Sobre Meninos e Porcos - Epísódio 1: 'Respeito é pra quem tem'
Você já parou para pensar em que momento o futebol em que as torcidas organizaram passaram das festas nas arquibancadas para a violência? Nós já. E uma das explicações para isso está na maior torcida organizada do Palmeiras, a Mancha Verde. Foi ela que nasceu para "resgatar o respeito" aos palmeirenses e que fez os torcedores assumirem o porco como mascote. E foi ela, também, a primeira a perder um membro assassinado por arma de fogo.
É esse crime, o assassinato de Cleofas Sóstenes Dantas, o Cleo, o ponto de partida para "Sobre Meninos e Porcos", a terceira temporada do premiado podcast UOL Esporte Histórias. Ou melhor: o ponto de partida é outra torcida se gabando pela morte em uma música cantada em arquibancadas. No episódio de estreia, você vê como um grupo de garotos da zona oeste de São Paulo, cansado da violência e da humilhação nos jogos do Palmeiras, se reúne para fundar a torcida organizada Mancha Verde e ganhar respeito nos estádios. E como esses garotos, liderados por Cleo, bolaram uma estratégia: adotar um porco vivo como mascote e transformar a ofensa em orgulho. Enquanto o animal vira o símbolo máximo da torcida do Palmeiras, Cleo se torna o torcedor mais amado entre os palmeirenses. Ao mesmo tempo, ele também se transforma no palmeirense mais odiado entre os rivais.
Você pode conhecer essa história, que os repórteres Adriano Wilkson e Daniel Lisboa investigam há um ano, em um podcast de seis episódios que você pode ouvir no player acima ou ler, em texto, logo abaixo. Nas próximas semanas, sempre às quartas-feiras, um novo capítulo vai ao ar:
- 1: Respeito é pra quem tem
- 2: E ninguém vai me segurar
- 3: Sangue derramado
- 4. Calibre 38
- 5. Chumbo de caça
- 6. Sem saída
Os podcasts do UOL estão disponíveis em uol.com.br/podcasts e em todas as plataformas de distribuição. Você pode ouvir UOL Esporte Histórias, por exemplo, no Spotify, na Apple Podcasts e no Youtube.
Episódio 1: Respeito é pra quem tem
ADRIANO WILKSON: Há alguns anos eu fui escalado para cobrir um clássico entre Corinthians e Palmeiras no Pacaembu. Sugeri ao meu editor acompanhar a Gaviões da Fiel no trajeto entre a sede da torcida e o estádio. Esse é um momento importante no cotidiano de um torcedor organizado. A caminhada pro estádio é a hora em que eles se juntam, cantam seus gritos de guerra e se preparam pro clássico. Naquele domingo, tinha um sol para cada um de nós na rua em frente a sede da Gaviões, no bairro do Bom Retiro, região central de São Paulo. Dezenas ou talvez algumas centenas de corintianos deram os braços e marcharam em direção a uma estação do metrô, que levaria eles ao Pacaembu. Soldados da polícia militar fizeram a escolta durante todo o trajeto, para evitar um confronto com os palmeirenses. E foi dentro do metrô, que eu ouvi a música pela primeira vez. Os caras começaram a cantar e eu tive dificuldade de entender a letra de primeira. A cada repetição, as palavras foram fazendo mais sentido. Um sentido que não combinava com a melodia divertida da canção.
CORINTIANOS (cantando no ritmo de Whisky a Go-Go, do Roupa Nova): O Cleo morreu e o Munhoz também. O Gavião já matou mais de cem. Matar você, um porco a mais não faz mal?
ADRIANO: Durante anos aquela música sobre matar porcos ficou na minha cabeça. Era uma paródia do hit dos anos 80 Whisky a Go Go, do Roupa Nova. Eu cansei de ouvir essa música no final de festas de casamento, de 15 anos, e também cansei de cantar ela em noites de karaokê. Na versão grito de torcida, a Gaviões comemorava já ter matado mais de cem torcedores do Palmeiras, conhecidos como porcos. Alguns deles, eram chamados até pelo nome: Munhoz? Cleo...
