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A morte do irmão e o medo da aids: é doloroso o novo livro de Trevisan

João Silvério Trevisan, autor de Meu Irmão, Eu Mesmo - Edmilson Castro
João Silvério Trevisan, autor de Meu Irmão, Eu Mesmo Imagem: Edmilson Castro

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

05/07/2023 04h00

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Em 2017, João Silvério Trevisan lançou "Pai, Pai", um dos livros mais impactantes de nossa literatura recente. Primeiro volume de uma prometida trilogia autobiográfica, nele o autor expurga a violência de um pai incapaz de demonstrar qualquer tipo de afeto. João segue empenhado em transformar em arte a relação com grandes homens de sua vida. Agora, em "Meu Irmão, Eu Mesmo" (Alfaguara), é Cláudio um dos pilares fundamentais da narrativa.

Irmão mais novo de Trevisan, em muitos momentos Cláudio foi a mão estendida para apoiar o autor em suas batalhas. Se o mais velho precisava de uma grana, Cláudio ajudava. Um aliado para assumir a homossexualidade e lutar pelos direitos dos LGBTs no país (e aqui mantenho a sigla usada na obra)? Cláudio estava lá. Força para que algum livro pudesse existir? Cláudio, que trabalhou como editor e livreiro, também dava a sua contribuição.

No primeiro volume dessa série biográfica o que temos é uma história na qual o autor procura remontar uma relação estraçalhada. Agora o caminho é o inverso. É uma amizade sólida, fraterna, que acaba devastada pelos rumos misteriosos da vida, pelas trilhas que levam o leitor para uma confraternização na dor.

Entre o final da década de 1980 e o começo dos anos 1990, João buscava assimilar como seguiria adiante após ser infectado pelo HIV. É com a aids a lhe assombrar que descobre que Cláudio também tem um sério problema de saúde: câncer linfático. Numa inversão da lógica de quem estaria marcado para morrer, é Cláudio quem falece aos 48 anos, deixando, além do irmão, a esposa e duas filhas.

Meu Irmão, Eu Mesmo, livro de João Silvério Trevisan - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

A maneira como o autor busca se compreender a partir dessa relação ecoa o sensível "Mil Rosas Roubadas", espécie de ensaio biográfico de Silviano Santiago (Companhia das Letras). Já a utilização de um leque variado de fontes - fotos, cartas, anotações em diários -, junto com o reavivar de alguém que se foi há décadas, lembra como Cristina Rivera Garza investiga a morte e refaz os passos também da irmã no ótimo "O Invencível Verão de Liliana" (Autêntica Contemporânea).

Relato memorialístico com estrutura de romance, é bom o jeito como Trevisan perambula para além da história central de "Meu Irmão, Eu Mesmo" para refletir sobre outras esferas da vida. É com olhar aguçado para a própria trajetória que repassa momentos marcantes do crescimento artístico e apresenta a sua visão da proximidade entre pornografia e religiosidade.

Também chama a atenção a forma como expõe agruras e decepções na luta por oportunidades, grana e reconhecimento na carreira. São de Tevisan obras como "Devassos no Paraíso" (Objetiva), impressionante livro de formação do país pela ótica da homossexualidade, e "Vagas Notícias de Melinha Marchiotti" (Record), romance de engenhosidade corajosa e bem-resolvida rara de se ver. Há papo no podcast sobre esse último.

Trevisan ainda passa pela incessante busca por amores que perdurem para além de uma noite, uma escapada num parque ou alguns encontros que parecem potencializar a solidão que virá a seguir. Entre o campo afetivo e sexual que o HIV cruzou o caminho do autor e lhe fez conviver com a iminência da morte. Com essa perspectiva, constrói um duro retrato do mundo assobrado pela aids. Mais do que o vírus em si, uma onda de preconceitos, estigmas e ignorância que ainda perdura se espalhou pela sociedade.

É assim que "Meu Irmão, Eu Mesmo" se ergue como um romance no qual João Silvério Trevisan olha para uma grande dor - a inesperada partida de Cláudio, seu irmão mais novo - para também dar feição literária a outras dores (vez ou outra atenuadas por bons momentos, é verdade) de sua própria vida.

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