Grupo é atacado por pregar uso seguro de drogas em festas na USP
Diminuir os riscos do consumo de drogas psicoativas por pessoas que não podem ou não querem parar de usá-las. Este é o norte das práticas de redução de danos. Em 2003, a estratégia de saúde focada no acolhimento se consolidou uma abordagem de atendimento no SUS (Sistema Único de Saúde). Mas ainda enfrenta resistência por parte do poder público e da sociedade.
Uma prova disso é o problema que alunos da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) estão enfrentando ao discutir o tema no Instagram. Na última Peruada, tradicional festa da instituição, uma postagem com dicas de redução de danos publicada no perfil do Centro Acadêmico XI de Agosto foi atacada por bolsonaristas.
Um dos motivos: a publicação anunciava uma ação do ResPire, um grupo de redutores de danos que atua em festas levando conhecimento sobre o uso seguro de drogas
A parceria surgiu em 2016 porque os estudantes acreditam que o consumo de substâncias é uma realidade em toda a sociedade — e no mundo universitário não é diferente.
"O diálogo sobre o uso de drogas deve ser feito de maneira franca e responsável. O ResPire fornece esses dois atributos, além de fazer com que tenhamos profissionais capacitados para lidar com possíveis problemas que podem surgir", afirmaram os alunos do Centro Acadêmico em comunicado.
A discussão devido à postagem foi enorme entre os professores e professoras. Uma delas é a deputada estadual Janaina Paschoal, que procurou a direção da faculdade.
Resultado: o Ministério Público enviou uma notícia crime convertida em um inquérito policial para investigar o centro acadêmico por apologia às drogas.
Sem bad trip
O ResPire é uma iniciativa do É de Lei, uma OSC (Organização da Sociedade Civil sem Fins Lucrativos), que desde 1998 promove a redução de riscos e danos — sociais e à saúde — ocasionados pela política de drogas. O coletivo atua com advocacy, comunicação, ensino e pesquisa, praticando intervenções práticas em diversos meios.
"Campo" é o núcleo no qual os redutores de danos acessam os contextos de uso, como a região da Cracolândia em São Paulo, por exemplo.
No Centro de Convivência é possível participar de rodas de conversa, além de acessar informações sobre prevenção de IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), kits de redução de danos, encaminhamentos na área de saúde e de apoio para pessoas em vulnerabilidade social.
Lançada em 2011, ResPire é a frente que leva conhecimento sobre o uso de substâncias em festas para prevenir abusos e a transmissão de doenças virais, como as hepatites. Raves, festivais de música e festas universitárias estão na agenda do grupo.
Durante a Peruada, a reportagem de Ecoa acompanhou a equipe do ResPire instalada no porão da faculdade em um info estande. O espaço é repleto de panfletos com dados dos efeitos de cada substância e orientações para "reduzir danos caso decida usá-las mesmo sabendo que muitas são consideradas ilícitas", como pontua Matuzza Sankofa, coordenadora do ResPire.
Os materiais distribuídos são específicos para o consumo de cada droga. Seda e piteiras aplacam a alta temperatura da fumaça, a produção de resíduos e o uso coletivo dos cigarros de maconha.
O "kit sniff" evita o compartilhamento de canudos no consumo de cocaína e quetamina. Água mineral é oferecida para quem exagera no álcool e outras substâncias. Também são disponibilizados preservativos e gel lubrificantes.
Um dos itens que chama atenção é o auto teste de HIV, cujo resultado sai em minutos. O grupo faz testagem de substâncias utilizando um kit colorimétrico que previne intoxicações ao detectar adulterantes em drogas.
"Esses insumos [kits] fazem parte de uma estratégia de criação de vínculo. A partir deles, oferecemos um cuidado que pode se transformar em acolhimento no espaço que temos reservado da festa, manejar quando alguém tem uma 'bad trip'", conta Matuzza.
Um projeto que comprova os benefícios da redução de danos é o Insite, liderado pelo médico antropólogo Dan Small, em Vancouver, no Canadá. A iniciativa tem um centro onde seringais são distribuídas para o uso de drogas injetáveis com suporte assistido. Além de diminuir a desordem pública da região, o Insite fez aumentar a procura por tratamentos de desintoxicação, diminuiu mortes por overdoses e, o mais importante, não aumentou o consumo de drogas. O programa se mostrou eficaz na prevenção de HIV e outras patologias.
Pela manhã, o movimento do estande foi tranquilo, mas se alterou conforme a Peruada percorria o centro da cidade. Em grupos, os agentes faziam uma ronda no espaço da festa para verificar se alguém precisava de uma forcinha.
Quem passa do ponto pode descansar nas esteiras enquanto espera o mal-estar ir embora sob os cuidados dos agentes. Se a situação for grave, existem as ambulâncias e socorristas como opção.
