Topo

Fuga de Ghosn ameaça reputação do Japão e preocupa executivos da Nissan

Após fugir do Líbano, Ghosn poderia delatar ex-colegas que o tiraram do poder - Toshifumi Kitamura/AFP
Após fugir do Líbano, Ghosn poderia delatar ex-colegas que o tiraram do poder
Imagem: Toshifumi Kitamura/AFP

Do UOL, em São Paulo (SP)

07/01/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Postura do sistema judiciário foi duramente criticada fora do Japão
  • Especialistas afirmam que empresas devem desistir de estrangeiros no comando
  • Ex-colegas da Nissan temem que Ghosn faça denúncias contra eles

Carlos Ghosn ainda não se pronunciou desde sua surpreendente fuga do Japão uma semana atrás. O ex-CEO da aliança Renault-Nissan promete falar na próxima quarta-feira (8). Até agora, o fato é que Ghosn está livre para falar - e isso preocupa tanto as autoridades japonesas quanto executivos da Nissan.

O executivo que ganhou status de herói nacional após salvar a Nissan da falência foi preso em 2018 sob acusação de má conduta financeira e estava em prisão domiciliar nos últimos meses.

Porém, sua escapada para o Líbano deixou os japoneses atônitos, tanto é que as autoridades ainda investigam como ele conseguiu fugir, já que Ghosn vivia sob vigilância permanente em Tóquio.

Enquanto as respostas não surgem, especialistas afirmam que a reputação do Japão pode sofrer um grande baque no mercado de negócios.

"A 'marca Japão' vai sofrer sérios danos. Seu caso certamente é uma grande mancha negra no sistema judiciário japonês", afirmou Jeffrey Kingston, diretor de Estudos Asiáticos na Temple University Japan, à emissora "CNN'.

Ghosn preso 1 - Kyodo/via REUTERS  - Kyodo/via REUTERS
Ghosn deixa escritório de advogados um dia antes da segunda detenção
Imagem: Kyodo/via REUTERS

Acusado de utilizar recursos financeiros das empresas que presidia, Ghosn pode até ser condenado, mas Kingston diz que "tudo isso foi ofuscado" pelo tratamento dado a ele desde sua primeira detenção e pelas acusações de que o sistema judicial do Japão trata estrangeiros de forma distinta.

Enquanto isso, Ghosn prometeu comunicar-se "livremente" com a imprensa e revelar detalhes de sua vida nos últimos meses.

Direitos humanos essenciais

A Ministra da Justiça do Japão, Masako Mori, admitiu ter recebido "diversas críticas" sobre o sistema judiciário, mas tratou de defendê-lo dizendo que ele assegura "os direitos humanos essenciais" de qualquer pessoa.

Mori afirmou que o Japão pode requisitar a extradição de Ghosn junto ao Líbano. Justamente por isso é que a ministra disse que o pedido precisaria ser tratado com cuidado, já que os dois países não possuem um acordo deste tipo.

Carlos Ghosn prisão 2 - Divulgação - Divulgação
Ghosn é de família libanesa; leis do país impedem extradição de cidadãos
Imagem: Divulgação

O caso Ghosn também pode ter reflexos diretos nas empresas japonesas quando pensarem em contratar executivos estrangeiros. "A lição que fica é que o risco é muito grande", diz Kingston.

Da mesma forma, possíveis candidatos a cargos de alto escalão podem pensar duas vezes antes de aceitar uma proposta. De acordo com Kingston, executivos estrangeiros podem recusar transferências para o Japão com receio de "virarem um novo Ghosn".

O caso de Ghosn, porém, pode nem influenciar tanto assim na política de contratações das empresas no Japão. Isso porque executivos estrangeiros raramente são convocados para cargos de alto escalão. Além da política de preferir funcionários japoneses, trabalhadores nascidos fora do país podem ter dificuldades para se acostumar com a cultura das empresas e do próprio país.

Ghosn também era um ponto fora da curva até então. De acordo com a "CNN", algumas empresas apostaram em estrangeiros no passado e não tiveram motivos para comemorar. Michael Woodford foi CEO da empresa de eletrônicos Olympus por um breve período e deixou o cargo após encobrir práticas fraudulentas em 2011.Howard Stringer comandou a Sony durante um período de vacas magras na empresa e Craig Naylor se demitiu do cargo na Nippon Sheet Glass em menos de dois anos por conta de divergências de ideias com o restante da companhia.

Com a fuga de Carlos, Christophe Weber, atual CEO da empresa farmacêutica Takeda, é o estrangeiro mais bem-sucedido da indústria japonesa na atualidade. Mesmo assim, ele não está livre das desconfianças: no ano passado, o francês foi duramente criticado ao fechar a compra do laboratório irlandês Shire por US$ 62 bilhões. Na época, o negócio foi considerado como arriscado demais.

Estilo impetuoso e salário alto geravam insatisfações

O relacionamento entre Ghosn e a Nissan se deteriorou nos últimos anos por conta do temor de que a Renault poderia influenciar nas decisões da empresa japonesa.

Segundo Stephen Givens, professor de Direito da Universidade de Sophia, em Tóquio, a Nissan nunca gostou da ideia de ter um CEO e um investidor estrangeiros - no caso, a Renault.

Ghosn foi duramente criticado quando cortou 20 mil empregos e fechou fábricas logo após assumir a Nissan, mas gozava de prestígio por ter livrado a empresa da falência. Mesmo assim, o prestígio do empresário não era mais o mesmo de outrora, especialmente por seu estilo impetuoso e pelo generoso salário que ganhava no Japão.

A consultoria Proxinvest estima que o executivo ganhou 13 milhões de euros (quase R$ 56 milhões) em 2017. Desse total, 7,4 milhões de euros (R$ 31,7 milhões) se referiam aos seus ganhos no grupo Renault.

Normalmente, os salários de cargos executivos no Japão são mais baixos do que nos Estados Unidos. Um estudo feito no mês passado pela consultoria Willis Towers Watson apontou que a média salarial de um CEO no Japão foi de 156 milhões de ienes em 2018, ou aproximadamente R$ 5,8 milhões. O valor é bem inferior aos R$ 55,5 milhões pagos nos EUA.

Executivos da Nissan temem declarações de Ghosn

Funcionários de alto escalão da Nissan estariam temerosos com a liberdade de Ghosn. Isso porque o ex-CEO teria afirmado que possui provas de que foi vítima de um complô para tirá-lo do poder. O brasileiro, inclusive, estaria disposto a entregar nomes de ex-colegas que participaram do suposto plano que resultou em sua prisão.

"Muitas pessoas na Nissan e na Renault devem pensar que pode ser realmente perigoso se Ghosn falar", afirmou Koji Endo, analista sênior da SBI Securities, sediada em Tóquio.

Uma pessoa ligada ao novo CEO da Nissan, Makoto Uchida, disse que ele teria ficado surpreso com a fuga de seu ex-chefe.

Uchida é o segundo executivo a assumir o comando da montadora após a saída de Ghosn. Antes dele, Hiroto Saikawa foi nomeado CEO, mas renunciou pouco tempo depois após admitir ter recebido pagamentos indevidos ligados à ações do grupo quando Ghosn ainda comandava a empresa.