Vírus: o inimigo invisível

Eles são simples, não comem, não respiram nem se reproduzem sozinhos, mas têm poder de causar grandes estragos

Danielle Sanches e Gabriela Ingrid Do VivaBem, em São Paulo Arte/UOL

O que são vírus?

Até parece brincadeira que um ser que não conseguimos ver a olho nu pode causar tamanha disrupção na sociedade moderna. Mas os vírus são assim: bastante simples em estrutura, mas capazes de grandes estragos.

Para começar, ainda não há um consenso sobre se eles são seres vivos ou não. Isso porque nem células os vírus têm —sua estrutura é composta basicamente de uma capa de proteínas e gorduras que contém dentro um material genético (que pode ser um pedaço de RNA e/ou de DNA). Por serem assim, tão simples, eles não têm autonomia: não comem, não respiram nem se reproduzem sozinhos.

Para fazer tudo isso, eles dependem de um hospedeiro com células vivas que possa receber seu material genético e fazer inúmeras cópias dele. Essa é a única razão de ser de um vírus: se multiplicar. Uma vez que ele encontra seu hospedeiro, atua para infectá-lo, se infiltrar nas células e iniciar o processo de replicação.

Nesse processo, qualquer tipo de vida está valendo: pode ser você, seu animal de estimação ou até mesmo bactérias (os vírus que atacam esse tipo de criatura são chamados de bacteriófagos). Uma vez infectadas, as células são "hackeadas" e passam então a produzir cópias apenas do gene viral. É um processo irreversível —e que só acaba com a morte da célula.

Arte/UOL

Qual a relação dos vírus com os animais silvestres?

Estima-se que há mais de um milhão e meio de vírus desconhecidos na vida selvagem. Conhecemos apenas cerca de três mil, o que dá menos de 0,2%. É muito pouco. Alguns dos que temos ciência protagonizaram as últimas epidemias e pandemias, como as gripes aviária e suína, o HIV, ebola, Sars, Mers e, mais recentemente e de maneira global e assustadora, a Covid-19.

Os vírus que conseguem sair dos animais e chegar aos humanos são chamados de zoonóticos. Eles mutam rapidamente, burlando respostas imunológicas e conseguindo migrar para espécies diferentes. O HIV, por exemplo, veio de chimpanzés; o ebola provavelmente de morcegos; o Sars de morcegos e civeta; o Mers de dromedários; e há uma teoria de que o novo coronavírus (Sars-CoV-2) também tenha surgido em morcegos e, antes de chegar em nós, passou por outro mamífero. Pangolins são os mais "cotados". Pesquisadores da China e da Austrália descobriram que as sequências genéticas de coronavírus em pangolins são 85,5% a 92,4% idênticas a do causador da Covid-19,.

"A questão fundamental é que as diferenças (tipo de moléculas que o vírus usa pra entrar na célula, temperatura média corporal, fisiologia dos tecidos) entre morcegos e humanos não são suficientes para um salto direto desses animais para nós", diz o virologista Rômulo Neris, formado pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisador visitante da Universidade da Califórnia (EUA).

Mas como exatamente um vírus que estava no morcego, por exemplo, foi parar em um pangolim e depois em um homem? No caso do Sars-CoV-2, uma das hipóteses é que essa transferência tenha ocorrido em um mercado de alimentos em Wuhan, na China. Das primeiras 41 pessoas infectadas, 27 estiveram lá.

Diferentemente de mercados ocidentais, feiras na China vendem carnes bem frescas, de animais mortos na hora. Isso transforma esses locais em potenciais "fábricas" de doenças. Espécies diferentes são amontoadas em gaiolas, que ficam uma em cima da outra. Fezes e alimentos se misturam e, antes da venda, sangue e carne também são misturados. Os vírus podem passar facilmente de um animal para outro até, por fim, chegar a um humano.

Muitos vírus existem no planeta há tempos. Eles permanecem em seus próprios reservatórios naturais até que haja uma chance de transbordamento"

Sandra Helena Alves Bonon, professora e biologista do Laboratório de Virologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)

A culpa não é da China

O mercado chinês não é o único provável responsável pelo aumento de vírus zoonóticos nas últimas décadas. O desmatamento causado pela urbanização faz com que animais silvestres entrem em contato com mais pessoas. Quando espécies que estão no lugar mais alto da cadeia alimentar têm seus habitats diminuídos e removidos, animais menores proliferam na região, atingindo altas densidades. É o caso de morcegos e pequenos roedores.

