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OPINIÃO

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Quem você escolheria para escrever a história de Jair Bolsonaro?

Quem você escolheria para escrever a história de Jair Bolsonaro? - VAN CAMPOS/O FOTOGRÁFICO/ESTADÃO CONTEÚDO
Quem você escolheria para escrever a história de Jair Bolsonaro? Imagem: VAN CAMPOS/O FOTOGRÁFICO/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

08/12/2021 04h00

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Domingo tem eleições no Chile. Mantendo a tradição, Mario Vargas Llosa já levantou bandeira e disse confiar num candidato de extrema direita. Para o peruano que levou o Nobel de Literatura de 2010, o político conhecido como Bolsonaro chileno seria a salvação não apenas para o país de Gabriela Mistral, mas para toda a região. Na ótica de Llosa, qualquer troglodita que repita o que poderosos gostam de ouvir é melhor do que alguma alternativa à esquerda.

É difícil de compreender o abismo que há entre as visões políticas do escritor e a sua literatura. Em "A Festa do Bode", título que pode figurar em qualquer lista de melhores romances deste século, o autor nos coloca como testemunhas de intrigas palacianas e das práticas podres do general Rafael Trujilo Molina, antigo ditador da República Dominicana. Já no competente "Tempos Ásperos" o foco está na conspiração apoiada pela CIA que resultou no golpe militar comandado por Carlos Castillo Armas na Guatemala, num movimento que depois se repetiria em diversos outros países da América Latina.

Nas duas situações, Llosa vai a fundo na maneira como diferentes espectros da direita junto com o exército de cada país cederam tudo o que puderam a interesses estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos. Ajudaram a fazer com que esses lugares virassem ou se mantivessem como parques de diversões de poucos endinheirados. Não pelas análises capengas que desfila a cada eleição, mas por esse olhar aguçado para reconstituir o poder por meio da ficção que Llosa está aqui.

Às vezes me pego pensando em quais autores eu gostaria que escrevessem uma biografia ou um livro sobre Jair Bolsonaro no poder. Já temos uma coisa ou outra nesse sentido, mas há campo para muito mais. É verdade que, diferente do que aconteceu com pares bolsonaristas pelo continente, Llosa nunca foi grande entusiasta do atual presidente brasileiro. Em 2018, numa entrevista à revista Veja, apostou numa variação da falácia dos dois extremos e disse que optar entre Bolsonaro e PT ou Lula seria o mesmo que "escolher entre a aids e o câncer terminal".

Num texto sustentado por informações e contextualizações históricas com espaço para certas fabulações, Llosa teria o decisivo apoio da ficção para conseguir retratar Jair Bolsonaro em sua exata dimensão: um político minúsculo que virou presidente de um dos maiores países do mundo. Adoraria ver a forma como Llosa construiria os diálogos de Bolsonaro com seus interlocutores nos bastidores do poder e os instantes que precedem decisões como a ideia de ficar parado numa estrada acenando para os passantes. A agenda quase sempre esvaziada de compromissos do mandatário eleito faria consonância com o vácuo de ideias nos instantes introspectivos da narrativa, quando seríamos levados para dentro da consciência de Jair. Um desafio enorme para o escritor, reconheço.

Outros grandes nomes também nos entregariam livros primorosos sobre o atual presidente brasileiro. Ainda aproveitando o líder que dá tchauzinho nas estradas, Paulo Cesar Araújo poderia seguir um modelo formal parecido com o que acaba de apresentar em sua nova biografia de Roberto Carlos para erguer um relato da vida de Bolsonaro orbitando no entorno das muitas cenas patéticas já protagonizadas pelo personagem. A tara por tentar fazer flexões em público ganharia lugar de destaque nessa não ficção.

Daniela Arbex, nome sugerido por um leitor, poderia seguir na praia que domina como poucas: a do livro-reportagem. Tal qual fez no revoltante "Holocausto Brasileiro" e no agoniante "Todo Dia a Mesma Noite", partiria da tragédia para escrever sobre algo maior, revelar ou escancarar facetas do Brasil. Um bom ponto central para Daniela poderia ser os hospitais que se transformaram em centros de experimentos clandestinos durante a pandemia de Covid-19. Desde os capítulos mais bárbaros da nossa tragédia coletiva recheada de crimes inacreditáveis que a jornalista retrataria quem, apesar de tudo, segue no poder.

Já Eliane Brum investigaria Bolsonaro de soslaio. A partir do interior do Pará, lugar onde vive há anos e de onde escreveu o importante "Brasil, Construtor de Ruínas", entregaria a história do presidente em contraste com a crescente aniquilação ambiental. Talvez a obra se chamasse algo como "O Presidente que Passa a Boiada". Ou poderia investigar Jair por meio de algum coadjuvante silencioso que vive bastante próximo ao homem da faixa. Fabiano Guimarães da Rocha, intérprete responsável por levar incontáveis atrocidades para as Libras, seria um nome interessante.

E também penso em Mário Magalhães, claro. Daí a ação ditaria o ritmo da biografia de Jair. O episódio da facada em 2018 talvez fosse o ponto inaugural para explicar a guinada decisiva do admirador de torturadores ao poder. Tenho certeza de que autor de "Marighella" ainda reconstituiria com maestria passagens como os planos de Bolsonaro para explodir bombas em unidades militares ou o episódio do assalto em que teve a própria arma levada pelos bandidos. Nesse livro, ficaria claro como tem muita gente corresponsável por tudo o que Bolsonaro tem feito. Aliás, já há bastante disso no importante "Sobre Lutas e Lágrimas", biografia do ano de 2018 escrita por Mário.

São sugestões. Às vezes é bom pensarmos em livros que gostaríamos de encontrar nas livrarias por aí.

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