DANIEL LISBOA (atendendo o telefone): Alô
ADRIANO: Fala, mano. Viu o link que eu te mandei?
DANIEL: Vi. Confesso que eu fiquei um pouco chocado. A gente conhece, a gente sabe que tem várias músicas de organizada que celebram violência e tal. Mas celebrando assassinato assim, nesse nível, eu acho que nunca tinha escutado, não.
ADRIANO: Esse com quem eu tô falando é o meu colega Daniel Lisboa. A gente se conheceu há cinco anos na redação do UOL fazendo uma reportagem sobre um jogador que foi assassinado em uma operação desastrosa da polícia. De certa forma, essa história explica um pouco da nossa amizade. A gente se interessa por futebol e por crimes violentos. Ou melhor: documentários sobre crimes violentos.
ADRIANO (ao telefone): Eu fico pensando na família desses caras que morreram. Imagina você ver a morte de um parente seu ser celebrada assim....
DANIEL LISBOA: Sim. Eu achei curioso também que o Cleo que é citado na música é aquele que foi fundador da Mancha, se não me engano foi o primeiro membro de organizada assassinado oficialmente.
ADRIANO: Sim. Ele mesmo. 88 né?
DANIEL: 88. E mais curioso ainda é que até onde eu sei esse caso não foi solucionado, então não deixa de ser meio espantoso a gente ouvir música com torcida confessando o crime.
ADRIANO: É... bizarro.
ADRIANO: Depois daquela conversa, a gente decidiu pesquisar mais sobre a história das organizadas. A gente queria saber como o universo das torcidas se tornou esse lugar onde mortes violentas são incentivadas.
DANIEL: Incentivadas e celebradas.
DANIEL: Pra ser justo, esse tipo de música não é cantada apenas pela maior organizada do Corinthians. Outras torcidas têm gritos de guerra bem parecidos. Dá pra fazer uma longa playlist macabra só com eles. A chacota aumenta à medida que também aumenta o número de mortes. Já foram mais de 300 vidas perdidas em conflitos de torcida no Brasil desde o final dos anos 80. Mas nem sempre foi assim.
DANIEL: Em 1983, na zona oeste de São Paulo, tinha um grupo de garotos de 14, 15 anos, que gostava de passar brilhantina no cabelo e cantadas nas meninas nas festas juninas. Entre uma ida ao clube e outra, eles liam revistas de quadrinho e assistiam filmes eróticos na televisão. Esses adolescentes também gostavam de vestir camisetas do Palmeiras. Mas eles estavam cansados. Cansados de ter essas camisetas roubadas nos clássicos contra Corinthians, São Paulo e Santos. E de apanhar na saída do estádio. Um dia eles revidaram, e desse revide resultou a fundação da Mancha Verde. Hoje, a maior torcida do Palmeiras. A Mancha é aquela que em algum momento da década de 90 ganhou o título de "a torcida mais violenta do Brasil". Mas...Como isso aconteceu?
ADRIANO: A gente pensou muito nessa pergunta. E hoje, depois de entrevistar dezenas de torcedores, ler páginas de processos, matérias de jornais e revistas amareladas pelo tempo, podemos dar uma resposta. Não é "a" resposta, mas é "uma" resposta. Uma resposta possível. E ela vai ser contada na forma de uma história. Essa é a história real de um grupo de meninos que fundou uma associação no começo dos anos 80. Uma associação que tinha apenas um objetivo: fazer a torcida do Palmeiras ser respeitada novamente.
DANIEL: Mas essa história toma um novo rumo quando um deles é assassinado do lado do estádio do Palmeiras. Esse crime continua cercado de mistérios que assombram as torcidas até hoje.
ADRIANO: Essa é a história da investigação desse assassinato que aconteceu no final dos anos 80. E de como a rivalidade entre esses grupos saiu dos estádios e ganhou as ruas, se transformando em guerra. Mas também é uma história de amizade, paixão, medo e raiva. Uma história de meninos. E ela começa com um porco. Um porco de verdade.
SERGIO CHAPELIN: Era uma vez 86. O ano do Cruzado, da Copa do Mundo, da eleição da Constituinte e de outros fatos que, por coincidência, foram marcados por uma letra, a letra C.
