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Contra racismo e genocídio indígena: um novo (e ovacionado) Scorsese aos 80
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Aos 80 anos, Martin Scorsese não só conquistou até o momento a ovação mais longa desta edição do Festival de Cannes, com quase dez minutos de palmas para "Killers of the Flower Moon", na noite de sábado (20), como também impressionou com sua capacidade de não se acomodar e se arriscar.
"Se eu não correr risco nesta idade, vou fazer o quê? O que querem que eu faça? Ficar em casa, confortável? Ou ir para o set e ficar confortável comendo?", disse o cineasta, em tom de brincadeira, durante entrevista de imprensa na tarde deste domingo (21) em Cannes.
Estiveram presentes também Leonardo DiCaprio, Robert De Niro e Lily Gladstone, atriz de origem indígena que já vem sendo apontada como forte concorrente a uma vaga no Oscar 2024 pelo papel da jovem e rica indígena do povo Osage, que se apaixona pelo personagem de DiCaprio (Ernest Burkhart).
Por risco, entenda-se tanto o tamanho da produção, que custou US$ 200 milhões, como pela temática e pela abordagem da trama, ao filmar em Oklahoma (e não sua quase onipresente Nova York). O cineasta traz uma história real, que fala do racismo e genocídio indígena e não cai na armadilha do clichê chamado white savior, ou seja, o "herói branco", que salva um povo oprimido e incapaz de lutar por si mesmo.
No novo filme, exibido fora de competição, Scorsese tenta fazer diferente. Ele foi elogiado pela imprensa por sua capacidade de ainda correr riscos e aprender e reaprender continuamente. Ao responder com sua inquietude costumeira, deu não só indícios de que não vai parar tão cedo de filmar e que está atento aos movimentos contemporâneos.
O cineasta não caiu no apelo fácil, e clichê, de narrar a história do ponto de vista do agente do FBI encarregado de investigar uma série de mortes (e/ou assassinatos) suspeitas do povo Osage e de sua cidade, em Oklahoma, riquíssima depois que petróleo foi encontrado em suas terras. Ao contrário, é do ponto de vista do que o homem branco não fez e do que o povo indígena conseguiu fazer, apesar do racismo sistêmico que formou não só os Estados Unidos, mas todos os países contemporâneos que um dia foram colônias, que Scorsese partiu para realizar seu novo filme.
O longa é uma adaptação do livro "Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI" ("Assassinos da Rua das Flores: Petróleo, Morte e a Origem do FBI") em que o autor David Grann trata do caso real de uma série de assassinatos ocorridos na região de Osage Nation, em Oklahoma nos anos 1920.
Qual a história do filme?
"Killers of the Flower Moon", o filme, parte da história de um atrapalhado e matuto Ernest Burkhart (Di Caprio), que, ao voltar do front da Primeira Guerra Mundial, vai viver com seu tio Wiiliam Hale (De Niro), um poderoso fazendeiro da região de Osage.
"A gente tentou ter a história expressa do ponto de vista da investigação, mas não é sobre quem fez. É sobre quem não fez. Em um certo ponto o Leo (DiCaprio) veio para mim e perguntou onde estava o coração desta história. Eu jantei algumas vezes com os líderes dos Osage. Aprendi com o povo, as histórias, ouvi sobre como se sentiram. Era isso que tinha que ser o coração", explicou Scorsese.
"Tendo crescido assistindo aos dois [Scorsese e De Niro], de uma perspectiva cinematográfica, é incrível ver como eles não apenas influenciam tudo o que eu faço como ator, mas alcançaram níveis incrivelmente altos de arte nessa parceria, e isso me mudou", afirmou DiCaprio. "Seu respeito pela história do cinema, o que veio antes dele, a influência de grandes diretores do passado, que fizeram dele quem ele é, não tem paralelos. Ele se definiu como o diretor singular de nossa era."
Na trama que se vê na tela, vemos logo de início o povo Osage, que enriqueceu por conta dos tantos poços de petróleo descobertos em suas terras, tornar-se alvo da cobiça e da inveja dos brancos da região. Ao confiar nos brancos, são traídos e, aos poucos, começam a morrer de formas tão suspeitas quanto algumas vezes óbvias. É neste contato que Ernest Burkhart (DiCaprio) chega do front da Primeira Guerra Mundial para viver com o tio todo-poderoso fazendeiro local Willam Hale (DeNiro).
Ernest vai trabalhar como taxista e acaba conhecendo a jovem indígena Mollie Kyle (Lily Gladstone, de "Certas Mulheres", de Kelly Reichardt), detentora de uma fortuna que divide com a mãe e suas três irmãs. Ele não é letrado e nem muito inteligente e se torna presa fácil para as manipulações de seu tio, que sorrateiramente quer eliminar o povo Osage para ficar com sua riqueza.
Sobre a relação tanto da história no passado com o presente quanto com personagens gananciosos contemporâneos, De Niro foi certeiro: "A gente sabe de quem estamos falando. Porque Ernest é estúpido, é burro. Imagina se ele fosse inteligente. Até mesmo o Hale, meu personagem, era inteligente em muitos aspectos. Isso é sistêmico. E esta é a parte assustadora nisso. É sobre racismo sistêmico, sobre se sentir superior", comentou o ator, que não voltava a Cannes com Scorsese desde 1975, quando "Taxi Driver" levou a Palma de Ouro.
"Estou lendo um livro que fala de como os nazistas queriam fugir para a América do Sul e esconder o que fizeram. É fascinante, mas a coisa toda está aí. A gente tem que estar atento", continuou. Scorsese completou que se trata de "se sentir superior. Hale diz "eu os amo, mas sou superior a eles. Então, eles, os indígenas, vão morrer". "E achou que ele era amado pelo povo. E o povo acho que realmente o amava. Eu até agora não entendo porque ele teve de fazer o que fez."
Sobre o personagem e a traição (para Scorsese, bem à sua maneira e seu cinema), "Killers of the Flow Moon" é sobre traição. "A traição de Ernest a Molly. A traição ao povo indínenga". Lily Gladstone concordou e observou: "Ele agia como se fosse amigo, como se não fosse culpado pelas mortes ou fosse condenado por isso", declarou a atriz. "Quer dizer, olha o (Donald) Trump. Odeio dizer, mas a gente vê o que acontece. Tem gente que pensa que ele pode fazer um bom trabalho. Imagina isso. Como isso é maluco!", completou DeNiro, arrancando tanto aplausos quanto risadas.
Para Lily, mergulhar em sua personagem e confiar na equipe do filme foi importante para não só contar a história de seu povo, mas também para sua trajetória.
Molly foi traída, não é só uma história sobre como ela é retratada no livro, mas também sobre o legado que ela deixou para a comunidade, que fez com humor e muita força. Esta foi uma das razões que me moveram para fazer este filme. A perseverança cultural", observou a atriz.
"Molly é um exemplo. Não é sobre processo de ator. Quando eu falo dela, é mais sobre receber a energia da comunidade. Minha família me contou sobre a minha avó. Não acho que é muito de eu descobrindo algo. É sobre descobrir a mim mesma."
O líder Osage Chief Standin Bear, concordou e comentou o quão difícil, mas recompensador, foi confiar na equipe de Scorsese. "No começo desde o começo, eu pedi para Scorsese sobre como ele ia tratar a história. Eu vou contar uma história sobre confiança entre Molly e Ernest e sobre a traição desta confiança. Meu povo sofre muito com isso até hoje. Mas posso dizer em nome dos Osage, Martin e sua equipe ganharam nossa confiança e a gente sabe que esta confiança não vai ser traída", pontou Chief Standing Bear.
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