"Mulheres carregaram piano da pesquisa", diz infectologista do Emilio Ribas
Única mulher a participar do anúncio dos resultados da vacina CoronaVac, Rosana Richtmann é médica há mais de 35 anos e atua na diretoria clínica do instituto de Infectologia Emílio Ribas. Convidada pelo próprio governador de São Paulo João Dória a participar da entrevista coletiva da última quinta-feira, a profissional da saúde trabalhou diretamente, enquanto especialista e voluntária, no processo de pesquisa para combate à Covid-19.
Ela conta que ficou muito feliz em participar de um evento para divulgar a vacina que pode ajudar a conter o avanço da pandemia no país. "A maior parte das pessoas envolvidas em 'carregar o piano' da pesquisa são mulheres. Mas parece que, na hora de mostrar a vacina, essa proporção foi embora", aponta em conversa com Universa.
A crise do novo coronavírus não é o primeiro, nem o principal, desafio profissional que Rosana tem em mãos. Ela já enfrentou a pandemia de H1N1, a epidemia do zikavírus e o combate ao HIV - essa, segundo afirma, o maior desafio de sua carreira. "A gente não fazia ideia do que estava acontecendo naquela época. A velocidade do conhecimento era lenta, eu via muita gente morrer. Não que a gente não esteja vendo isso agora, mas a gente se sentia totalmente impotente", conta.
Mas o anúncio - e a participação de Rosana no evento - da vacina desenvolvida em parceria com o Instituto Butantan também foi um momento histórico. Após meses de dedicação, ela fala sobre a carga mental que enfrenta diariamente, os desafios da pesquisa, os conflitos entre política e ciência e chora ao lembrar da filha, uma jovem infectologista que seguia os passos da mãe e morreu em um acidente.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista com a médica.
UNIVERSA - O governo de São Paulo anunciou nesta quinta-feira o pedido de uso emergencial da CoronaVac e a senhora é uma peça importante nesse processo. Pode analisar a sua trajetória e a da vacina do início da pandemia até aqui?
ROSANA RICHTMANN - Logo no início, nós, médicos, ficamos extremamente inseguros. Como eu trabalho com vacina há muitos anos, eu acredito na imunização como saída. Assim que apareceu a oportunidade de participar do protocolo de vacinas, eu entrei de cabeça, me inscrevi no processo de pesquisa da CoronaVac e me voluntariei para todas as vacinas disponíveis.
A primeira que me chamou, eu fui. Sou voluntária da vacina da Pfizer desde agosto. Eu vi uma obrigação, enquanto profissional da saúde, de dar resposta o quanto antes para a população. Ontem foi um dia especial, claro que o resultado não é final, faltam muitos dados para serem apresentados, mas os resultados iniciais divulgados pelo Instituto Butantan foram muito satisfatórios, principalmente por saber que a vacina é segura.
No anúncio para a imprensa, a senhora era a única mulher em meio a muitos homens envolvidos no desenvolvimento da vacina. Como a senhora avalia esse retrato?
Também me chamou a atenção o fato de eu ser a única mulher ali. Óbvio que o governo do estado, e mesmo que fosse a nível federal, teria que colocar uma mulher no evento, até para evitar críticas.
Fiquei muito feliz de ter sido convidada e poder fazer parte disso, mas acho que é uma coisa que a gente precisa refletir. A maior parte das pessoas envolvidas em 'carregar o piano' da pesquisa são mulheres. Mas parece que, na hora de mostrar a vacina, essa proporção foi embora.
Se você for lá no Instituto Emílio Ribas, você vai ver uma carga razoável de mulheres trabalhando - tem homens também, é claro, porém é desproporcional. O próprio governador me disse que eu estava lá representando as mulheres e mães, mas eu acho que eu tinha que estar lá representando meu trabalho e não "as mães".
Inclusive, durante o evento, muitos dos seus colegas ali pareciam emocionados, com voz embargada. Como foi para você?
