Novelas reprisadas abordam temas polêmicos e mostram que os tempos mudaram
De Splash, no Rio
28/09/2020 14h54
As reprises de novelas em tempos de pandemia têm sido sucesso de audiência na Globo. Com o clima de saudosismo no ar, muita gente também assiste às tramas antigas no Viva e no Globoplay.
As novelas acabam sendo um registro histórico do que acontecia no Brasil e dos comportamentos da época.
"Todo o mundo gosta de ouvir de novo e de ver de novo as histórias que nos encantaram", explica Gloria Perez, autora de "A Força do Querer", exibida pela primeira vez em 2017 e reprisada desde segunda-feira passada (21) no horário nobre da Globo.
Ao observar o comportamento de alguns personagens nas novelas antigas, fica claro como a sociedade evoluiu e passou por transformações. Cigarro em ambiente fechado e criança no banco da frente do carro sem cinto de segurança são algumas das cenas que retratam o comportamento da época.
Ficção com temas do tempo
Maria Immacolata Vassallo de Lopes, professora da Escola de Comunicação e Artes e Coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP explica que a telenovela inserida numa sociedade capta os temas contemporâneos à sua maneira.
"Aquilo que está vigente é mostrado, mas há aquelas tramas que captam coisas que não são muito vistas. A Gloria Perez, por exemplo, faz uma análise para a frente, o que pode inclusive chocar. Só não podemos esquecer que a novela é ficção, a matriz é o melodrama."
O tema que Maria Immacolata acredita que mais tenha avançado ao longo dos anos foi em relação à mulher, que antes era vista como submissa e, muitas vezes, sofria com violência e agressividade do marido. Hoje, é mais comum que as personagens femininas apareçam empoderadas e independentes na TV.
"Podia ser mais acelerada a questão dos direitos homossexuais, da igualdade racial, mas a sociedade está mais esperta, ela faz parte dessa mudança. Está vendo o que acontece nos Estados Unidos em relação ao movimento racial. E a gente se identifica muito, por ser uma sociedade escravocrata."
A professora destaca, por exemplo, a trama da personagem Catarina, vivida por Lília Cabral em "A Favorita" (Globo, 2008), que era agredida pelo marido, Leonardo (Jackson Antunes), e conseguiu denunciar o agressor. Dessa forma, incentivou mulheres a falarem sobre a violência na vida real.
"Ela tinha vergonha de contar o que passava e, depois, isso alertou a sociedade sobre a importância de denunciar. Essa história é fundamental para perceber como as novelas de hoje são muito mais progressistas com relação à mulher do que no passado."
Passado X presente
Algumas novelas antigas abordavam o racismo, a homofobia e o machismo de forma naturalizada, não com a intenção de provocar um debate ou uma reflexão sobre os temas.
Em "Por Amor" (Globo, 1997), de Manoel Carlos, Marcelo (Fábio Assunção) tentou agredir Eduarda (Gabriela Duarte), sua esposa, e a cena foi vista com normalidade na época. Além da forma agressiva de falar com a mulher, o personagem a chama de neurótica e mal-educada.
Racismo
Em "Páginas da Vida" (Globo, 2006), Gabriela (Carolina Oliveira), criança na época, protagonizou uma cena de racismo e, ao ser repreendida pelo pai, Lucas (Paulo César Grande), é ameaçada de agressão. "Abre essa boca, senão eu te arrebento!", diz ele.
"A Cabana do Pai Tomás" (Globo, 1969) tratava da história de uma família que lutava contra a escravidão nos Estados Unidos. A trama foi criticada pelo escalação do ator que viveu pai Tomás: Sérgio Cardoso, homem branco que pintou o rosto para o papel —prática conhecida como blackface.
Retrato da sociedade x reflexão
As abordagens de temas polêmicos também podem ser diferentes. Hoje, é mais comum os autores se preocuparem em tratar de temas que merecem ser discutidos e tenter provocar uma reflexão no público.
