Capítulo 2: Por que a Williams que matou Senna era "inguiável"?
GP do México de 1990, circuito Ricardo e Pedro Rodriguez, dia 23 de junho. Os dois carros da equipe Leyton House, ex-March, pilotados por Ivan Capelli e Mauricio Gugelmin, não se classificam para disputar a prova. Havia 29 inscritos e apenas os 26 mais rápidos largariam. O modelo CG901 do time, equipado com motor Judd V-8 e concebido pelo então novato engenheiro Adrian Newey, o mesmo da Williams em 1994, não conseguiu ser veloz nas muitas ondulações dos 4.421 metros da pista mexicana.
No veloz S de alta velocidade daquele traçado e, principalmente, na desafiante Peraltada, contornada em 5.ª marcha a cerca de 250 km/h, o CG 901 não gerava a pressão aerodinâmica necessária - por conta da sua suspensão quase não ter curso, ser muito dura. A cada irregularidade do asfalto, o monoposto saltava, variando a densidade do ar sob o assoalho e, por consequência, sem gerar tanta downforce, a pressão que "empurra" o carro contra o asfalto, tornando-o mais rápido nas curvas.
Avancemos apenas quinze dias no tempo, até 8 de julho de 1990, data do GP da França, realizado no circuito de Paul Ricard, próximo de onde resido, em Nice. Um tapete de pista, em oposição ao cenário da etapa anterior do Mundial, no México. Os seus 3.813 metros eram planos como uma imensa mesa de bilhar. O que aconteceu? O mesmo modelo CG 901 da Leyton House permitiu que Ivan Capelli quase vencesse a prova. O italiano liderou 45 das 80 voltas da corrida.
Ivan Capelli é comentarista da TV italiana e nos tornamos amigos. Com regularidade, almoçamos no motorhome da Pirelli ou da Ferrari. É ele que dá, agora, detalhes daqueles dois GPs de comportamentos antagônicos para o seu carro. "No México, com todas aquelas ondulações, o March estolava". Isso quer dizer que perdia completamente a pressão que o mantinha no solo. "Tínhamos de ser prudentes para não perder o controle total do carro".
A Williams, como a March
Nos primeiros testes de Senna em 1994 com o FW16 no Estoril, próximo a Lisboa, ouvimos exatamente a mesma coisa. Ivan Capelli contou-me mais: "Não havia curso nas suspensões. Elas não absorviam nenhuma elevação ou depressão do asfalto. Nós sentíamos tudo no bumbum". Pois Senna fez comentário semelhante também.
O piloto italiano, no entanto, se divertiu em Paul Ricard. "Alain Prost tinha um motor V-12 na sua Ferrari e, mesmo sendo bem mais rápido que eu na longa reta, não me passava. Minha velocidade de curva era bem maior", disse, rindo. "Foi uma pena a luz de pressão do óleo acender, o que me obrigou a trocar as marchas com menos giros e, claro, ser mais lento. Mesmo assim, terminei em segundo, a apenas oito segundos do Alain Prost." E lembra: "Isso tudo depois de sequer me classificar duas semanas antes no México".
Todas as cartas na aerodinâmica
O que eu quero dizer? Que os projetos de Adrian Newey, como o CG 901 e depois, quatro anos mais tarde, o FW16 da Williams, baseavam sua performance quase que exclusivamente na aerodinâmica. E até hoje, na Red Bull, não é diferente. Ele cresceu muito como engenheiro e os recursos à disposição, agora, o permitem atenuar esses efeitos indesejáveis de conceber um monoposto sem curso nas suspensões a fim de obter, teoricamente, o máximo de resposta aerodinâmica.
Se o asfalto fosse plano e permitisse que o assoalho se deslocasse paralelo ao solo, sem haver muita variação de altura, o carro alcançava velocidades extraordinárias nas curvas, por conta de gerar elevada pressão aerodinâmica. Com certeza, mais que a dos seus adversários, como Ivan Capelli demonstrou em Paul Ricard quando, com um motor V-8, quase vence um rival com um V-12, como a Ferrari de Alain Prost.
Agora, se a pista fosse ondulada, o carro quase não fazia curva. O ar variava muito de densidade sob o assoalho, por conta dos pulos, e essa falta de uniformidade dos fluxos de ar não permitiam a geração de pressão aerodinâmica.
Responsabilidade no acidente
A insistência no tema tem uma razão: esse era o maior problema da Williams FW16 e teve peso elevado na média ponderada de responsabilidades que explica o acidente fatal de 1.º de maio.
