A paz são duas linhas de 4

Edinho, filho de Pelé, busca a felicidade que perdeu na prisão

Adriano Wilkson Do UOL, em Londrina (PR) Sergio Ranalli/UOL

A luta de Pelé pela vida foi acompanhada à distância por Edinho, seu filho mais conhecido. Desde que deixou a prisão após ser condenado por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, o ex-goleiro reconstrói a vida em Londrina, no norte do Paraná.

Edinho conversou com o UOL em maio deste ano. Na época, treinava as categorias de base do Londrina e lidava com os questionamentos sobre a saúde de Pelé, que tratava um câncer de cólon.

Sete meses depois, Edinho agora é técnico do time principal do Londrina. Já Pelé teve sua morte confirmada às 15h27 do último dia 29 de dezembro, no hospital Albert Einstein.

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No centro de treinamento do Londrina, um paredão de pinheiros margeia seis campos de futebol de grama bem aparada. Doze patos de penugem alvinegra deslizam em um lago artificial, cuja superfície reflete o céu azul e branco. Oito periquitos multicoloridos cantam em uma gaiola. Três estátuas de bebês elefantes enfeitam o caminho perto do refeitório e da piscina. Uma capela empresta ares sacros ao local, castigado por uma massa de ar polar fora de época que baixou a temperatura para 11 graus. O sol derrete as têmporas de um homem que gesticula no meio de um dos campos.

Se você fechar os olhos, consegue ouvir a voz de Pelé, o maior jogador de futebol de todos os tempos. "A linha acompanha a bola. Se a bola recua, a linha recua junto", diz a voz. Se você abrir os olhos, percebe que ela sai dos lábios de Edson Cholbi Nascimento, o Edinho, que herdou do pai, além do timbre das cordas vocais, a obsessão pela beleza invisível do futebol.

Os quatro jogadores da defesa do Londrina sub-20 seguem a orientação de Edinho. A linha se movimenta com sincronia perfeita, seguindo o vai-e-vem da bola carregada pelos atacantes. Quando a bola cruza um limiar imaginário, a linha já sabe o que fazer: um dos zagueiros avança para recuperá-la, enquanto o outro fica na retaguarda, pronto para entrar em ação caso seu companheiro seja driblado.

A operação funciona, a bola é retomada, a linha de defesa segue intacta, e Edinho respira. "Lindo, pessoal, isso é muito lindo! Vocês estão certinhos! Se continuar assim, amanhã é tudo nosso!", ele prevê. Faz sete meses que Edinho prepara esse time, sete meses perdendo o sono para encontrar a formação ideal, sete meses tentando mostrar a adolescentes como se movimentar em campo e como virar jogador profissional.

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Sete meses dormindo no alojamento do clube, em um quarto com paredes de plástico pré-moldado, a 13 quilômetros do centro de Londrina, a 616 quilômetros de Santos, onde vivem sua noiva e suas duas filhas. Sete meses vivendo com os atletas, comendo a mesma comida, respirando o mesmo ar.

Enfrentar o Arapongas pela segunda rodada do Campeonato Paranaense Sub-20 pode parecer pouco para Edinho, ex-goleiro e vice-campeão brasileiro com o Santos, filho do "Rei do Futebol", apelidado desde a adolescência como "Príncipe". Mas, depois de ficar três anos preso por crimes que ele diz não ter cometido, depois de terminar o curso da CBF e tirar sua licença profissional, Edinho embarcou intensamente no projeto de se consolidar como treinador.

No jogo de estreia, seu time empatou em 0 a 0. Agora ele precisa vencer. E vencer passa por manter duas linhas de quatro bem armadas. Quando os dois times entram em campo no dia seguinte, Edinho se posiciona depois da lateral, os braços cruzados, a mão no queixo. Para ele, a beleza invisível do futebol não está num drible inconcebível, num chapéu ou numa caneta inesperada. A alegria são duas linhas de quatro funcionando com fluidez, cada jogador entendendo sua função e seu posicionamento em campo. Mas isso é suficiente para vencer e encantar? Edinho quer provar que sim. Enquanto o Londrina toca a bola de um lado pro outro em busca de espaço, o técnico gesticula, grita e orienta. Ele tem 90 minutos para provar que suas ideias estão corretas.

Os 90 minutos viram 85, e depois 80, a bola rola, as linhas se movem em sincronia. E nada acontece.

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Um gringo na Vila Belmiro

Edinho esperou 16 anos para conhecer o futebol. Seus pais se separaram quando ele tinha sete e vivia em Nova York. Era uma época em que a cidade era sombria e violenta, dominada pela criminalidade e por gangues que disputavam espaço nas ruas e nas estações de metrô e linhas subterrâneas.

