Gianecchini olhou as próprias dores para fazer gay 'bolsonarista' em saga
Longe das novelas há quatro anos, Reynaldo Gianecchini, 50, está em cartaz no Rio de Janeiro com o trabalho mais diferente de sua carreira: a peça "A Herança" — que foi assistida por 25 mil pessoas em São Paulo. No palco, ele interpreta Henry, um homem norte-americano gay, conservador e traumatizado pela epidemia de Aids nos anos 1980, época em que viu diversos amigos morrerem.
"A Herança" representa uma forma de Gianecchini entender mais sobre a comunidade LGBTQIA+, na qual ele está inserido. A saga de seis horas de duração — dividida em duas noites — narra um debate geracional sobre o que é ser um homem gay. Com 12 atores em cena, a obra do dramaturgo norte-americano Matthew López trata de "quase todos os sentimentos humanos", como amor, desejo, sexo, amizade, solidão, rejeição e vulnerabilidade
Henry aparece na segunda metade da parte 1 de "A Herança" cheio de dores e com olhar durão, define o ator. Mais velho, ele chega em cena após a morte do marido e se aproxima do melhor amigo dele, Eric (Bruno Fagundes), homem mais jovem que vive uma crise conjugal. Com o tempo, Henry abre o coração para olhar suas dores e aprender a conviver com elas, tornando-se uma pessoa mais leve.
A jornada do personagem também faz Gianecchini olhar as próprias dores, apesar de serem diferentes das de Henry. "O Henry viu toda a turma morrer de Aids, os amigos, os amantes dele. Não tive essas perdas porque vim uma geração depois, mas tenho outras dores profundas que tenho de emprestá-las [ao personagem]."
Enquanto meu personagem faz sua jornada, como ator, eu faço a minha. Olho para as minhas dores e, no final, tenho afeto e compaixão pelo meu processo também. Desde a minha criança dolorida, até hoje. É bonito.
Reynaldo Giannechini
Durante a preparação, ele buscou entender o quão terrível foi a Aids nos anos 1980 e 90 nos Estados Unidos a partir de filmes e documentários. Ele ficou chocado ao saber que o governo negacionista da época deixava as pessoas morrerem por entender que era uma "doença de gays", além de lamentar o abandono afetivo das pessoas que contraíam o vírus.
"As novas gerações não têm a menor noção do que foi [a epidemia] porque elas não cresceram aterrorizadas pela Aids. Eu cresci. Não tinha a menor possibilidade de eu transar sem camisinha quando comecei a transar. O Henry diz: muita gente teve que morrer da geração dele para que essa geração pudesse desfrutar dos direitos que ela está desfrutando hoje."
Para Gianecchini, há um paralelo entre a política dos Estados Unidos e a do Brasil. Se Henry é eleitor republicano e ajudou a eleger Donald Trump na ficção, ele votaria em Jair Bolsonaro por aqui. "Seria um bolsonarista e, com certeza, ia comprar briga com muita gente, assim como foi em 2018. A gente teve vários amigos que brigaram com a família, não?"
No Brasil, o texto ousado da peça é traduzido pelo diretor Zé Henrique de Paula, que assina a produção com o ator Bruno Fagundes. São seis horas de espetáculo e 12 atores performando 25 personagem, além da participação de Miriam Mehler.
'Já deu falar de minha sexualidade'
Nos últimos anos, Gianecchini passou a ser cobrado a falar sobre a própria sexualidade — a qual denomina ser fluida — e enquadrá-la em uma das letras da sigla LGBTQIA+. Para ele, é hora de virar a chave em relação a esses questionamentos.
Precisa ser falado, mas é chato. Já deu falar da minha sexualidade. A gente tem que normalizar. A sexualidade é um assunto que as pessoas têm que olhar com uma lupa, não é uma coisa banal para você olhar e se definir facilzinho. E sempre bater na tecla do respeito às diferenças. Por que todo mundo tem que querer que se encaixa aqui ou se encaixa ali? Quando a grande, eu acho que o legal é você ser diverso mesmo. Cada um é de um jeito e tem a sua sexualidade. Por que tem que todo mundo padronizar tudo?
Reynaldo Gianecchini
Ele pontua que o Brasil avança no debate LGBTQIA+, mas ainda é um país com muitas pessoas preconceituosas. Por isso, é importante lutar, no entanto, sem brigas. É a favor de uma "militância na paz e suavidade" a partir de exemplos de acolhimento e respeito.acreditar. "Nunca é pela violência. Às vezes, a gente também quer brigar demais pelo tema, porque aquele, é muito caro para você, só que acaba também se ferindo."
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Quero receberA arte é um caminho para naturalizar as vivências e relações fora do padrão heteronormativo. Por isso, Gianecchini celebra poder levar uma peça com temática LGBTQIA+ a grandes teatros. O ator ainda comemora o fato de "A Herança" mostrar a diversidade dentro da própria comunidade sigla.
"A gente vê muito a temática LGBT sempre nos guetos ou no circuito alternativo. Quando a gente traz para o teatrão e normaliza as relações dessa comunidade, é interessante tanto para quem é da comunidade como para quem não é. Muitos casais héteros vêm assistir e se identificam. No final das contas, a gente está falando sobre seres humanos."
Serviço - A Herança no Rio de Janeiro
Temporada até 22 de outubro (parte 1: quintas e sábados, às 20h; parte 2: sextas, às 20h, e domingos, às 19h)
No Teatro Clara Nunes - Shopping da Gávea (Rua Marquês de São Vicente, 52)
Ingressos a partir de R$ 50, via Sympla
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