Além disso, as mudanças climáticas exercem seu papel no surgimento de novas doenças. Por causa delas, muitas árvores mudaram os padrões de quando dão frutas. Isso faz com que alguns animais busquem as mesmas árvores para se alimentar. Morcegos e primatas comem da mesma fruta, trocando fluidos.

Idas e vindas de aviões também favorecem o espalhamento de doenças, assim como a maior densidade populacional. "O movimento dessas pessoas, principalmente por avião, faz com que as infecções possam ser trazidas de outras partes do mundo em poucas horas", diz Bonon.

O primeiro caso da pandemia pelo novo coronavírus, por exemplo, foi identificado em Wuhan, na China, no dia 31 de dezembro de 2019. Desde então, os casos começaram a se espalhar rapidamente pelo planeta. A verdade é que a tecnologia e o estilo de vida humano tornaram a pandemia inevitável.

Nem todos os vírus são do mal

É verdade que muitos vírus podem causar problemas sérios, mas nem todos são "mensageiros do apocalipse" e alguns participaram de forma importante da nossa evolução. Os cientistas estimam que cerca de 8% do nosso DNA —código que diz ao corpo como funcionar — tem origem de alguns vírus que foram incorporados ao longo das gerações.

Em alguns casos, as sequências dos chamados retrovírus endógenos humanos (ou HERVs, na sigla em inglês) acabaram se tornando úteis para nós: um deles, batizado de HEMO, por exemplo, ajuda o corpo das grávidas a "construir" uma proteção ao redor do feto que impede o contato com toxinas do sangue da mãe. Em outro caso, cientistas encontraram evidências de que um tipo específico de vírus pode proteger o corpo contra bactérias que nos fazem mal.

Mas de onde vem essa ideia de que todos os vírus são do mal? Alguns fatores podem explicar essa impressão. Para começar, as doenças que eles provocam tendem a se espalhar de forma incontrolável e assustadora em pouco tempo —exatamente como acontece com o Sars-CoV-2.

Os vírus também costumam ser menores e mais resistentes que outros patógenos infecciosos, como as bactérias. Outra questão é que os vírus são mais difíceis de serem identificados —e eliminados. "Precisamos de exames mais detalhados", diz Rafael Jácomo, diretor técnico do Grupo Sabin Medicina Diagnóstica. "E os medicamentos retrovirais, além de demorarem para serem desenvolvidos, são bastante restritos no uso. Contra bactérias, já temos conhecimento sobre antibióticos", explica.

Por fim, vale lembrar que a taxa de replicação dos vírus é enorme, dando mais chance para que apareçam mutações perigosas ao ser humano. "A célula humana, por exemplo, tem um mecanismo para controlar essas mutações", afirma a bióloga Rafaela Rosa-Ribeiro, pós-doutoranda que está na Itália trabalhando com a equipe do Hospital San Raffaele (Milão) nos estudos sobre o novo coronavírus. "No vírus, isso não existe, o que faz com que ele seja uma bomba-relógio, já que qualquer mutação pode facilitar a infecção em outros organismos, como aconteceu com o coronavírus."

Por que vírus mutam?

Apesar de ser constantemente associada a algo grandioso, que alimenta até histórias de super-heróis, a mutação faz parte do ciclo de vida de um vírus e "raramente afeta dramaticamente os surtos", como explica o microbiologista Nathan Grubaugh, professor de epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale (EUA), em um artigo recente da revista científica Nature.

É claro que as mutações permitem que os vírus se adaptem melhor ao organismo infectado. É por isso que muitos deles conseguem "pular" para espécies diferentes. Mas as mutações também podem dar errado e, como estão sujeitas às ações da seleção natural, até matar o vírus.

Isso ocorre pois as mutações são mais frequentes em vírus formados por cadeias de ácido ribonucleico (RNA), que carregam as informações genéticas do vírus e não possuem uma atividade revisora capaz de corrigir o que estão fazendo, como acontece com o DNA humano. No nosso caso, temos enzimas que checam se tudo está como deveria estar e, se algo estiver errado, eliminam a falha.