O garoto vivia nos Estados Unidos desde os quatro e acostumou-se a viajar ao Brasil apenas para passar férias. Numa delas, em 1986, o pai achou que ele deveria praticar algum esporte. Em sua primeira visita à Vila Belmiro, levado por um tio, ele se encostou no alambrado e viu o Santos de 86 correr na frente dele como cavalos. "O chão tremia, eu nunca tinha visto nada assim. Aquela força, a virilidade... era exatamente o oposto do que eu achava que era o futebol."

No mesmo dia, foi pedir pra treinar com a equipe juvenil. O treinador perguntou em que posição ele jogava. Edinho achava que não teria habilidade suficiente com os pés. Na escola, ele jogava basquete, futebol americano, beisebol e hóquei. Sabia jogar com as mãos. "Goleiro", ele disse. E recebeu o convite pra voltar na semana seguinte.

Os garotos do time estranharam aquele americano careca que vestia calças e botas da Timberland. Ele gostava de rap e falava português com sotaque. Foi logo apelidado de "Gringo". Duas semanas depois, jornalistas foram surpreendê-lo em um treino. Do campo, o burburinho chegou ao vestiário, e seus companheiros ficaram boquiabertos ao se darem conta de sua real identidade. "Em Nova York eu era só mais um no meio da multidão, ninguém tava nem aí", relembra Edinho 36 anos depois. "Foi ali que eu virei 'o filho do Pelé'."

O "Gringo" virou o "Príncipe". "Eu odiava esse apelido. E quando você odeia um apelido, o que acontece é que ele pega."

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Um príncipe no bandejão

Aos 51 anos, o filho de Pelé tem rotina e hábitos de plebeu. Vive no dormitório do Londrina, com capacidade para cerca de cem pessoas, entre atletas e comissão técnica. Toma café, almoça e janta no bandejão, ao lado dos demais jogadores e funcionários. Não tem carro. Seus colegas já o convidaram para conhecer a cidade, mas ele tem evitado deixar seu local de trabalho. "Quando saio é só pra ir ao mercado", conta. Para matar o tempo, assiste a séries (está na primeira temporada da ficção científica Westworld) e documentários sobre física e astronomia.

Quando não está treinando o time nem refletindo sobre estrelas e planetas, se tranca em seu quarto. Perde o sono bolando treinos que induzam os adolescentes a incorporarem conceitos complexos. Os que trabalham com ele o descrevem como um "estudioso do futebol".

"Na nossa primeira conversa, ele disse que teria condições de morar em qualquer lugar no centro de Londrina", conta o zagueiro Leonardo de Assunpção, de 20 anos e 2 metros de altura, um dos líderes da equipe, "mas escolheu ficar aqui com a gente pra mostrar que está muito comprometido com o nosso time e pra cobrar o mesmo comprometimento."

"Ele está muito focado", afirma o ex-goleiro do São Paulo Alencar, hoje coordenador da base do Londrina. "Sabe que essa é uma chance de assumir depois um time de ponta." "Tem nível pra pegar um time de série A", opina o preparador físico Alexandre Lemos, que trabalha com Edinho desde que o técnico chegou ao Paraná, emprestado pelo Santos, onde treinou a equipe sub-23. Entre 2015 e 2017, Edinho comandou os profissionais do Mogi Mirim, do Água Santa e do Tricordiano, que costumam frequentar as divisões inferiores de seus estados. Por que será que nunca teve chance em um time grande? "Não sei o que acontece. Talvez o fato de ser filho do Pelé atrapalhe", cogita o preparador.

Um filho atrás das grades

O branco e o cinza dominam a vista na penitenciária de Tremembé, em Taubaté, no interior de São Paulo. O verde está apenas na pintura das grades e portas de metal que separam os presos do mundo exterior. É nessas paredes que Edinho pensa enquanto caminha entre as árvores e os gramados do centro de treinamento do Londrina, em um fim de tarde recente. Os passarinhos cantam sob o vento frio do outono paranaense.

"É claro que eu me sinto injustiçado", diz o treinador. "Não existe nenhuma prova contra mim, não existe no processo ninguém dizendo que eu sou criminoso." Em 2005, a polícia o prendeu no meio de uma operação de combate ao tráfico de drogas na Baixada Santista. Um grampo no telefone de Ronaldo Duarte, o "Naldinho", suspeito de comandar o tráfico na região e filho de um ex-jogador do Santos, mostraram conversas suspeitas entre ele e Edinho, que eram amigos.

