silva, psicólogo clínico especializado em relacionamentos, lida com experiências como a da jornalista. Ele acompanha de perto as mudanças que vêm ocorrendo com o tempo quando o assunto é namoro. "A forma de se relacionar amorosamente é determinada pela cultura, pela época e por características de personalidade", afirma. Ele acrescenta que todas as sociedades têm seus "paqueródromos", ou seja, locais onde os flertes acontecem, como praças, bares, baladas, festas e até as missas.

Cerca de 20 anos atrás, Silva fez um estudo sobre como os namoros começavam. O resultado mostrou que 37% das pessoas se relacionavam com colegas de escola ou de trabalho, 32% eram apresentadas por um conhecido em comum, 20% engatavam romances com desconhecidos, 5% iniciavam romances a partir de encontros casuais e 2% encontravam parceiros amorosos em agências de casamento, anúncios de jornais e internet. De lá para cá, a web passou a ser um dos lugares mais "frequentados" por quem quer encontrar um amor. Hoje, aproximadamente 20% dos relacionamentos começam em "aplicativos de paquera".

Para o psicólogo, a diferença é que no virtual é tudo mais fácil e rápido, mas, muitas vezes, superficial. Ele fala que a internet não é o melhor caminho para todos. Nela, leva vantagem quem costuma impressionar à primeira vista. Quem não tem um visual que os padrões consideram atraente pode ficar frustrado, pois muitas vezes suas qualidades não chegam a ser descobertas. Isso porque o cardápio de pessoas é tão grande que o interesse precisa ser imediato. Caso contrário, os usuários costumam pular para as demais opções. Outro ponto negativo é que se trata de um lugar "habitado" por casados, golpistas e aventureiros.

Em contrapartida, os aplicativos de namoro oferecem infinitas possibilidades. Eles permitem que dentro do quarto ou da sala, a pessoa conheça parceiros amorosos no mundo inteiro, o que aumenta muito as chances de encontrar a "pessoa certa". Silva enfatiza que esses dispositivos são importantes, sobretudo, para pessoas que passaram dos 35, 40 anos, que não encontram facilmente parceiros dessa idade descompromissados. Mas reforça: "Pelo perigo, é melhor ter uma amizade primeiro".

RELACIONAMENTOS PRESENCIAIS

  • Ter trocas afetivas mais profundas

  • Perceber as sutilezas do olhar

  • Notar detalhes de expressões corporais que passam despercebidos nas telas

  • Sentir cheiros, toques e outras sensações que enriquecem a interação

  • Desfrutar do calor e da segurança que a presença física nos proporciona

  • Ter o prazer de um encontro, de fazer refeições, passeios e viagens

RELACIONAMENTOS VIRTUAIS

  • Conhecer pessoas de várias partes do Brasil e do mundo

  • Manter contato com quem está longe

  • Reencontrar quem não vemos há muito tempo

  • Encontrar um amor

  • Ter a chance de saber mais sobre a pessoa antes de marcar um encontro

  • Tornar a rotina de trabalho mais prática

  • Economizar tempo

  • Reunir pessoas de vários lugares e falar com elas em tempo real

O futuro dos afetos

A sensação que temos é que a pandemia deixou o mundo em suspenso. Ninguém sabe ao certo o que vai acontecer depois que ela acabar, inclusive com as relações humanas. Mas é possível ter algumas pistas. "Não faço previsão. Mas o que pode acontecer é a gente chegar a uma exaustão tamanha, que na nossa própria natureza humana vamos criar respostas para isso, mecanismos de resistência a essa extrema virtualidade", imagina a futurista profissional Rosa Alegria. A saída que provavelmente iremos encontrar para acabar com esse mal-estar é o equilíbrio entre relacionamentos virtuais e presenciais. Uma mudança que essa sede de presença que estamos sentindo pode provocar naturalmente.

O equilíbrio é a escolha mais saudável nesse mundo híbrido em que vivemos, como reitera a especialista. Não só no que se refere aos relacionamentos, como também às inteligências artificial e humana. O sensato é delegar à tecnologia as tarefas que não queremos fazer ou não conseguimos executar tão bem sem ela. Tirando essas situações, devemos colocar em prática a nossa inteligência, que é imensa.

"Sinto que a gente está deixando acontecer, não fazendo nada por enquanto. A próxima revolução não será da inteligência artificial, da robótica. Isso já está acontecendo. A próxima vai ser o resgate do humano. A covid-19 veio acelerar essa revolução"

A revolução citada por Alegria consiste em dar um passo para trás nesse distanciamento físico cada vez maior entre nós, que não é uma exclusividade da pandemia. Isso já vinha acontecendo antes, quando estávamos perto, mas ao mesmo tempo longe, pelo excesso de virtualidade e superficialidade das relações, que só fazem nos desconectar da nossa natureza de seres gregários, relacionais. Mas agora esse distanciamento está nos incomodando, colocando a nossa resistência à prova. "Não é adivinhação, está aí. As pessoas não estão conseguindo ficar mais reclusas. Os bares fecham e elas vão para as praças. É guerra contra a nossa própria essência que vamos ter que respeitar em nome da nossa vida", resume Alegria.

Para termos equilíbrio, precisamos desenvolver uma elasticidade temporal que nos permita fazer essa adaptação. Da mesma forma que a gente tem o hábito de visitar o passado, deve treinar a habilidade natural de olhar para o futuro e imaginar soluções para essa distância relacional que atenta contra a nossa natureza. Ela é tão importante quanto a empatia, que por sua vez é fundamental para uma convivência saudável. Segundo a futurista, estamos caminhando rumo à consciência de que relações virtuais e presenciais são igualmente importantes. Cada uma na sua casinha, como diz Daniela Daia.

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