DANIEL: Esse é o jornalista Sergio Chapelin apresentando a retrospectiva de 1986 da TV Globo.
CHAPELIN: C de Chernobil, de Challenger, do Chile e de Cuba, de Chico e Caetano, da nova droga, o crack, e de uma visita esperada há 76 anos, o cometa de Halley.
DANIEL: Enquanto o mundo se assombrava com a ameaça nuclear e olhava pro céu em busca de um cometa, um grupo de garotos de São Paulo tentava encerrar uma década de humilhação e vergonha. Eles eram palmeirenses. E, se já era difícil ser brasileiro em 1986, imagine o que era ser palmeirense. O time não ganhava um título desde 76, e os torcedores não podiam sair na rua sem ser xingados ou apanharem dos maiores rivais.
JOSÉ CARLOS BURTI: O problema é quando pegava ônibus.
DANIEL: Esse é José Carlos Burti. Ele foi presidente da Torcida Uniformizada do Palmeiras, a TUP, nos anos 80.
BURTI: Tinha sempre que levar outra camisa pra cobrir a minha do Palmeiras, porque sempre a torcida do Corinthians era maior e pegava o ônibus com a gente, não tinha como separar. Eles tentaram pegar a camisa e ficaram me batendo a viagem toda. Fui apanhando a viagem toda, eu sentado e eles batendo em mim a viagem toda.
DANIEL: Os palmeirenses dizem que a dor física de apanhar dos adversários só não era maior que a dor moral. E tinha uma palavra que machucava o palmeirense mais que todas. Não importava se a torcida fizesse a maior festa no estádio ou se o Palmeiras ganhasse de virada com um gol aos 45 do segundo tempo. Sempre tinha alguém pra gritar a ofensa. Sempre tinha alguém pra zombar da origem italiana do clube e atacar a dignidade da colônia. Sempre tinha alguém...Pra chamar o palmeirense de porco.
LOCUTOR: Nelson Urt, Revista Placar, 10 de novembro de 1986. "Chamar palmeirense de porco era bem pior do que lhe xingar a mãe. Como o nome do animal também designa indivíduos sujos, grosseiros e obscenos, não havia maior provocação à honra palestrina. Nas derrotas, o humilhante coro de "porco, porco" ecoava pelos estádios a perseguir a galera. Estava re-acesa uma ofensa usada na época do pós-guerra, para designar os italianos fascistas."
LOCUTOR: Bíblia. Levítico, capítulo 11, versículos 4, 7 e 8. "Os seguintes [animais], contudo, não comereis [...] o porco, porque tem a unha fendida, de sorte que se divide em duas, mas não rumina, esse vos será imundo. Da sua carne não comereis, nem tocareis nos seus cadáveres; esses vos serão imundos."
MARCELO GORDÃO: A revolta era essa. A gente ia jogar em Taquaratinga, a torcida de Taquaritinga chamava a gente de porco. Nós ia lá e amassava eles. É, cara... Nós amassava, na mão, pulava no meio, pedaço de pau, enxada?
DANIEL: Esse é o Marcelo Lima, atual presidente da Torcida Uniformizada do Palmeiras. A TUP era a maior a organizada palmeirense até os anos 80, antes de perder o posto pra Mancha Verde. Ao longo da história, as duas torcidas sempre tiveram suas rusgas, mas nessa época elas estavam unidas. E irritadas com a perseguição aos palmeirenses nas ruas. Marcelo é conhecido no meio das organizadas como "Marcelo da TUP" ou "Gordão". Ele tem 54 anos e recebeu a gente no lugar que hoje ele chama de casa: a sede da torcida. É um barracão de frente pra uma praça, perto do centro de treinamento do Palmeiras.
MARCELO: Nossa ideologia é a gente prefere sofrer e manter nossa ideologia do passado do que poder... A TUP não foi só uma torcida foi uma universidade de vida.
ADRIANO: Qual é a ideologia da tup, o que é uma ideologia?
MARCELO: Amar o Palmeiras em primeiro lugar. Representar o Palmeiras e respeitar. Eu aprendi aqui a ser palmeirense. Quero que a TUP se foda, eu sou Palmeiras...
