Arouche 100% gay: grupo luta para região de 'Sai de Baixo' continuar LGBT
Um senhor de bigode volumoso se arruma atrás de um balcão de madeira iluminado por lâmpadas amarelas. Cícero de Oliveira, 57, é o dono de um dos primeiros bares abertamente gays do país. O Caneca de Prata, fundado na década de 1960 na região do largo do Arouche, no centro de São Paulo, pertence a ele desde 2002. Cícero, natural do interior do Piauí, lembra-se de quando ainda era apenas frequentador do bar, na década de 1980. "Antes de virar o Caneca, aqui ficava o bar Pierrot, onde já existia um movimento gay a partir das dez da noite. Desde os anos 1960, aqui virou 100% gay", explica.
A fala ilustra uma disputa cultural e também política sobre os rumos do Arouche, região em torno do emblemático largo de mesmo nome que já foi sinônimo de glamour na cidade, passou por um período de decadência e, recentemente, atravessa uma fase de renascimento. No largo do Arouche, estão restaurantes tradicionais de São Paulo, como O Gato que Ri e La Casserole, 11 estátuas e também o mercado de flores fundado há mais de cem anos. O que moradores e frequentadores tentam postular, agora, é que o local também seja lembrado como um dos primeiros e principais polos LGBTs do país.
"A gente não é contra uma reforma do largo", diz Helcio Beuclair, líder do Coletivo Arouchianos, grupo LGBT+ do Arouche. Uma das reivindicações do grupo é que o largo seja também tombado como "patrimônio histórico imaterial" da comunidade LGBT e que sejam incluídas bandeiras LGBT e do orgulho trans nos postes da praça. "Queremos apenas que a reforma contemple e dê visibilidade à ocupação LGBT e vulnerável que historicamente ocupa a região."
Desde maio, o largo do Arouche passa por obras para transformá-lo em um bulevar de inspiração francesa. O governo do ex-prefeito e hoje governador, João Dória (PSDB), anunciou em 2017 a criação de uma "pequena Paris" no largo. O projeto previa uma rua com ladrilhos para pedestres, com acesso restrito a veículos, uma espécie de calçadão. A reforma começou em maio deste ano, mas foi suspensa pela Justiça.
Onde é hoje o largo do Arouche funcionava um campo para exercícios militares, aberto em 1820 pelo general Arouche de Toledo, primeiro diretor da Faculdade de Direito de São Paulo. A então praça da Legião estendia-se até a praça da República. Em 1865, os vereadores batizaram o largo como Campo do Arouche. Desde 1913, o local é chamado de largo do Arouche.
Segundo os arquivos do bar Caneca de Prata, herdados por Cícero dos antigos proprietários, na década de 40 o local era frequentado por executivos que trabalhavam na região central e buscavam bares mais discretos para se relacionar com homens. "Nos anos 90, alguns restaurantes, como o Almanara, fecharam ou mudaram-se para locais mais ricos da cidade. Ao mesmo tempo, já tinham começado a circular usuários de drogas por aqui", lembra Cícero. Com isso, o empresário explica que a clientela mudou e a renda diminuiu.
O Arouche ganhou fama nacional com o sitcom global "Sai de Baixo", exibido na TV entre 1996 e 2002, que fazia piada com a "chiquesa" dos personagens que moravam em um fictício edifício no largo.
No fim da década de 1980, para tentar tirar de circulação travestis que habitavam a região central, a polícia deflagrou a Operação Tarântula, com a prisão dessas pessoas com o objetivo de "lutar contra a Aids" (foto). Um dos chefes da operação dizia que a presença de travestis em São Paulo, em meio ao surto do vírus, era indicativa do "fim do mundo" previsto por Nostradamus.
"Muitos LGBTs negros, pardos e indígenas refugiaram-se no Arouche nessa época", diz Helcio Beuclair. Tradicionalmente aos domingos, o local se torna um local de socialização entre gays e transgêneros. Em 2015, a prefeitura instalou na rua do Arouche um centro para atender a LGBTs vulneráveis.
A nova reforma também prevê a instalação de um posto LGBT, mas o líder do coletivo diz não ter recebido garantias de que o posto ou as bandeiras LGBTs serão mantidos no projeto pela prefeitura. Inicialmente, o custo total das obras do Arouche foi avaliado em R$ 3,5 milhões. Os recursos vêm de uma parceira da prefeitura de São Paulo com 30 empresas francesas.
Em julho, cerca de dois meses após o início das obras, o Ministério Público afirmou que elas trariam "danos permanentes" ao largo do Arouche, que é tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), e a reforma foi paralisada. Nesta sexta (23), a Justiça manteve a suspensão das obras, declarando uma nova derrota para gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB).
Segundo a equipe de Covas, o projeto de revisão das obras do largo foi encaminhado para nova aprovação do Conpresp e deve ser analisado na próxima semana. Em nota, a prefeitura afirma que houve discussão com ativistas e moradores da região sobre a obra.
"Somos a favor de que a obra contemple e dê visibilidade à ocupação histórica de LGBTs na região", diz Helcio. "Chamar de bulevar parisiense uma região ocupada por LGBTs vulneráveis é um crime contra essa comunidade."
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