O mais fascinante é que, mesmo com esses erros, os vírus tiram vantagem disso. Vamos comparar com os humanos de novo: temos poucos filhos, isso quer dizer que deixamos nossa descendência genética em dois ou três humanos. Mas o vírus faz milhões de cópias —ou "filhos" após infectar uma célula. Ao "procriar" tanto, ele acaba deixando algumas mutações "boas" por aí e que podem ser vantajosas em algumas situação, como explica João Renato Rebello, virologista do Hospital Israelita Albert Einstein.

Um exemplo disso é o influenza, ou o vírus da gripe. A vacina deve ser tomada todos os anos justamente porque ela muda de acordo com o novo sorotipo de vírus. "Há um enorme esforço para caracterizar os vírus influenza pelo mundo. Essas informações são usadas para prever quais vírus circularão na temporada de gripe e produzir as vacinas. E mesmo com todo esse trabalho, as previsões não estão sempre corretas", diz Josh Petrie, pesquisador e professor do Departamento de Epidemiologia da University of Michigan School of Public Health, dos Estados Unidos.

Proteções externas contra invasores

  • Vacinas

    Funcionam como uma memória imunológica artificial. Elas contêm versões inertes ou pouco agressivas dos vírus, ou apenas uma pequena quantidade deles, que não nos deixam doentes, mas estimulam a produção de anticorpos específicos para aquela ameaça.

  • Antirretrovirais

    Existem vários tipos dessas drogas, muito usadas em terapias contra o HIV. Um tipo de antirretroviral, por exemplo, funciona como inibidor de fusão. Eles se ligam à proteína do vírus e impedem que ela se ligue ao receptor da nossa célula. Há também os que se ligam ao receptor, dificultando a entrada do vírus na célula. Outros funcionam quando há mutação do vírus e ele já entrou na célula. Nesses casos, evitam a replicação viral dentro das células. Justamente devido às mutações de alguns vírus, alguns tipos de retrovirais não funcionam sozinhos. Mas se forem combinados, impedem que diversas "fases" da replicação ocorram, desde a entrada na célula até a sua multiplicação --lembra do coquetel da Aids?

  • Terapia com plasma

    Utiliza-se o plasma (parte líquida do sangue) de quem se recuperou da doença. Esse líquido tem anticorpos que podem ser úteis para compensar a incapacidade do sistema imunológico. Quando injetado no novo paciente, ele fornece essa "imunidade passiva", até que o sistema imune gere seus próprios anticorpos.

Por que a vacina contra o coronavírus vai demorar

Os coronavírus também são vírus do RNA, que têm a capacidade muito grande de passar por mutações —e por isso infectam várias espécies. Segundo Rebello, como só "descobrimos" o Sars-CoV-2 no final de dezembro de 2019, ainda há muita coisa desconhecida sobre ele que não permite uma previsão de quando teremos uma vacina.

"Talvez seja muito mais difícil do que imaginamos. Precisamos estudar se existem regiões do genoma do vírus que mutam menos ou não mutam, e se conseguimos montar alguma resposta imune baseada nessa região", diz Rebello. De acordo com ele, para dar certo, essa resposta deve ser capaz de controlar uma mutação.

Embora um estudo chinês disponibilizado para pré-visualização em 19 de abril aponte que o novo coronavírus já deu origem a mais de 30 cepas diferentes, com as informações que temos ainda não se sabe ao certo se quão rápidas e frequentes são essas mutações, nem se elas terão impacto no tratamento clínico e na busca por uma imunização.

De acordo com Rebelo, ainda é preciso saber mais. "É complexo, tem que estudar as regiões do vírus que estimulam a nossa produção de anticorpos. É algo que ainda não está determinado para o Sars-CoV-2". Por isso, a previsão é de que teremos uma vacina contra o novo coronavírus daqui um ano e meio a três anos. "Acho que três anos é um prazo mais razoável", acredita o virologista.

Dá para prever uma pandemia?

Não é de hoje que os cientistas se perguntam se é possível prever quando uma pandemia vai nos atingir em cheio. O cientista americano Dennis Carroll, o mesmo da série "Pandemia" do Netflix, levou essa premissa a sério e, em 2016, criou o Global Virome Project, uma tentativa de descobrir novos vírus e monitorá-los para antecipar aqueles que saltariam do mundo animal para o nosso.