Podemos recorrer a um exemplo um tanto grosseiro, mas válido, para tentar entender o que se passava com o carro de Ivan Capelli e a Williams de Senna. Se você encher demais os pneus do seu carro, bem além das libras recomendadas, o que acontece? Em qualquer das muitas depressões e elevações do asfalto nas cidades brasileiras, ele irá pular em demasia, não é? Dá para sentir isso, sem dificuldades, no volante. Torna-se instável.
Com um carro de Fórmula 1 sem suspensão, como eram os de Adrian Newey, para tentar fazer o assoalho correr paralelo ao solo, era o mesmo - obviamente, numa proporção bem maior. No nosso carro, o pneu pode estar duro, por ter maior pressão, mas a suspensão ainda absorveria parte das irregularidades. Portanto seria menos grave que nos exemplos da F1. No México, os pilotos não se classificaram e, duas semanas apenas mais tarde, na França, um deles quase vence a prova. Dá para entender quão decisiva é a aerodinâmica na F1?
Agora vamos entrar no túnel do tempo de novo para desembarcar em fevereiro de 1994, quando Senna já testava o modelo FW16 da Williams projetado pelo mesmo Adrian Newey. O engenheiro acabou dispensado da Leyton House, em meados da temporada de 1990, em razão da instabilidade de resultados que seu monoposto gerava. Tudo ou nada.
Vale a pena eu colocar aqui uma frase dita pelo homem que assumiu a equipe naquela época, no lugar de Adrian Newey: o austríaco Gustav Brunner, hoje aposentado da F1. "Tão logo vi o projeto de Adrian Newey, o CG 901, disse a mim mesmo: como ele quer que funcione?" Eu ouvi isso de Brunner, com quem até hoje costumo manter breves conversas.
Adrian Newey renova a Williams
Mandado embora da Leyton House, Adrian Newey foi chamado por Patrick Head, da Williams, cujos dois últimos projetos, de 1988 e 1989, não eram nem a sombra do que venceu o Mundial de 1987, com Nelson Piquet. A Williams precisava de conceitos novos.
O surrealismo das ideias de Adrian Newey em sincretismo com a praticidade, por vezes exacerbada, de Head resultou numa combinação perfeita. "Eu tinha de puxar Adrian pelas pernas de volta para a terra", contou-me Patrick Head.
E falou mais da sua convivência de sucesso com o projetista: "No começo, ele nos apresentava o que desejava fazer e, por vezes, nos chocava. Sabíamos que não haveria como funcionar. Para trabalhar com Adrian é preciso dispor de muito bom orçamento. Ele realiza um número grande de experiências até encontrar o resultado que deseja. Assim, as soluções notáveis que seus carros incorporam na realidade representam o resultado de elevados investimentos em pesquisa. Adrian é muito intuitivo".
Já em 1991, o modelo FW14-Renault da Williams, o primeiro da parceria entre Adrian Newey e Patrick Head, levou Nigel Mansell a disputar o título com Senna, de McLaren MP4/6-Honda, até a penúltima etapa do campeonato, no Japão. A vitória final ficou mais por conta do talento de Senna e das dificuldades iniciais da Williams com a confiabilidade do seu novo carro.
A Williams já havia deixado, tecnicamente, a McLaren para trás. Em 1992 e 1993 não houve concorrência: o modelo FW14 de 1992 foi campeão com Nigel Mansell já no GP da Hungria e, na temporada seguinte, o FW15C, com Alain Prost, era muito superior ao usado pelos adversários.
1993, o ano de Senna
Pessoalmente, vejo a temporada de 1993 como a mais fantástica de Senna na F1. A McLaren competia com motor Ford V-8, adquirido sob leasing da Cosworth. Não era o V-8 Ford destinado à escuderia oficial da montadora, a Benetton, de Michael Schumacher. Entre o motor da McLaren de Senna e o da Benetton havia pelo menos 20 cavalos de diferença em favor da versão oficial da Ford.
Capítulo a capítulo
Leia os outros capítulos:
- A F1 mudou em 94, e a Williams de Senna não era mais a mesma
- Por que a Williams que matou Senna era "inguiável"?
- A trapaça da Benetton de Schumacher colocou pressão em Senna
- Williams machucava as mãos de Senna (e reparo foi fatal)
- Acidente de Rubinho faz Senna cair no choro em Ímola
- Na véspera da morte, gravação de Adriane Galisteu abala Senna
- 1º de maio de 1994, o pior dia na carreira de um jornalista
- Posição dos pés de Senna já mostravam que acidente era grave
- O acidente e a morte de Senna em detalhes que você nunca viu
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- Final: como foi voltar ao Brasil ao lado do caixão de Senna
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