As vacinas dos gringos

Como funcionam os imunizantes que utilizam RNA mensageiro, ainda não disponíveis no Brasil

Giulia Granchi Do VivaBem, em São Paulo

A pandemia acelerou o processo de estudo das vacinas com a tecnologia mRNA, nunca antes oferecidas ao mercado em grande escala. Hoje, o mundo conta com duas opções aprovadas em alguns países como Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Israel: a da empresa alemã BioNTech em parceria com a farmacêutica Pfizer, que demonstrou uma taxa de eficácia de 95% na prevenção da covid-19, e da Moderna, uma desenvolvedora de vacinas com sede em Massachusetts, nos EUA, em parceria com o National Institutes of Health, com taxa de eficácia de 94,1%.

A vantagem dessa tecnologia é dispensar o cultivo de vírus em laboratório (como requer a CoronaVac, produzida a partir do vírus inativado). Os imunizantes são criados a partir da replicação de sequências de RNA por meio de engenharia genética, o que torna o processo mais barato e mais rápido. A aprovação das vacinas de terceira geração, como são chamadas, representam um marco para a ciência.

Nunca tínhamos chegado a resultados tão eloquentes quanto os que estão sendo observados agora. Existe um histórico recente de outros testes com vacinas de mRNA: contra a febre do Nilo ocidental, que teve bons resultados, mas não chegou ao mercado. Outro imunizante desse tipo chegou a ser utilizado emergencialmente para uma espécie de teste durante a última epidemia de Ebola. Mas a primeira que poderá ser utilizada em todo o mundo será essa, contra a covid-19. Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia e professor da Universidade Feevale (RS)

Afinal, para que serve o RNA mensageiro na vacina?

Para produzir proteínas, nosso corpo naturalmente usa RNA, um tipo de ácido nucleico "primo" do DNA que funciona como um intermediador capaz de expressar as informações presentes no nosso código genético. Para simplificar, o RNA ajuda no processo de transcrição e tradução das nossas características genéticas (que estão sempre contidas no DNA).

Cada um dos três tipos tem uma função específica.

  • RNAr (RNA ribossômico): forma ribossomos que ligam aminoácidos em proteínas;
  • RNAt (RNA transportador): leva aminoácidos ao interior das células, até o local de síntese de proteínas;
  • RNAm (RNA mensageiro): transmite a mensagem genética para os ribossomos, indicando quais os aminoácidos e qual a sequência que devem compor as proteínas.

As vacinas de Pfizer e Moderna usam o RNA mensageiro para mimetizar a proteína spike, específica do vírus Sars-CoV-2 —causador da covid-19—, que o auxilia a invadir as células humanas. Essa "cópia", no entanto, não é nociva como o vírus, mas é suficiente para desencadear uma reação das células do sistema imunológico, que cria uma defesa robusta no organismo.

Até o início do século, a ciência não era avançada o suficiente para fazer com que o RNA mensageiro produzisse alguma proteína específica ao ser colocado dentro de um um organismo vivo. Isso por que a molécula com as instruções para a fabricação de proteínas era sensível e facilmente destruída.

A partir de 2005, pesquisas científicas começaram a difundir conhecimento adquirido sobre técnicas para tornar essa estrutura mais estável, como inseri-la em pequenas partículas de gordura.

Mesmo assim, devido à sua fragilidade, as moléculas de mRNA se desintegram rapidamente quando expostas à temperatura ambiente. Por isso, necessitam ser armazenadas em temperaturas baixas — o principal desafio dos países que aprovaram esses imunizantes.

Em laboratório, depois de criar a sequência genética capaz de induzir a produção de proteínas parecidas com a do novo coronavírus, o cientista a insere em partículas lipídicas — que são muito delicadas, daí a necessidade de temperaturas baixíssimas — e que possibilitam o transporte dessa sequência genética para dentro das células da pessoa vacinada. Flávio Guimarães da Fonseca, virologista do Centro de Tecnologia de Vacinas e pesquisador do Departamento de Microbiologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

Um trabalho conjunto do sistema imune

"Em resumo, quando a sequência genética [que está dentro da vacina] entra na célula, ela induz a formação de uma proteína idêntica a do coronavírus. O sistema imunológico reconhece essa proteína e gera células de defesa ou anticorpos que protegem o organismo da infecção real", afirma Fonseca.

Uma explicação mais detalhada é que, após a injeção, o mRNA da vacina, ou a mensagem que ela carrega, é eventualmente destruído pela célula, mas o organismo já terá produzido muitos fragmentos das proteínas spike (aquelas que são idênticas ao do coronavírus), que podem ser absorvidos por um tipo de célula imunológica (chamada célula apresentadora de antígeno) que tem como função apresentar a célula "estranha" para uma célula T.

As células T têm funções imunológicas de respostas antivirais, seja através da produção de citocinas ou eliminando ativamente células infectadas.

Ao detectar os fragmentos da proteína spike, essas células agem eliminando as células infectadas com o vírus e enviam uma espécie de alarme que ajuda outras células do sistema imunológico a se organizarem para combater a infecção. É como se tivéssemos avisando o "exército de defesa" do nosso corpo para "acordar" porque tem um vírus estranho rondando por aí.