Carroll, que por anos trabalhou para o CDC americano e supervisionou a divisão de doenças infecciosas para a Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (USAID), quer que essas descobertas se transformem em um grande banco de dados. "Meu objetivo é encontrar os vírus antes que eles nos encontrem", disse, em recente entrevista ao UOL.

Mas esse tipo de iniciativa talvez não sirva para nos alertar a tempo. Como falamos, estima-se que há mais de um milhão e meio de vírus desconhecidos na vida selvagem. Antecipar uma pandemia dependeria, por exemplo, de "adivinhar" fatores como qual tipo de vírus seria capaz de nos atingir, qual seus animais hospedeiros, onde o homem entraria em contato com ele e qual o ambiente em que isso tudo aconteceria.

"Isso é bastante difícil", afirma Josh Petrie, pesquisador e professor do Departamento de Epidemiologia da University of Michigan School of Public Health, dos Estados Unidos.

Sim, podemos prever que uma pandemia está prestes a acontecer, mas é quase impossível saber exatamente quando, onde e qual micro-organismo vai provocá-la. O que não significa que não possamos tentar

O vírus influenza, por exemplo, considerado perigoso (como outros vírus respiratórios), tem sido monitorado mundialmente para saber quais cepas estão circulando —para fabricar vacinas e identificar possíveis mutações que possam criar uma epidemia letal —como é o caso dos subtipos H5N3 e H7N9 (causadores da gripe aviária).

Mesmo o monitoramento dos coronavírus já era feito pela China desde o surgimento da epidemia de Sars (em 2003). "Eles já sabiam que os coronavírus presentes em morcegos eram uma bomba-relógio", avalia Felipe Naveca, virologista brasileiro da Fiocruz que coordenou o sequenciamento do novo coronavírus na Amazônia. "Mas ainda é difícil prever quando e como essas mutações vão acontecer", diz.

Como e quando uma pandemia chega ao fim?

Quando e como uma pandemia termina pode se resumir a uma palavra: imunidade. Conforme a doença avança, mais pessoas são contaminadas e se tornam imunes a ela. Quando esse número cresce, quem se contamina não consegue passar o vírus para frente, impedindo que ele ataque novos organismos e reduzindo sua circulação.

É a lógica por trás da "imunidade de rebanho", e uma solução aparentemente plausível, que resolveria as coisas rapidamente se um grande número de pessoas pegasse o vírus. O problema é que, no caso do novo coronavírus, as projeções —e a experiência de alguns países — indicam que o custo humano seria imenso.

"Teríamos grande parte da população infectada em um curto período de tempo, isso provocaria um colapso no sistema de saúde [como já está acontecendo] e custaria vidas", afirma Naveca. "É por esse motivo que a taxa de transmissão precisa ser diluída", diz.

Existe ainda outra questão: não sabemos ao certo se essa lógica funciona, já que a própria OMS anunciou que os dados sobre o Sars-CoV-2 não permitem garantir se e por quanto tempo uma pessoa infectada se torna imune ao microrganismo. No caso da epidemia de Sars, causada por outro coronavírus em 2003, os pesquisadores descobriram que a imunidade poderia durar por cerca de três anos.

E não tem como não falar da vacina novamente. Essa é a melhor forma de garantir imunidade da população sem expor as pessoas à doença. O problema é que elas levam tempo para serem desenvolvidas e, muitas vezes —como aconteceu na pandemia de H1N1, em 2009, e na epidemia do Ebola, em 2014 —, chegam quando os casos já atingiram uma estabilidade e começam a cair.

Por isso, a estratégia do isolamento social é, no momento, a nossa melhor chance de acabar com a pandemia com um número controlado de mortes. "A quarentena é uma forma de 'comprar tempo' para que todos estejam imunizados sem sobrecarregar os sistemas de saúde", afirma Rafael Jácomo.

O especialista acredita que, enquanto a vacina não chega, um provável cenário será o do isolamento intermitente —ou seja, vamos oscilar entre períodos de "vida normal" e quarentena como forma de controlar os surtos da doença.

Sem a vacina, o vírus vai continuar circulando. E aí será preciso esse controle para mantermos o sistema de saúde funcionando.

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