Em primeira instância, o ex-goleiro pegou 33 anos pelos crimes de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Na segunda instância, teve a pena diminuída para 12 anos e nove meses e começou a cumpri-la em 2017. "Quando eu conto pras minhas filhas o que aconteceu, eu digo: 'Papai é inocente', mas eu não tiro a minha responsabilidade de ter me colocado em uma situação que permitiu que eu fosse condenado. Admito meus erros, mas meus erros não foram crimes. Alguém que faz lavagem de dinheiro vive do jeito que eu vivo? Cadê o dinheiro? Reviraram minhas contas e não acharam nada."

Dois dias depois da prisão, a polícia organizou uma entrevista coletiva com a participação de Pelé. O ex-jogador leu uma carta na qual o filho se dizia dependente químico e chorou diante da imprensa. "Aquilo acabou comigo", lembra Edinho. "O que me destruiu foi saber o sofrimento que eu estava causando na minha família. O que as minhas filhas passaram, o sofrimento que elas tiveram que suportar por causa de mim, isso foi a pior coisa.

Após três anos preso, progrediu ao regime aberto. Ele afirma que prosperar na carreira de técnico é uma forma de levar adiante o legado da família. Quando alguém perguntava sobre a saúde de Pelé, que lutava contra um câncer no cólon, Edinho afirmava que a situação era difícil, mas que o pai estava lutando.

Foi assim até os últimos dias da vida do Rei de Futebol. Uma semana antes da morte de Pelé, Edinho disse em entrevista coletiva que gostaria de estar próximo ao pai. Ele passou o Natal no hospital em São Paulo, junto com os irmãos, e foi liberado dos treinos do Londrina no dia em que a morte foi confirmada.

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Acho também que por ser 'o filho do Pelé', eu sofri perseguição. Eles pensavam: 'Como eu vou deixar solto esse cara? Vão dizer que eu tô soltando só porque ele é filho do Pelé'. Porra, eu nunca gozei com o pau do meu pai. Tudo que eu tive na vida foi batalhando, fazendo o meu. Nessa hora usaram o parentesco contra mim. Acho que acabei preso porque as pessoas não queriam soltar o 'filho do Pelé'.

Edinho, técnico do Londrina sub-20

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Um treinador à beira do campo

No estádio municipal de Cambé, os jogadores descem a escada e enchem um túnel estreito, incapaz de receber dois atletas lado a lado. O túnel é longo e escuro, mas no final dele existe luz. Eles chegam ao vestiário e veem o teto e as paredes atacados por infiltrações. Pó de argamassa cai sobre eles, mesmo com a porta e as janelas fechadas. Eles se esparramam pelos bancos, concentrados. Alguns fecham os olhos, outros rezam. Faltam cinco minutos pra entrarem em campo.

Alguém dá o sinal, e a roda se forma. Lado a lado, abraçados pelos ombros, eles escutam a voz do homem que diz ter o caminho pra vitória. E depois de um empate sem gols no jogo anterior, eles precisam da vitória. "Tem que ser frio e calculista", diz a voz. "Se o gol não acontecer, paciência e disciplina. Até o último minuto tem que rodar a bola. Na hora certa ela vai entrar." Eles parecem confiar nessa voz.

"Nós ficamos com o gol entalado na garganta no último jogo, mas não adianta se afobar agora", diz o zagueiro Léo. "Vamos acreditar no processo que o gol vai sair!" Eles gritam o nome do time, rezam com força um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, se abraçam pela última vez e atravessam novamente o túnel, de volta ao gramado.

Eles se posicionam em campo, as duas linhas de quatro estáticas, esperando o apito inicial. O treinador na lateral, os braços cruzados, as mãos no queixo, o olhar fixo nas linhas invisíveis que ele idealizou. O céu sem nuvens. Uma tarde de sol no interior do Paraná. Um técnico à beira do campo vendo seu time jogar. O que mais ele poderia querer?

Faltam 47 dias para o fim da fase classificatória do campeonato. Faltam 2.226 dias para o fim da pena de Edinho. Em todos esses dias e nos próximos 90 minutos, o técnico vai repetir as mesmas instruções, as mesmas palavras solitárias que resumem o que ele pensa sobre o esporte, que indicam o que ele imagina ser o caminho para a vitória: "Recupera", ele dirá. "Constrói! Trabalha!"

O time já saberá que pra vencer é preciso rodar a bola com calma entre as duas linhas de quatro até que apareça uma trilha inevitável para o gol. Pra vencer é preciso esperar. O futebol, como a vida, é um jogo de paciência.

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Nota da edição: O Londrina venceu o Arapongas por 4 a 0. Em 23 de novembro, ele foi anunciado como técnico do time principal do Londrina.

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