As células B, também agentes do sistema imunológico, podem encontrar com as proteínas spike na superfície das células vacinadas. Algumas dessas células B, se forem ativadas por células T auxiliares, começarão a proliferar e a liberar anticorpos que têm como alvo a proteína spike. Ou seja, é mais uma linha de defesa do nosso corpo.

As células apresentadoras de antígeno também podem ativar outro tipo de célula imune, a T killer, para procurar e destruir quaisquer células infectadas por coronavírus que exibam os fragmentos de proteína spike em suas superfícies: outra linha de defesa do organismo.

Transporte e armazenamento são desafios

As vacinas ainda não foram aprovadas no Brasil e não há acordo firmado para fornecimento dos imunizantes com o governo federal, mas as especulações sobre como elas chegariam até nós já começaram.

Se houver a possibilidade desse tipo de vacina ser disponibilizada na rede pública, nosso programa nacional de imunizações não está preparado. Mayra Moura, diretora da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações).

De acordo com a especialista, após saírem dos laboratórios, as vacinas devem ser levadas até um ponto de armazenamento central, que é de gestão federal e contém freezers preparados para atingir até -20ºC. Mas, ao chegarem aos postos e salas de vacina, de gestão municipal, são armazenadas a 2ºC a 8ºC.

A Pfizer, que criou um imunizante que precisa ser estocado a -75ºC, está construindo contêineres especiais com gelo seco e sensores térmicos para garantir que as vacinas possam ser transportadas e ainda permaneçam viáveis. Já a vacina da Moderna pede uma logística um pouco menos complicada —é necessário armazená-la a -20ºC.

No Brasil, os ultracongeladores, como são chamados os aparelhos capazes de estocar vacinas como essa, só são encontrados em laboratórios de empresas como farmacêuticas ou universidades.

Prós da vacina de RNA

  • Potencial de solução de combate muito rápido

    Manipulação de engenharia genética relativamente rápida de fazer

  • Valor mais acessível

    Já que a replicação da tecnologia é simples

  • Rendimento alto

    Muitas doses por litro

  • Versatilidade

    Sua plataforma pode ser usada na formulação de outros imunizantes em epidemias futuras

  • Produção segura

    Pode ser realizada em laboratórios comuns

Contras da vacina de RNA

  • Não existe vacina genética no mercado

    O que naturalmente torna o processo de aprovação mais complexo

  • Sensibilidade

    Vacinas de mRNA são sensíveis a calor e luz, o que dificulta transporte e armazenamento

    Leia mais

Vacinas de RNA não mexem no seu DNA

Embora algumas pessoas insistam em espalhar boatos de que a vacina possa alterar o DNA humano por conter sequenciamento genético, ela não tem esse poder. "As informações dos humanos estão no DNA. Para o vírus, o material genético é contido no RNA. Embora o RNA que imita as informações do vírus entre dentro das nossas células, ele não muda nosso DNA, pois são moléculas incompatíveis e não têm sequer a mesma localização", explica Fonseca.

Além disso, o corpo humano já tem, naturalmente, a presença dos ácidos RNA. "Todas as nossas células têm RNA, é como produzimos proteínas. Essa molécula vai servir de molde para a proteína, só que com a vacina, o molde imitará a proteína do vírus. Não há possibilidade de interferência no genoma", esclarece Luciana Barros de Arruda, microbiologista e professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Fernando Spilki, professor da Universidade Fevalee, explica, ainda, que a interferência de um RNA no DNA ou integração no DNA é algo extremamente difícil de acontecer, mesmo em laboratório. "É muito improvável que vá acontecer em condições naturais —ainda mais se tratando de um RNA pequeno, como é o RNA mensageiro. O nível de segurança é extremamente alto e as vacinas que forem aprovadas pela Anvisa terão passado pelos testes necessários para garantir isso. A população não precisa se preocupar."

Marco da ciência

Com a aprovação das primeiras vacinas que utilizam RNA mensageiro, há a possibilidade de atuar mais rapidamente em futuras epidemias e evitar milhares de mortes com a criação mais ágil de um imunizante barato e de rápida produção —embora muitos países ainda enfrentem os desafios de logística e relacionados aos interesses políticos de seus governantes.

"A aprovação pode mudar a maneira como pensamos e produzimos vacinas daqui para frente. Abre espaço e caminho para uma maneira mais rápida e eficiente de produzir vacinas versáteis, que só trabalham com sequências, sem precisar cultivar o vírus em laboratórios", opina Natalia Pasternak, pesquisadora e doutora em microbiologia pela USP (Universidade de São Paulo).

Mas embora seja importante ter essa tecnologia utilizada e disponibilizada em caso de outras epidemias, é importante ressaltar que isso não a torna melhor do que outras. "Todas as vacinas que forem aprovadas terão níveis de segurança muito parecidos. Para a proteção da população, as pessoas devem estar prontas e dispostas para tomar a vacina que estiverem ao seu alcance", afirma Barros.

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