ADRIANO: Ele chama o barracão de casa não no sentido figurado. Marcelo realmente mora em uma das salas da sede da TUP. Ele é um cara expansivo e emotivo, que lembra com saudade das aventuras que viveu no final dos anos 70.
Começa uma trilha mais divertida.
MARCELO: A gente era criança. Ficava ali perto do Palmeiras, tinha pizzaria do Paulino e tinha um lugar na Turiaçu que comia parmegiana. Os caras cortava com a colher, nossa senhora... E ninguém aceitava e, você ia pro jogo e ficava gritando porco, a torcida, e nós ficava bravo, nós queimava camisa, chamava nós de porco você descia correndo.
ADRIANO: Soltaram um porco uma vez?
MARCELO: Soltaram. A torcida do gambá direto soltava porco, direto, os filhos da puta.
DANIEL: A humilhação era palpável na atmosfera dos estádios. Os torcedores já estavam acostumados a resolver as diferenças na mão. Mas dessa vez seria preciso usar o cérebro.
BURTI: No dia a dia, essa provocação de porcos mexia muito com a molecada. Porque se você não quer que um apelido pegue, você não dá bola pra ele.
ADRIANO: José Carlos Burti, o antigo presidente da TUP, é hoje um respeitado empresário do ramo dos transportes. Ele me recebeu pra uma conversa no escritório da empresa dele, na zona leste de São Paulo.
BURTI: Mas você irritava as pessoas com apelido de porco [...] Cansado disso e vendo que a molecada tava partindo pra agressões de ser chamado de porco na rua, na vila, nas suas residências...
ADRIANO: Acontecia mesmo isso de na rua o cara com a camisa do palmeiras ser ofendido de porco e partir pra cima?
BURTI: Acontecia. Os adultos, meu pai por exemplo, não aceitavam de jeito nenhum. Ele ofendia as pessoas que chamavam de porquinho. Isso tava se tornando insustentável. Tava todo mundo sentido com isso.
ADRIANO: Pra acabar com as ofensas, os palmeirenses resolveram se unir aos ofensores. Desde o começo dos anos 80 já tinha gente dizendo pro clube adotar o animal como símbolo de orgulho. Seria um movimento parecido com o da torcida do Flamengo, que, em 1969, sequestrou um urubu de um lixão e soltou no Maracanã para adotar um novo mascote. Mas no caso de um time de colônia, conservador em essência, haveria resistência. Os conselheiros italianos, feridos pela comparação a um animal imundo, jamais aceitariam assumir a ofensa. Além do mais, o Palmeiras já tinha o Periquito como mascote. Numa tarde distante de 1986, os líderes da TUP e da Mancha se reuniram com o presidente Nelson Duque para tratar da adoção suína. Ouviram que o presidente não estava disposto a meter a mão nesse vespeiro. "Me incluam fora dessa", teria dito o presidente.
DANIEL: Mas os torcedores saíram da reunião com a ideia grunhindo na cabeça.
BURTI: Cleo foi pra Mancha, fui pra TUP e fomos conversar com os associados. 'Vamos adotar o porco como símbolo e vamos calar a boca de todo mundo, tudo bem?" Quem participou aceitou na hora.
DANIEL: Eles então bolaram um plano.
ADRIANO: O plano era: descolar um porco do chiqueiro mais próximo, levar o porco dentro do ônibus da torcida, dar um jeito de entrar com o porco no estádio, libertar o porco no gramado e eternizar o porco como o espírito animal do torcedor palmeirense.
DANIEL: Sério?
BURTI: Palmeiras e Botafogo em Ribeirão Preto, tinha um amigo da TUP, o Bolão, que tinha um sítio em Caucaia do Alto e falou 'Vou levar um porquinho', levamos um porquinho dentro do ônibus da TUP e poucos minutos de começar o jogo, soltamos o porquinho dentro do campo. E lá deu certo. E a torcida amou aquilo. Trouxemos o porquinho de volta. Durante a semana fomos no batalhão de choque e pedimos autorização pra levar o porco no estádio, no fim de semana seguinte.
