Testar só em ratos prejudica pesquisa; cientistas pedem outros animais
Os ratos de laboratório são tão conhecidos que os criadores do famoso desenho animado Pinky e Cérebro, exibido no final dos anos 1990, chegaram a imaginar dois deles saindo de suas gaiolas noite após noite para tentar dominar o mundo. A esfera científica, pelo menos, foi realmente dominada por algumas espécies de ratos (ainda que de maneira bem menos grandiosa do que a pretendida pelo destemido Cérebro).
Mas se por um lado os camundongos nos ajudaram a resolver muitos quebra-cabeças científicos (há uma série dos transgênicos, por exemplo, que são modelos para pesquisas de doenças neurológicas), por outro, desconfia-se que esta "monocultura" das pesquisas esteja emperrando o avanço de diversos estudos. A solução apontada por cientistas renomados é expandir os modelos animais usados em pesquisa, por exemplo.
TESTES NO BRASIL
O Concea (Conselho Nacional de Controle da Experimentação Animal), ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, ainda não possui um cadastro nacional do uso de animais em pesquisas científicas. O órgão está fazendo um levantamento das instituições de pesquisas, já que, até a lei Arouca ser regulamentada em 2008, o governo não reunia informações sobre o assunto. O Concea pretende ter os dados de biotérios de universidades e centros de pesquisas brasileiras até o fim de 2013 e divulgar o 'censo animal' já no ano que vem. Segundo o pesquisador Marcelo Morales, coordenador do Concea, o Brasil deve ficar um pouco acima do uso na União Europeia, com cerca de 90% de experimentação em ratos e camundongos
Só na União Europeia, em 2008, mais de 9 milhões de ratos (77% de um total de 12 milhões de animais usados em pesquisas) foram testados, manipulados, infectados, diagnosticados, vacinados e submetidos a toda sorte de experimentos criativos dos cientistas. Quem não se lembra daquele ratinho que ficou famoso ao receber um implante de uma orelha humana nas costas?
Desde os anos 1960, o número de ratos usados em laboratório quadriplicou, enquanto os testes em outros animais se mantiveram estáveis ou despencaram. Nos Estados Unidos, existe até um telefone de entrega de ratos de laboratório, o 1800-LAB-RATS.
Há uma lista de razões para tamanha predominância. Os ratos são mamíferos e, por isso, têm células, tecidos e órgãos semelhantes aos dos humanos; são "produzidos" em versões transgênicas para desenvolverem doenças genéticas com sintomas parecidos aos nossos; custam bem menos para serem mantidos em laboratórios do que animais maiores; e causam menos questionamentos éticos do que animais com os quais temos empatia, como cachorros ou macacos.
A cultura dos roedores - e de duas ou três outras espécies de animais como a mosca-de-fruta e alguns vermes - é tão estabelecida que é difícil que propostas de estudos com outros animais sejam aceitas.
90% das drogas testadas em ratos falham em humanos
"O risco é deixar escapar possíveis oportunidades de pesquisa se o modelo animal não for escolhido adequadamente", diz Jessica Bolker, professora-associada de zoologia do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade de New Hampshire, nos EUA.
COBAIAS DE LABORATÓRIO
PRÓ | CONTRA |
A pesquisa com animais mostra indícios do que pode acontecer com o organismo ao tomar certas drogas. Assim, os cientistas podem minimizar os efeitos colaterais antes de entrar na etapa dos testes com humanos | Nem todos os resultados obtidos em modelos animais podem ser transpostos diretamente nos seres humanos. É preciso fazer nova rodada de testes em animais maiores antes dos testes clínicos |
A parte genética dos roedores é muito próxima dos humanos, especialmente a imunologia e a regeneração de tecidos | Testes em laboratórios causam sofrimento, ferimentos e transtornos psicológicos nos animais, dizem os ativistas |
Roedores têm uma ampla manipulação gênica que facilita superexpressar os genes, isto é, de modificar o gene para entender respostas imunológicas do organismo | A manutenção de biotérios é cara: para manter 3.000 roedores, uma instituição gasta 15 mil reais por mês, em média. Uma alternativa eficaz ao modelo animal seria muito mais barato do que manter as cobaias |
Não é preciso de muito espaço para criar roedores, facilitando o controle do ambiente. A cobaia é tratada quase como um tubo de ensaio, tendo a temperatura, a comida e a pureza do ar controladas pelos cientistas | Fazer testes em mamíferos maiores, como cachorros e primatas, no entanto, é mais difícil para criar e acompanhar os resultados. Isso obriga os pesquisadores a usarem um número reduzido de animais nos experimentos, deixando o cronograma mais lento |
O uso de animais geneticamente modificados, que mimetizam doenças humanas, é considerado um grande avanço do século 21 para a ciência | Tecidos e órgãos em microescala podem substituir completamente o teste em animais, já que funcionam como modelos exatos dos humano |
- Fonte: Marimélia Porcionatto, orientadora da Pós-graduação em Biologia Molecular da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo); Marcelo Morales, coordenador do Concea (Conselho Nacional de Controle da Experimentação Animal); e Peta
"Concentrar as pesquisas em um número pequeno de animais comumente usados em laboratório não vai, em geral, levar a descobertas que estejam erradas no final - se bem que há um exemplo nos estudos de toxicologia com roedores da talidomida, que levou inicialmente a declará-la segura para mulheres grávidas: os efeitos teratogênicos da droga não apareciam em roedores. Mas os mesmos apareceram nos macacos rhesus", diz Bolker.
"Me preocupa que, ao focar somente em algumas espécies populares, nós possamos estar perdendo oportunidades de explorar mecanismos, ou aspectos específicos de uma determinada doença, que não são fáceis de serem observados ou estudados nessas espécies em questão."
