Ingrid Guimarães: "Nós estamos reaprendendo a fazer humor nos dias de hoje"
Ingrid Guimarães vive do riso, mesmo quando a piada é amarga e temas como o machismo surgem na pauta. Mas ela consegue rir: no final, dá tudo certo.
Fenômeno nos cinemas com "De pernas pro ar" -- o terceiro filme chega em abril nos cinemas -- , e no teatro -- ficou 11 anos em cartaz com "Cócegas" -- a atriz de 46 anos chega nessa segunda (1º) na Globo com a série documental "Viver do riso", que foi transmitida no canal Viva, em que debate com 90 artistas da comédia temas como a participação das mulheres no gênero, além de homenagear Chico Anysio. Ela fica no ar até o dia 5 de abril, depois do "Jornal da Globo".
Uma das suas motivações para esse projeto foi porque sua filha, Clara, de 9 anos, não conhece Chico Anysio, certo?
Pois é. Tento mostrar comédia brasileira para ela, mas ela vê muita coisa americana, muita Netflix, coisas da Disney. Minha filha não conhece o humor brasileiro. Mas não só isso. Tem que haver um registro. Estudantes já me mandaram mensagem dizendo que estão usando a série para fazer trabalho de faculdade.
A Clara tem noção sobre do que se pode rir e o que não tem graça?
Essa é uma das discussões na série, porque a gente que faz o humor já levou muito na cara. Por exemplo: o Eduardo Sterblitch parou de fazer o personagem "Africano" que ele interpretava no "Pânico" porque foi detonado, e ele se tocou de que estava absolutamente errado. Mas não tinha intenção de provocar mal-estar em ninguém. O Paulo Gustavo se tocou de que não precisava se pintar de preto [o ator foi criticado pela personagem Ivonete, por fazer black face]. Então, a gente também está aprendendo. Somos as nossas próprias cobaias.
Num dos episódios você admite, inclusive, que foi machista com a Tatá Werneck. O que aconteceu?
Ali eu fui preconceituosa com ela. Vim de uma geração em que não se falava da mulher. A gente era escada para os homens e fazia o papel da gostosa e da feia. Aí viemos eu, a Heloisa Périssé, a Mônica Martelli e tantas outras fazendo peça e filmes sobre a mulher. Então eu falei para a Tatá que ela era mais menino, porque veio de uma geração após a minha em que já se sentia igual aos homens, fazendo o programa dela, que gostava de super-herói, de coisas que meninos gostavam também. Ela se emocionou e falou: "Mas sou menina também". E eu disse: "Você tem toda razão". Quando fui editar, eu falei: "Gente, vou tirar isso". Mas resolvemos mostrar, porque a gente também está aprendendo.
Existe um movimento a favor de não mais se assistir ou acompanhar trabalhos como "Friends" e "Chaves", pelo discurso preconceituoso. Você concorda que se deva, por exemplo, tirar do ar?
Acho importante transmitir esses programas de novo. Por exemplo: eu não tinha me tocado de que a abertura do programa do Jô Soares ("Viva o gordo") era um bando de mulher de biquíni. A gente achava normal esse tipo de coisa porque nunca nos foi apresentada outra opção.
Acho que é importante reviver o passado para transformar o presente e entender também como as comediantes mulheres foram muito revolucionárias num certo sentido
Você já recusou trabalho por causa disso?
O Marcius Melhem me chamou para fazer o "Tá no ar" lá atrás. Eu falei: "Isso não é pra mim. Sou atriz protagonista, e são todos protagonistas homens. As mulheres têm papel menor. Não vou sair do lugar onde estou". Quando voltamos a conversar sobre isso ele me falou que eu tinha toda razão. E o que o Marcius fez? Botou piada na boca de mulher, sobre mulher, e botou a Daniela Ocampo, que administrou esse projeto, como redatora final do "Zorra". Ele colocou redatoras mulheres no "Zorra".
Sua filha viu o episódio em que se discute a mulher no humor?
Ainda não mostrei para a Clara porque quero que tenha um impacto sobre ela quando ela entender um pouco o feminino dela. Ela é uma criança ainda. Minha filha é uma menina de 9 anos. Quero que quando ela tenha uns 13, 14 anos, ela veja e entenda. Hoje ela ainda não tem celular, mas tem a consciência sobre questões do negro e do gay, por exemplo. Agora, está estudando a escravidão. E está indignada. Se pergunta o porquê! Essa geração vai ser demais.
Já reconheceu o machismo na sua obra?
Eu nunca fui machista porque venho de uma família de mulheres e tenho uma mãe muito independente, que sempre trabalhou. Meu pai foi um pouco machista, mas minha mãe sempre foi dona do nariz dela. Hoje ela tem 72 anos, livro publicado e é uma advogada fodona. Então sempre me incomodei por estar num ambiente machista.
Sempre mexeu comigo fazer um papel estereotipado na televisão. Mas fiz durante muito tempo sem questionar porque era a opção que eu tinha
E quando você se deu opções?
Minha mudança foi no dia em que me chamaram para fazer um papel no programa do Renato Aragão onde o Didi sonhava com duas namoradas. Tinha a bonita, que era a Danielle Winits, e eu era a feia. Quando ele sonhava comigo, saía correndo. Eu recusei. E fui fazer "Cócegas", um fenômeno que ficou 11 anos em cartaz, e que falava da mulher solteirona, da modelo, da adolescente, da gente, do mundo feminino.
Eu olhei para o papel de mulher feia, liguei para a produtora de elenco e falei: 'Não faço mais papel com nenhum estereótipo. Avisa todo mundo que é melhor não me chamar'
Tem se discutido como lidar com a obra de artistas como Woody Allen ou Michael Jackson, acusados de abuso sexual. O que você pensa sobre isso?
Uma colega minha sofreu um abuso de uma pessoa que conheço. Então, não quero relação com essa pessoa. Para abuso e o estupro não tem negociação. Não vou trabalhar, não vou compartilhar o trabalho. Mas não vou deixar de admirar o trabalho do Woody Allen, primeiro porque sou muito fã dele. Ele foi um dos maiores influenciadores da minha carreira. E eu não sei como foi. Não se sabe qual é a situação dele. Quanto ao Michael Jackson, nem vi o documentário.
Quais suas grandes referências femininas no humor?
De lá de fora, me inspiro nas comediantes que escrevem. Sou muito fã da Kristen Wiig, Tina Fey e Amy Schumer. A Tina Fey tem os próprios programas. E acho que a solução é escrever para nós mesmas. E para as outras. E tenho admiração por mulheres como a Dercy Gonçalves e a dona Berta (Loran). Essa mulher fala quatro línguas, enfrentou o machismo, é judia que veio fugida da Polônia. E a Dercy precisou falar palavrão, se masculinizar nesse sentido, porque queria se colocar como protagonista, e meteu os pés no peito de todo mundo.
Dá pra fazer piada com o atual cenário político?
Tem que fazer. Em qualquer lugar do mundo. Nos EUA, no dia seguinte à eleição do Trump, já tinha imitação dele. A gente brincava muito mais com isso, na época dos Cassetas, quando eles imitaram todos os políticos. É importante para o país poder brincar com a política, num momento em que se vive uma tensão e divisão absoluta, para que se possa falar disso de maneira mais leve. Às vezes, esse militarismo faz com que você só se afaste da política. Quando se brinca com aquilo, de certa maneira, você aproxima as pessoas.
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