Contra a prepotência, pelo conhecimento: as memórias de Drauzio Varella

"Apartada dos valores humanísticos, a adoção dos conhecimentos técnicos mais avançados se torna capenga, eventualmente deletéria", escreve Drauzio Varella em certa altura de "O Exercício da Incerteza". A ênfase em como colegas médicos devem abandonar uma postura fria para se aproximar de seus pacientes, ouvi-los, tocá-los, ir além de tecnicidades é uma das camadas mais latentes da obra. Nesse movimento, são alguns os acenos para a literatura, com destaque para o papel que Tolstói ocupa no imaginário do autor.

Não que as pressões que rolam tanto no sistema público quanto no privado, este cada vez mais problemático, sejam ignoradas por Drauzio. Mas não é este o ponto iluminado por aqui. Ao analisar uma formação médica inclinada à arrogância, ele enfatiza: "Irmã gêmea da vaidade, a prepotência é filha da insegurança e do despreparo".

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Recém-lançado pela Companhia das Letras, "O Exercício da Incerteza" é o livro de memórias de Drauzio. As lembranças ajudam a compor uma história de quase 80 anos, sendo 60 deles dedicados à medicina, grande assunto do volume. É boa a mescla de importantes momentos pessoais com pontos fundamentais da evolução médica e o passado recente - cheio de mudanças e algumas revoluções - da profissão.

É na infância que Drauzio encontra suas primeiras lembranças de cuidados a outras pessoas. Já aos 4 anos tinha a incumbência de auxiliar nos tratos da mãe, que logo partiria, fazendo com que o pai assumisse um papel fundamental na sua caminhada. Com uma carreira bem-sucedida em algumas frentes, Drauzio recorda como foi colocar de pé o cursinho que viraria o maior de São Paulo e os passos para se estabelecer como um grande comunicador da área da saúde, primeiro dialogando com o grande público por meio do rádio, depois, também pela televisão e, mais tarde, via internet.

Por mais que carregue angústias, culpas e pesos de uma profissão em que o dever parece nunca estar totalmente cumprido, Drauzio segue. Ver surgir um sistema quase utópico como o SUS, revolução ainda em andamento que ampliou enormemente a abrangência da saúde pública no Brasil, é um dos grandes momentos dessa carreira. E as encruzilhadas contemporâneas - sacanagens de indústrias poderosas, sedentarismo, o cigarro eletrônico, os pontos ainda cegos da medicina, a pandemia de coronavírus vivida num país governado por negacionistas... - também têm lugar em "O Exercício da Incerteza".

Acompanhar as evoluções das áreas em que atua e compreender novas tecnologias são dois traços que acompanham Drauzio ao longo desses 60 anos de profissão. É por isso que o médico especializado no tratamento do câncer se transformou também numa referência ao combate à epidemia de AIDS no país. As pesquisas que encabeça para descobrir o como aproveitar as florestas da região do Rio Negro para desenvolver novos medicamentos soa como consequência dessa obsessão pelo conhecimento.

Essa, aliás, é uma camada preciosa do livro. Fica claro: o leitor está diante da história de alguém apaixonado pelo saber. Um médico que viu a sua profissão evoluir assombrosamente conforme deixava de lado crendices e convicções fajutas para se fiar no rigor científico. São muitas as passagens em que Drauzio explicita o prazer e a gana por estudar, aprender, colocar em xeque as próprias certezas, ser alguém atualizado e em permanente transformação. E ainda assim dizer: "Quanto mais velho e experiente fico, mais dúvidas carrego".

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"Uma História de Muitas Vidas": nesta quarta, dia 9 de novembro, conversarei com Drauzio Varella no Theatro Municipal de São Paulo. A entrada é gratuita, os ingressos podem ser retirados a partir das 18h. O papo faz parte da programação do Encontro com Autores do Jabuti. Apareçam!

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