É o caso de Ivana (Carol Duarte), em "A Força do Querer", que se identifica como trans ao longo da trama, enfrenta o preconceito da família e consegue passar pela transição. Com delicadeza, a personagem mostra o conflito que atinge muitas pessoas trans e fez crescer o diálogo sobre o tema.
Mesmo assim, algumas novelas ainda cometem deslizes. Em "Segundo Sol" (Globo, 2018), por exemplo, o público considerou humilhante como Roberval (Fabrício Boliveira) tratou sua noiva, Cacau (Fabiula Nascimento), após descobrir o caso dela com Edgar (Caco Ciocler).
Além das agressões verbais, ele rasgou o vestido de noiva na frente de todos os convidados na igreja, que observaram a cena sem interferir.
O colunista de Splash Mauricio Stycer destacou que, tanto no passado quanto hoje, "essas cenas de casamento desfeitos no altar reiteram a ideia de que a mulher merece punição pública e violenta por trair ou enganar o noivo. O que é lamentável".
'Não é cartilha do politicamente correto'
Gloria Perez destaca que assuntos naturalizados no passado, como diálogos machistas, homofóbicos e de violência contra a mulher, por exemplo, retratam a vida real e fatos que aconteciam na época.
As novelas retratam a vida, e todas essas coisas estão na vida. Elas podem, sim, ter um papel social. Mas não é sobre divulgar a cartilha do politicamente correto, e, sim, de suscitar discussões sobre um assunto.
Emanuel Jacobina, autor das primeiras temporadas de "Malhação" (Globo, 1995-2001 e 2010, 2015 e 2019), explica que, no início, a novela trazia novidade, porque era a primeira vez na TV brasileira que se colocava o universo do jovem como mais importante do que o do adulto.
Jacobina destaca que as novelas lidam com temas polêmicos e discutem estilos de vida que mudam com o tempo.
"Temas como homossexualidade, racismo, HIV, violência policial, aborto, entre tantos outros, receberam determinados tratamentos há 15 ou dez anos que não podem ser os mesmos hoje."
Samara Felippo interpretou Érica, portadora de HIV, que sofreu preconceito dos amigos da escola e foi tratada com preconceito por alguns colegas em Malhação (1999).
"Você não tem medo de abraçar desse jeito uma aidética?", disse um personagem durante uma cena.
Temas polêmicos
Será que temas abordados com naturalidade no passado poderiam ser repetidos nos dias de hoje? "América" (Globo, 2005), por exemplo, mostrou o relacionamento de Glauco (Edson Celulari) com Lurdinha (Cleo Pires), uma adolescente.
Gloria Perez defende a trama e acha que são histórias que sempre vão acontecer.
"Ou os cinquentões não se apaixonam mais por mocinhas? O tema continuaria sendo polêmico, e a discussão sobre ele incorporaria as visões de hoje."
Em "Pátria Minha" (Globo, 1994), de Gilberto Braga, o empresário Raul (Tarcísio Meira) humilhou seu jardineiro Kennedy com falas racistas ao encontrá-lo em seu quarto. "Você não me engana, não, negro safado. Você deu um jeito de abrir o meu cofre", disparou ele ao acusá-lo injustamente de furto.
Tarcísio disse ao "Vídeo Show" que o vilão foi um dos papéis mais difíceis que fez. "Ele era racista, horroroso. Me lembro de uma cena de preconceito, que não gosto de falar, me machucou, foi difícil para mim, uma violência. O personagem submete você a experiências difíceis, essa foi uma delas."
Redes sociais dão temperatura às tramas
Maria Immacolata explica que os temas abordados hoje provocam reação imediata nas redes, o que pode alterar os rumos das tramas.
Os produtores se interessam mais com o que acontece nas redes do que com o ibope. Isso afeta muito a temperatura da novela.
* Colaborou Aline Ramos.