É difícil não fazer amizade com os simpáticos agentes do ResPire, que escolhe ter uma equipe diversa enquanto gênero, raça e sexualidade para proporcionar o cuidado da melhor forma possível.
Uma situação como a de uma moça alcoolizada, que passou mal e precisou tomar banho, mostra o quanto essa postura humanizada faz a diferença.
"Apenas mulheres cuidaram do acolhimento e ficaram com a aluna até que estivesse consciente e sua mãe fosse buscá-la, proporcionando um espaço seguro e reduzindo os riscos sociais que o uso de álcool pode ter na nossa sociedade" relata Matuzza.
Na visão do ResPire, esta Peruada foi mais tranquila do que as edições anteriores. A substância mais usada foi o álcool. Nenhum caso grave foi constatado.
Assunto ainda é tabu
Em 1989, aconteceu a primeira tentativa brasileira de aplicar uma política de redução de danos. Mas o Ministério Público de São Paulo barrou a distribuição de seringas para usuários de cocaína injetável que se expunham ao HIV na cidade de Santos.
A polêmica do assunto segue na atualidade. Durante a campanha eleitoral, a ministra Damares utilizou panfletos com dicas de redução para fazer fake news.
Sobre todo o barulho causado, os alunos veem um lado positivo: "São duas faces da moeda. Se por um lado pode servir de arma para os moralistas tirarem do contexto o conteúdo, o próprio alcance que eles deram espalhou informações importantes para a saúde das pessoas. Acreditamos que informação não é apologia, por isso estamos contentes com o debate gerado", afirmaram em conjunto.
Caso o inquérito policial vá adiante, eles podem ser prejudicados no mercado de trabalho ao ter uma responsabilização criminal no CPF.
"Muitos de nós somos os primeiros de nossas famílias a ingressarem na universidade. Precisamos dos estudos para o nosso futuro. Além disso, entendemos a abertura do inquérito policial como um dos braços da guerra às drogas, que agora, no contexto universitário, quer estigmatizar e penalizar a liberdade e autonomia das pessoas", afirmam os estudantes.
A postura da guerra às drogas a favor da abstinência também é questionada por Matuzza. Para a coordenadora, o proibicionismo falha porque não dá respostas suficientes que garantam a saúde das pessoas.
É uma limitação apenas falar para não usar drogas. "As pessoas sempre usaram e vão continuar usando substâncias, desde o açúcar até o café, e as que hoje são proibidas. Nosso objetivo é garantir que isso seja feito com o menor risco e o menor dano possível, com consciência e acesso à informação. Fazemos apologia ao cuidado, não às drogas".
Levantando a bandeira
Conhecida por ser a primeira chapa do XI de Agosto a ter uma presidente negra, a Travessia planeja uma reação antiproibicionista. A diretoria irá mobilizar movimentos sociais para defender a redução de danos como uma política séria em relação às drogas.
"Nosso objetivo é que a Faculdade de Direito da USP se torne um centro de encontro para articulação dessas lutas e para podermos, assim, nos proteger da repressão do negacionismo e do moralismo".
Entre os planos está a inclusão de uma disciplina optativa para estudar o tema da guerra às drogas e o direito penal. Os alunos vão reunir ativistas para construir a Marcha da Maconha da USP (Universidade de São Paulo).
"O objetivo é defender a legalização das drogas e o uso da ciência como um instrumento para proteger as pessoas de possíveis prejuízos relacionados ao uso e extrair, a partir de pesquisas científicas, possíveis tratamentos para doenças. E, quem sabe, trazer Carl Hart mais uma vez para o Brasil para um encontro com ativistas e pesquisadores brasileiros."
Outro lado
Procurada pela reportagem de Ecoa, Janaina Paschoal não quis responder às perguntas enviadas. A deputada mandou uma mensagem:
"Eu entendo que a abordagem preventiva jamais deve ser abandonada. Não houve nenhuma mensagem no sentido de os participantes da festa não beberem excessivamente e não se drogarem. Nenhum alerta sobre os riscos do consumo de álcool e outras drogas. Eu fiquei muito triste ao ler a postagem".
As questões feitas pela reportagem a deputada foram se ela considerou a postagem feita pelo Centro Acadêmico XI de Agosto sobre redução de danos como apologia às drogas e o motivo, qual é o posicionamento dela a respeito do trabalho de redução de danos feito pelo ResPire e o ponto de vista sobre os danos de um inquérito policial pode gerar no CPF dos alunos. Por ser professora da faculdade, ela entende como inadequado responder.
Quem fez a denúncia no Ministério Público é uma pessoa que até o momento não falou com os alunos, que afirmam desconhecê-la e não têm o contato da pessoa. A reportagem de Ecoa deixa o espaço aberto caso ela queira se manifestar sobre o ocorrido
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