Em 2004, a norte-americana Food and Drug Administration (FDA) publicou que nove em cada dez drogas testadas em animais - leia-se praticamente "testadas em roedores" - falhavam depois nos testes com seres humanos. Há evidências de que novos remédios para doenças como a tuberculose, que se manifesta de maneira totalmente diferente em humanos e ratos, estejam empacados há décadas pela insistência em testá-los sempre nos ratos e camundongos. Por isso, alguns laboratórios americanos estão investindo atualmente em testes com macacos.
"Disparidades entre os ratos e os humanos podem ajudar a explicar porque os milhões de dólares gastos em pesquisas básicas trouxeram poucos e frustrantes avanços clínicos", escreveu Bolker, no artigo There’s more to life than rats and flies (A vida não é feita só de ratos e moscas, em tradução livre) na revista Nature, em novembro de 2012. Em entrevista ao UOL, ela explica que "a culpa não é dos animais".
"Mas acho, ainda assim, que nós precisamos pensar com mais cuidados sobre como nós escolhemos os modelos animais e quais tipos de inferências sobre a biologia [e as doenças] humanas nós podemos justificar baseando-se em estudos de animais. Cada vez que nós chegamos a uma conclusão geral [ou a uma recomendação médica ou farmacêutica], baseada na pesquisa com animais, nós estamos fazendo algumas suposições sobre como certos resultados em animais podem prever os resultados em humanos."
No artigo da Nature, ela identifica prejuízos mesmo em casos nos quais os ratos trouxeram benefícios. Há ratos transgênicos para o estudo do mal de Parkinson, por exemplo. Mas eles não apresentam alguns sintomas significativos da doença em humanos, como o declínio da cognição – e isso pode fazer com que esse lado da doença não seja considerado pelos pesquisadores.
Além disso, uma série de doenças humanas não ocorre normalmente em roedores (como alzheimer, autismo, doença coronária arterial etc.). Para completar, nos estudos, a idade, o sexo das cobaias ou questões comportamentais raramente são levadas em consideração.
"Há uma grande quantidade de exemplos de drogas que pareciam ter efeitos benéficos excepcionais no modelo animal da doença, mas foram ineficazes quando testadas em pacientes humanos", diz Mark Mattson, chefe do National Institute of Aging nos EUA e autor de alguns estudos sobre o tema.
Mattson demonstrou que até o peso dos ratos de laboratório importa. Por serem sedentários, eles costumam ser obesos e inclusive diabéticos - como pequenas bolas de gordura. Ele estudou um remédio para derrame que havia sido testado em ratos com muito sucesso, sem que se considerasse o peso deles, mas que foi um fracasso retumbante nos testes subsequentes com humanos. Mattson refez o teste usando ratos "de regime" - e neles o remédio falhou.
Pesquisadores querem mais vertebrados em testes
Os cientistas não advogam pela interrupção dos testes em animais - pelo contrário, acreditam que a solução para estes impasses pode estar no aumento do número de vertebrados usados. "Minha recomendação é que os pesquisadores mantenham seus olhos e cabeças abertas, e procurem modelos animais que possam ser especialmente bons para uma questão particular - especialmente se os modelos tradicionais não funcionarem bem", diz Bolker.
Enquete UOL
A enquete “Você é a favor do uso de animais em pesquisas?” foi retirada do ar devido a suspeita de fraude
Recentemente, cientistas decifraram o genoma do peixe-zebra (Danio rerio), e descobriram que 70% dos genes desse peixe têm equivalentes no gene humano - o que sugere que estes e outros animais poderiam ser mais pesquisados e usados - cada qual dentro das características mais próximas aos humanos que apresentar.
Grande parcela da comunidade científica defende que os avanços científicos em estudos do câncer, HIV, diabetes, alzheimer, entre outros, só foram possíveis porque foram testados em animais. E destacam que a maioria das pesquisas são para busca de tratamento de doenças e prevenção e não para cosméticos - ramo no qual muitos países já não usam animais em testes.
Hoje, segundo a associação Americans for Medical Progress, os ratos estão em 95% das pesquisas com animais. Coelhos, porcos da guinea, hamsters, animais de gado, peixes e insetos preenchem cerca de 4%. Menos de 1% das pesquisas seria, de acordo com eles, com gatos, cachorros e primatas não-humanos. Além disso, o bem-estar dos animais é regulado por órgãos de cada país.
Órgãos em microescala é solução?
Há uma outra linha promissora de pesquisas que está desenvolvendo tecidos e órgãos em microescala, como a da pesquisadora Linda Gripphit, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) - aliás, famosa cientistas justamente por ter participado daquele experimento da orelha nas costas do rato.
O incrível desses novos órgãos e tecidos, é que eles podem em alguns casos substituir completamente o teste em animais com maior precisão, já que funcionam como modelos exatos dos humanos. Podem ajudar na descoberta de remédios para doenças como câncer e reduzir o número de transplantes.
O que os órgãos em microescala ainda não vão contemplar, segundo Mattson, são estudos de "interações complexas entre células, tecidos e órgãos que só ocorrem em um animal vivo intacto". Doenças de comportamento, neurológicas, de metabolismo, do sistema imunológico, estudos que levam em conta a relação dos genes com o meio-ambiente e dos efeitos de exercícios na dieta e na saúde estão nessa lista. Em tais casos, ao que tudo indica, os ratos continuarão dominando o mundo dos laboratórios, pelo menos até que se invista em encontrar modelos de pesquisa melhores.
*Colaborou Ingrid Tavares
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