Blusa com estampa de seios: por que o look de Boca Rosa ainda choca?

Madonna, Boca Rosa, Melanie Klein... Nomes femininos que parecem não interagir, mas que confluem quando o assunto é o seio da mulher. Sim, seios e mamilos femininos seguem causando polêmica. A da vez foi a blusa escolhida por Bianca para comemorar o aniversário de Preta Gil: uma peça que simulava um dorso feminino nu assinada por Jean Paul Gaultier em parceria com Lotta Volkova.

Com um design baseado na ilusão de ótica e resultado bem realista, a blusa criada pelo designer francês e usada pela empresária causou uma onda de comentários um tanto quanto incomodados com a imagem. "Desnecessária", "ocasião errada" e "ridícula" foram alguns.

Boca Rosa
Boca Rosa Imagem: Victor Chapetta/Agnews

Mas, fazer do corpo feminino a base de suas criações (e, costumeiramente, gerar reações mais inflamadas) é parte da história da moda criada por Jean Paul Gaultier. Basta lembrar do icônico bustiê usado por Madonna na turnê Blond Ambition, em 1990, com os seios em formato de cone.

Aliás, falando em mamilos, Madonna e Gaultier, também foi vestida por ele que a rainha do pop ostentou os seios desnudos em um evento de solidariedade de Moda para a AmfAR (Fundação Americana para a Investigação da luta contra o HIV), organizado pelo estilista em 1992.

Desde tempos históricos, a moda de Gaultier tem se destacado por sua ousada proposta de subversão, desafiando nossas percepções e redefinindo nossa visão da moda e do corpo", explica a professora, pesquisadora, designer e consultora de imagem e estilo Renata Santiago.

Madonna com o estilista Jean Paul Gaultier, em 1992, em desfile beneficente para arrecadar fundos de pesquisas
Madonna com o estilista Jean Paul Gaultier, em 1992, em desfile beneficente para arrecadar fundos de pesquisas Imagem: Vinnie Zuffante/Getty Images

Não se espanta, portanto, que a tal blusa escolhida por Boca Rosa tenha sido uma criação do "Enfant Terrible" - apelido de Gaultier no mundo fashionista.

"A Preta sempre me inspirou a amar e se orgulhar do próprio corpo. Além disso, quis brincar de ser homem por um dia e poder sair sem camisa, mesmo que seja de mentirinha", disse a empresária em seus stories diante da polêmica.

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Jean Paul Gaultier | Primavera/Verão 96
Jean Paul Gaultier | Primavera/Verão 96 Imagem: Reprodução/Pinterest
Jean Paul Gaultier | Primavera/Verão 96
Jean Paul Gaultier | Primavera/Verão 96 Imagem: Reprodução

Essa brincadeira com a dicotomia entre o masculino e feminino, evidenciada por Bianca, faz mesmo parte do histórico fashion de Jean Paul. Originário dos subúrbios parisienses e ex-estagiário de Pierre Cardin, o francês consolidou uma postura irreverente e de constante desafio aos códigos tradicionais de gênero e moralidade.

"Gaultier brinca com os códigos do masculino e feminino, desafiando normas puritanas e explorando ousadamente as complexidades do corpo humano", afirma a especialista. Esses códigos, aliás, também foram explorados por Jean Paul quando, em sua primeira coleção masculina, já incluiu homens de saia e com roupas cobrindo apenas o mamilo, deixando todo o resto do corpo de fora.

A entrevistada explica que a peça em destaque, que evoca ilusões de ótica e revoluciona a leitura do tronco, foi introduzida nos anos 1990 por Gaultier.

Esse efeito de simulação corporal, uma marca registrada de seu trabalho, está retornando vigorosamente desde 2020, em meio a um ressurgimento das criações e influências do estilista", acrescenta.

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Esse estilo de estampa que vem retornando é um legado do estilista que vem influenciando em outras marcas, como a Loewe, e até nas fast fashion como She In.

Arte contemporânea

A influência de Gaultier transcende suas próprias criações, permeando o cenário da moda contemporânea e conversando com a arte. A especialista relembra que a tendência da ilusão de ótica, denominada trompe-l'oeil, origina-se do trabalho pioneiro de Gaultier, mas suas influências também podem ser rastreadas na Pop Art e na Op Art.

E foi inspirada por esse encontro de moda e arte que a influenciadora cearense Paulinha Sampaio optou por utilizar a já famosa blusa com ilusão de ótica assinada por Jean Paul. Atraída pela estética realista da peça, a fashionista optou, porém, em utilizá-la fora do Brasil. No caso, em Londres, para uma visita a uma galeria modernista.

A reação, segundo Paulinha, foi bem distinta entre o "real" e o "virtual".

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No passeio, algumas pessoas pararam para elogiar, mas não foi algo que chamou tanta atenção. Completamente diferente do digital, que gerou milhares de comentários e compartilhamentos. Muitos acharam avant garde, divertido, inusitado, mas tiveram muitos comentários negativos e alguns mais pesados", relembra.

Paulinha Sampaio
Paulinha Sampaio Imagem: Reprodução/Instagram

O retorno dessas referências na moda contemporânea ocorre em um contexto em que as discussões sobre feminilidade, liberdade corporal e identidade de gênero ganham destaque. E, portanto, geram debates - às vezes mais acalorados em comentários de redes sociais.

Moda e psicanálise

E é justamente esse corpo feminino (em que todos parecem se sentir confortáveis em opinar) parte da influência política e social das criações de Gaultier. Renata, também formada em psicanálise pela SPFOR E FCLF, destaca o corpo da mulher como um espaço de manifestação política e artística.

Um corpo nu denuncia muito menos do que um corpo vestido. Um corpo nu não fala muita coisa, mas um corpo vestido de um corpo nu causa um estranhamento. E o Jean Paul Gaultier vem de uma ideia de moda que acredito hoje em dia estar muito carente que é a moda como uma reflexão", observa Renata.

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Loewe e seu trompe-l'oeil
Loewe e seu trompe-l'oeil Imagem: Estrop/Getty Images

Nesse conceito mais reflexivo, a pesquisadora evidencia conceitos psicanalíticos defendidos por Melanie Klein ao trabalhar com a dicotomia do seio bom e do seio mau. Santiago defende que a moda possui uma função psicológica nas pessoas.

"O contexto histórico-político é crucial para essa reflexão. Estamos debatendo muito sobre o feminino, a sobrecarga da mulher, os desafios do corpo, a questão dos mamilos, a nossa liberdade... justamente por conta desses massacres corporais que a gente vive com os padrões".

Seja na rede social, numa festinha de amigos ou em uma exposição londrina, uma "blusinha" de Gaultier nunca será apenas uma "blusinha". Ainda mais quando evidencia características ainda tão envoltas por regras, padrões, imaginários e controles como o corpo feminino, especialmente os seios. Por isso, a moda pode (e deve) olhar para essas questões, como faz Jean Paul, em vez de ignorá-las.

"Esse corpo feminino vem escancarar essas questões retrógradas e de controle desse corpo, que é tão potente e que choca. E o Jean Paul Gaultier vem como essa figura que ilumina a importância disso", conclui a especialista, enfatizando o legado de Jean Paul Gaultier persistindo como uma força motriz na moda contemporânea.

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