DANIEL: Burti disse que o fim de semana seguinte teria o jogo contra o São Paulo, no Morumbi. Mas 30 anos depois é fácil ser ludibriado pela memória. Fomos checar a lista de jogos de 86 e, realmente, o Palmeiras jogou com o Botafogo em Ribeirão Preto e com o São Paulo no Morumbi. Mas com uma diferença de meses e não dias.
BURTI: A polícia relutou: 'Vocês vão maltratar o animal, vai pegar mal'. 'Não, tranquilo, não vai sair da nossa mão, só vamos apresentar pra arquibancada."
PALMEIRENSES: Vamos Ganhar Porcooo
BURTI: A polícia concordou e nesse dia levamos o porco rajadinho pro Morumbi e fizemos a apresentação oficial do porco como mascote da torcida do Palmeiras. E a partir daí, cabou, nós eramos literalmente os porcos, digamos assim, mas era um animal que impõe respeito a todos.
PALMEIRENSES: Vamos ganhar porcoooo!
LOCUTOR: Luciano Borges. Folha de São Paulo, 3 de novembro de 1986: O porco faz a festa e grunhe aos microfones.
"O porquinho chegou ao Morumbi às 14h30 e entrou em campo juntamente com a equipe do Palmeiras, levado pelos presidentes José Carlos Burti, 23 anos, e Cleo Sóstenes, 21 anos, da Mancha Verde. Foi um sucesso. Abraçado por Sóstenes, o novo símbolo dos palmeirenses levantou a torcida e até grunhiu para algumas emissoras de rádio.
Até o cantor e compositor cearense Raimundo Fágner, 36 anos, que esteve no Morumbi para ver o jogo e conversar com o centroavante Mirandinha, gostou da ideia. "É uma forma de gozar quem está gozando", afirmou. Verdade. A torcida do São Paulo não chamou em nenhum instante os palmeirenses de 'porco'."
LOCUTOR: "Não havia dúvida agora quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco." George Orwell, A Revolução dos Bichos, 17 de agosto de 1945
ADRIANO: Era um porco bebê e tinha nome, Chicão. Foi retirado de seu chiqueiro no interior para fazer história na cidade grande. A vida do Chicão foi estelar, mas sua morte foi banal: virou ceia no Natal de 86, segundo aqueles que o conheceram.
DANIEL: Mas o porquinho não foi o único a mudar a forma como o palmeirense enxergava a si mesmo. A adoção do animal pela torcida fez tanto sucesso na imprensa que a Revista Placar mandou um de seus funcionários rodar a cidade atrás de outro porco vivo. Os anos 80 eram tempos de sobressaltos econômicos. Carnes em geral estavam em falta nos mercados, então pense na dificuldade que o assistente da redação da Placar teve para encontrar um porco em São Paulo. Esse porco anônimo fez frila de modelo em uma das capas mais curiosas da revista. Nela, o atacante Jorginho Puttinati segura no colo o leitãozinho para celebrar o orgulho suíno-palmeirense. A manchete: "O Palmeiras quebra um tabu: dá-lhe porco".
ADRIANO: Conversamos com o Rafael Vieira, secretário de redação da Placar nos anos 80.
DANIEL: A gente queria que você contasse essa historia. O que você se lembra, onde achou um porco em 86?
RAFAEL VIEIRA: Eu te juro por deus, Daniel, não foi facil.
DANIEL: Imagino
RAFAEL: Primeiro estavamos na crise da carne suína. Tava uma dificuldade, desapareceu os porcos. Rodei, não tinha porco. Fui caminhando, caminhando pra dentro da zona sul, indo pros bairros mais afastados. E por sorte eu encontrei uma pessoa que negociava o suíno. Eu tinha que ter esse porco novo, limpo. De posse dele caminhar pro estúdio fotográfico [...] Cheguei lá, já tinha fotógrafo [...] e começaram os preparos, e nesses preparos inclusive fomos agraciados com uma bela duma cagada no estúdio, e merda de porco fede...
