Ricardo preferia onda perfeita a ser astro do circuito mundial de surfe
Os médicos avisaram que as chances de sobrevivência de Ricardo dos Santos eram pequenas. Alerta inútil, quem tem um filho na UTI varado por três tiros acredita em milagre. Uma chance estatística é mais que suficiente para ter em que se agarrar. Mas no começo da tarde de terça-feira a esperança sofreu um golpe fatal. As enfermeiras chamaram parentes que aguardavam na frente da emergência. Coisa de dez minutos depois a mãe voltou desesperada.
“É mentira, é mentira. Eu quero meu filho de volta. Traz ele de volta, traz por favor”, gritava aos prantos.
Com o coração dilacerado, Luciane Dalcema dos Santos desabou no chão do hospital. Não conseguia digerir que Ricardo foi baleado na porta da casa do avô por um policial militar que possivelmente cheirava cocaína numa segunda-feira, às 8h. Os tiros pelas costas deixam a cena mais infame. Mauro da Silva era tio de Ricardinho e estava no local.
“Ele tava tão doido que atirou no próprio retrovisor do carro”.
O boletim médico indica que às 13h10 de terça acabou a vida do surfista profissional que, mais do que o pódio do circuito mundial, buscava a onda perfeita. Uma variação do espírito moleque do jogador que considerava o drible mais bonito que o gol. Assessor da Liga Mundial de Surfe para América do Sul, João Carvalho lembra um episódio que resume o pensamento de Ricardinho. Ele disputava a etapa do circuito mundial de surfe no Rio de Janeiro e a previsão era de mar sem ondas por alguns dias.
Se estava ruim no Brasil, no Taiti entrava um swell, condição climática que resulta em ondas perfeitas. O surfista embarcou para Los Angeles, engatou uma conexão e desembarcou para aproveitar um dia de diversão. No final da tarde refez o caminho para o Rio de Janeiro, passando mais tempo no avião que no mar. Chegou três dias depois radiante e espalhando que pegou o tubo de sua vida. Uma das fotos rendeu capa de revista. Claro que ele não teve sorte nas ondas nacionais porque mesmo com o mar muito ruim a competição tinha de acontecer.
Fred Leite, presidente da Federação Catarinense de Surfe, conta que foi esta obrigação em surfar nestas condições que desiludiu Ricardo. Ele conhecia Ricardinho desde que o então menino tinha sete anos e começou a pegar ondas na Guarda do Embaú, praia de Palhoça, cidade vizinha a Florianópolis. O local tem um rio que separa uma vila de pescadores do mar e com frequência figura nas listas de praias mais bonitas do país.
Lugar paradisíaco e de boas ondas, onde uma criança e uma prancha é uma combinação tão natural quanto uma criança e uma bola. Com o sucesso, Ricardo virou um herói local. Quando começava a contar histórias reunia gente ao redor para ouvir. Também apoiava quem se destacava no surfe emprestando equipamentos. Numa viagem ao México ano passado, conheceu um jovem de São Vicente (SP) chamado Marcos Corrêa.
No final da viagem avisou que em 2015 o rapaz de 18 anos realizaria o sonho de conhece o Havaí. Na semana seguinte uma passagem em nome do garoto que compete sem patrocínio foi emitida. Coisa de quem não vinha de família abastada.
Neto pescador, desde a adolescência Ricardo precisou correr atrás de patrocínio para continuar na profissão. Foi ajudado pelo talento e logo firmou parceria com a Billabong, gigante do esporte. Enquanto competiu no circuito mundia chegou a bater a lenda Kelly Slater em Teahupoo, Taiti. Foi o único homem a vencer duas triagens seguidas, espécie de classificatório para a etapa do mundial. O talento irritou um surfista que certa vez agrediu o brasileiro no meio de uma bateria com um soco.
Amante das ondas perfeitas, aos poucos deixou o circuito mundial em busca de ondas perfeitas. Tinha carreira promissora e João Carvalho divaga pensando no futuro que Ricardo poderia ter desenhado. “O que ele seria daqui uns anos? Um dos maiores surfistas de ondas gigantes do mundo... Agora ficou tudo pelo caminho”.
Volney Carlos Esser tem outra certeza sobre o futuro do surfista. Afirma com todas as letras que Ricardinho seria seu genro. Ele é pai de Karoline Esser, namorada de Ricardo havia seis anos. Conta que como todo casal, a dupla fazia planos de casamento e filhos. Ressalta o espírito batalhador e a liderança que Ricardo tinha na Guarda do Embaú.
Diferente do imaginário, o surfista não nadava em dinheiro. Dirigia uma Gol Flex 1.6 preto, mudaria para Praia do Rio Tavares, em Florianópolis, para ficar mais perto do técnico. Nem assim esquecia do local onde nasceu. Em seu blog, escrevia que o lugar estava deixando de ser uma vila pacata de pescadores. O sossego era substituído pela construção desenfreada de pousadas e grupos que atravessavam carros nas ruas estreitas e colocavam o som alto enquanto usavam drogas.
Ricardo cobrava providência das autoridades. Pedia que a prefeitura exercesse sua função e ordenasse a ocupação de terrenos e abertura de estabelecimentos comerciais. Da segurança pública, desejava ação eficaz da polícia. Numa grande ironia, foi morto por uma pistola .40 da Polícia Militar empunhada por um soldado que cheirava cocaína na beira da praia. A situação que o surfista tanto combateu resultou em sua morte.
Se resolver os problemas de uma comunidade estava acima de seu alcance, nem a última vontade Ricardinho pode exercer. Ele desejava ser cremado e ter as cinzas atiradas no mar da Guarda do Embaú e do Havaí. Como foi assassinado, isto não é permitido porque a Justiça pode pedir uma exumação no futuro. Até isso tiraram dele.
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