Opinião

SP 470 anos: padre Júlio Lancelotti nos mostra que outra cidade é possível

Solidariedade é uma palavra que me acompanha desde muito cedo e que se mistura à minha história com São Paulo, a maior cidade da América Latina, que comemora hoje (25) seus 470 anos. Sempre escutei que, por aqui, é bem fácil ficar ou se sentir invisível. Que todos têm tanta pressa que não sobra tempo para ser solidário.

Mas existem pessoas que comprovam que essa teoria não é tão verdadeira assim. Uma delas é o padre Júlio Lancelotti, paulistano que luta há mais de 40 anos para dar dignidade aos invisibilizados da cidade.

Talvez você não se lembre, mas no início dos anos 1990 muitos ainda acreditavam que o HIV se espalhava pelo ar ou por um simples aperto de mão, ignorância que isolava as pessoas infectadas do convívio em sociedade. Muito incomodado, o padre Júlio criou nessa época a Casa Vida. Queria evidenciar a situação e ajudar, principalmente, as crianças com HIV órfãs ou abandonadas pelas famílias.

Em uma entrevista, contou que o seu principal objetivo, além de abrigá-las, era tirar o medo de morrer que tinham. Oferecer dignidade para aquelas que desenvolveram a doença. Outra maneira que encontrou de denunciar o preconceito foi batizando crianças soropositivas ao lado de outras, sem o vírus. Sim, naquele tempo até estar ao lado era uma questão.

Sempre morei na zona leste de São Paulo e meus pais admiravam o trabalho do padre Julio. Assim, a nossa história se cruzou e, em 1992, fui batizada junto a meninas e meninos da Casa Vida. Eu brinco que foi o meu primeiro protesto. Ou, manifestação política.

Essa história sempre me inspirou e por isso, quando tinha 14 anos, decidi fazer trabalho voluntário em abrigos. Hoje em dia, por conta do baixo índice de infecção da doença, não se separam mais as crianças pelas suas enfermidades.

Sempre vi em mim e nos outros a capacidade de cooperação e comunhão. Hoje, trabalho com comunicação em projetos sociais e sempre me encontro com pessoas e histórias muito inspiradoras. Dois exemplos são: SP Invisível, que relata a vida de pessoas em situação de rua e o Nós, Mulheres da Periferia, uma redação de mulheres que conta o que acontece no cotidiano das paulistanas da ponte pra lá, pois a periferia é esse lugar que sempre nos ensinou a viver em comunidade.

Por isso, faço a seguinte proposta ao leitor: já que São Paulo tem tanta gente, que tal usarmos a nossa criatividade e energia para promover o compromisso com a solidariedade?

Não me refiro apenas a doações em dinheiro e alimentos. Ou atividades voluntárias em projetos sociais, que também são muito importantes e essenciais. Falo aqui de solidariedade como ética para a vida, como ação, saber cooperar com o outro, viver em comunidade e fazer algo por ele. Como podemos cultivar uma ética de vida mais solidária?

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Com tantas pessoas, a capital paulista esbarra nos interesses e inseguranças de muitos daqueles que têm algum poder de mudança nessa lógica urbana que "culpabiliza os pobres e não o sistema que os exclui", como diria o padre Júlio. E se eu te contasse que também dá pra fazer o contrário? Usar essa potência de ideias para transformar a realidade dos que se sentem sozinhos e invisíveis por aqui.

Você pode pensar que na capital da correria não sobra tempo para sermos solidários. Mas pense: O que você pode fazer para melhorar o seu bairro? Como você pode ajudar o seu vizinho? O que você faria para viver em um lugar com mais cooperação entre as pessoas?

Existir em comunidade é sempre melhor e desconfio que na lógica que vivemos hoje, cada vez mais isolados, não vamos muito longe.

Acredito que são as pequenas - e as grandes atitudes também - capazes de transformar São Paulo, e tem muita gente pra ajudar a fazer isso. Como diria Milton Nascimento e Fernando Brant:

Pois não posso, não devo, não quero viver como toda essa gente insiste em viver/ E não posso aceitar sossegado qualquer/ sacanagem ser coisa normal/ Bola de meia, Bola de gude/ Um solidário não quer solidão/ Toda vez que a tristeza me alcança um menino me dá a mão

* Marina Cipolla é paulistana, da Vila Matilde, comunicadora e trabalha em projetos sociais desde 2015. Acredita na comunicação como ferramenta de inclusão, desenvolvimento social e transformação territorial.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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