ADRIANO: 1986 também não foi um ano bom pra humanidade, ou pelo menos para uma parte dela que veste verde. O Palmeiras perdeu a final do Campeonato Paulista para a Inter de Limeira e ficaria mais sete anos na fila de títulos. Mas aquele foi o ano que começou uma nova tradição de uma torcida tão apegada a suas tradições. O grito de "Dá-lhe porco" é a trilha sonora preferida em todo jogo do Palmeiras, dentro ou fora de casa, na vitória ou na derrota.
PALMEIRENSES: A mancha é guerreira/ Meu time é vencedor/ Sou Palmeiras/ Por isso eu canto/ E dá-lhe Porco.
DANIEL: A coroação do porco como mascote do Palmeiras foi obra principalmente dos torcedores. E marcou as raízes de outra tradição que permaneceria viva pelos anos seguintes em todos os jogos do time em casa. Quando a pandemia do coronavirus impediu a torcida de frequentar os estádios, um torcedor do Palmeiras seguiu acompanhando o time de perto, pelo menos simbolicamente. Em qualquer jogo no Allianz Parque, mesmo aqueles sem público, a Mancha estende na arquibancada bandeiras com a imagem de Cleo Sostenes, um dos fundadores da organizada. Nessas bandeiras, ele aparece segurando um porco, da mesma forma que fez naquela tarde de domingo, em 1986.
ADRIANO: Guarde esse nome: Cleo. Para qualquer torcedor da Mancha, o Cleo está no panteão de heróis palmeirenses, ao lado de Ademir da Guia, Edmundo, Marcos e Fernando Prass. Talvez o Cleo esteja até em um nível acima desses outros. José Carlos Burti foi presidente da TUP na mesma época em que Cleo foi presidente da Mancha.
BURTI: O ato de heroísmo dele era não correr de encrenca nenhuma, não importava o tamanho. Esse adjetivo de Cleo Guerreiro era a pura verdade, não tinha tamanho, não tinha quantidade, não tinha nada, o Cleo encarava qualquer coisa. Quando a gente tava junto, nas caravanas menores, você podia contar que a encrenca que fosse ele não ia correr, por isso que era um guerreiro mesmo. Ele defendia em todos os aspectos a torcida dele, como eu defendia a minha, mas eu não tinha um espírito tão guerreiro como ele tinha. A TUP era uma torcida um pouco mais pacata, mais tranquila. O Cleo não, se mexesse com o Palmeiras ou com a Mancha, era a vida dele.
ADRIANO: Cleo tinha 18 anos quando fundou a Mancha, em 1983. De acordo com a ata de fundação da torcida, outros 14 palmeirenses participaram da primeira reunião. A maioria deles eram adolescentes de classe média ou média-baixa, que se reuniam no clube social do Palmeiras e no apartamento de um deles perto da Av. Paulista. A Mancha Verde é hoje uma das principais torcidas organizadas do país, e afirma ter cerca de 90 mil associados. Costuma frequentar o noticiário quando um de seus membros se envolve em alguma briga, mas como a gente viu na história do porco Chicão, isso nem sempre foi assim.
DANIEL: O próprio Cleo era nome frequente nas páginas dos jornais e revistas dos anos 80, que procuravam ele como uma espécie de porta-voz da torcida palmeirense. Mas quando os jornalistas não estavam vendo, Cleo estava agindo nos bastidores. E o estilo dele inspirava garotos mais novos.
BURTI: "A gente tava ficando mais fraco. Começou a ter destaque na Mancha na parte, não digo violenta, mas na parte de enfrentamento de outras torcidas, tal. E você sabe que a molecada começou naquela época... eles queriam ser os caras, e não é a TUP os caras pra esse tipo de coisa. Era a Mancha. E como a torcida partiu, deixou de ser uma coisa mais calma, para se tornar uma torcida digamos assim, não digo mais violenta, mas assim, que tinha problemas pra enfrentar, tinha que ser uma torcida com gente... e o pessoal gosta disso, a molecada, então ninguém procurava mais a TUP pra ser associado por conta disso
ADRIANO: Esse estilo mais agressivo também contagiou os associados mais jovens da TUP, como o próprio Marcelo Gordão. Em poucos anos, a Mancha deixou de ser uma brincadeira de criança e passou a ser uma das torcidas organizadas mais respeitadas entre todas as torcidas do Brasil. E existem algumas formas de conquistar respeito.
DANIEL: Às vezes você transforma um apelido humilhante em um símbolo de orgulho e desarma seu inimigo sem tocar em um fio de cabelo dele.
ADRIANO: Às vezes, você faz o oposto.
MARCELO: E ganhamos dos gambá. Nós tinha a mente de a torcida do Palmeiras ser a mais violenta? De verdade, a mais violenta! Nós batemos em todo mundo. Arrastamos o mundo dando bica na bunda dos caras. Nós somos a torcida do Palmeiras. Começamos com Santo André, os caras do ABC, todos monstros, dizimou o ABC, virou só Palmeiras. Eu fui de caminhão pra lá pra bater nos gambá, basculante. De lá fomos pra zona norte. Pau nos caras. Pegou a zona sul, bem mais pra frente, Grajaú e uma parte mais difícil. Tinha um pessoal da TUP, veio os caras da Mancha e tomou. Hoje a torcida do Palmeiras tomou todas as quebradas, ela voltou a ser respeitada.
ADRIANO: No começo de 2003 um homem negro chamado Mauro Mateus dos Santos entrou no cemitério mais perto da favela do Canão, na zona sul de São Paulo, pra gravar o clipe de uma canção de seu primeiro CD. Os diretores tiveram a ideia de gravar no cemitério como uma forma de homenagear os amigos de Mauro que tinham morrido por causa do envolvimento com o crime. O próprio Mauro tinha passado anos como funcionário do tráfico. Depois de sair do crime, ele se tornou um dos artistas mais conhecidos da periferia da cidade. Mas as gravações não puderam continuar porque Mauro levou quatro tiros às 5h30 da manhã, quando foi deixar a esposa no trabalho. Seu nome de batismo pode ter sido esquecido, mas o nome que ele estampou na capa do CD não foi. No clipe inacabado, Mauro, ou Sabotage, deixou de legado um dos versos mais conhecidos da história do rap nacional.
SABOTAGE: Respeito é pra quem tem, pra quem tem...
LUIS ROBERTO DE MÚCIO: Eu tô com o Cleo aqui. O Cleo vai participar conosco. Tudo bem Cleo?
CLEO SÓSTENES: Tudo em cima. Como todos sabem, a Mancha conta hoje com 5 500 componentes. Fomos fundados no dia 11/01/1983 no intuito só de uma coisa: reestabelecer o respeito dos torcedores do Palmeiras.
SABOTAGE: Respeito é pra quem tem...
ADRIANO: No próximo episódio de Sobre meninos e porcos:
BURTI: No intervalo do jogo, tavam todas as viaturas lá com a gente e nos levaram pra Itapecuru. Na delegacia estourou a notícia. O comandante geral foi lá parabenizar o soldado dele que pegou a bomba que evitou uma tragédia. Ia morrer muita gente, se a polícia não pega, inclusive a gente.
"Sobre meninos e porcos" é a terceira temporada do podcast UOL Esporte Histórias, que antes tinha o nome de "Futebol Bandido". Se você lembra de alguma história sobre as torcidas organizadas dos anos 80 escreva para sobremeninoseporcos@uol.com.br. Nas redes sociais, publicamos conteúdo extra, como fotos, vídeos e recortes de jornal sobre os personagens dessa temporada.
A produção, pesquisa e apuração dessa temporada são de Adriano Wilkson e Daniel Lisboa.
A coordenação é de Bruno Doro e Juliana Carpanez. Locução de Maria Victória Poli.
Desenho de som e montagem de João Pinheiro.
O design é de Eric Fiori.
E a direção de arte é de Gisele Pungan e René Cardillo.
Esse episódio tem áudios de Globo e TV Gazeta.
A autoria de Whisky a Go Go é Michael Sullivan e Paulo Massadas.
Agradecimentos especiais ao antigo repórter da Placar Nelson Urt e a Rafael Vieira, que além de ter encontrado o porco em 86 trabalha hoje como Papai Noel no shopping Aricanduva, em São Paulo.
UOL Esporte Histórias é uma realização do UOL Esporte e da MOV, a produtora de áudio e vídeo do UOL.
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