Eu estava muito feliz, o momento foi especial. Mas eu tento separar política de ciência. Então eu estaria muito contente na comunicação de qualquer vacina desse país, porque eu acredito na ciência, acredito na imunização. Naquele momento o que mais me emocionou foi o vídeo do Butantan, o pesquisador Ricardo Palacios falando sobre os resultados, aquilo me emocionou mais do que a apresentação da vacina em si. Acho que foi um momento importante, mas a gente sabe que tinha também uma conotação política. Então eu agradeci muito o governador pelo convite, mas deixei claro que a minha participação seria estritamente técnica.
Como você chegou a comentar, o governador João Dória agradeceu o seu trabalho e ressaltou o fato de você ser mulher e mãe, mas não fez o mesmo com os profissionais homens que participaram do evento.
É curioso, né? Ele até falou dele, dos filhos dele, do pai, da esposa. Mas o comentário me surpreendeu. Até porque essa é uma parte muito triste da minha vida, porque eu perdi minha filha mais velha, a Rê, em um acidente. Ela era infectologista recém-formada. Eu tenho também o Caio, meu filho mais novo, de 26 anos. Na coletiva, tinham vários homens lá e nenhum foi elogiado por ser pai.
Infelizmente nós, mulheres, temos uma vida mais complicada, porque tocamos a vida de mãe, de dona de casa, de tudo. É muito mais difícil para nós conseguirmos focar nos nossos estudos e também cumprimos essas outras demandas.
Para você, "2020 foi um ano de reflexão e 2021 será um ano de ação". Em sua opinião, o que falta para que um plano eficaz de vacinação seja colocado em prática?
O primeiro passo é comunicação. Acho que a falta de comunicação atrapalha muito. Antes dessa entrevista, eu falei com uma rádio do interior e, lá, o pessoal não quer vacinar, tem medo. Eu não consigo entender, mas tento respeitar. Acho que a comunicação é fundamental no nosso país, a gente tem expertise em vacinação, a gente tem estrutura para isso. Eu espero que tenhamos doses suficiente para garantir um plano nacional, mas antes precisamos comunicar a nossa população sobre a importância dessa imunização, porque a nossa única saída agora é a vacina.
No seu discurso, você ressaltou o impacto que a vacina trará para a rotina dos profissionais de saúde que estão atuando na linha de frente da pandemia. Em sua experiência enquanto médica, quais foram os momentos e episódios mais críticos que você vivenciou?
A gente se sente muito mal quando perde um paciente, se sente impotente, e não dá para chegar em casa triste, porque o marido, filho, ninguém tem nada a ver com isso. Então o primeiro desafio para os profissionais da saúde foi fazer um trabalho interno, de separar as coisas que acontecem no hospital e fora dele.
A minha sensação pessoal é a de que eu estou sempre devendo para todo mundo. Sinto que eu devo com meus pais, meu marido, meu filho, amigos, jornalistas, meus pacientes. A gente acaba achando que poderia estar fazendo mais, ou estar mais presente, isso é impossível.
Um amigo meu sempre me fala: "Quem abraça muito, aperta pouco". E eu me sinto assim. Na pandemia, eu abracei de corpo e alma a profissão. Lembro que o momento mais crítico que vivi foi no Emílio Ribas, quando estávamos com a UTI totalmente lotada -e infelizmente estamos caminhando para isso de novo. Recebíamos pedidos e mais pedidos de internação de pacientes, de transferências, de pessoas que você até conhecia, ou colegas que estavam desesperados, e simplesmente não tinha espaço para isso. Por isso, me incomoda acompanhar o crescimento do negacionismo e ver pessoas subestimando a importância do que está acontecendo. Os profissionais da saúde estão exaustos e as pessoas seguem minimizando a doença.
Depois da apresentação sobre a vacina, houve críticas sobre a ausência dos dados primários e taxas específicas sobre o resultado obtido com os voluntários. A senhora teve acesso a esses dados? Pode nos contar?
Não, não tive acesso a esses dados. Estou extremamente curiosa. Esses números não foram abertos, mas espero que depois que eles forem entregues para Anvisa, essas informações sejam divulgadas. O resultado é muito bacana, mas eu preciso entender melhor os dados, entender o que é aquela taxa de eficácia.
Por exemplo, não dá para falar em 100% de eficácia para casos graves, porque eu não sei quantos casos graves tiveram no grupo placebo e quanto tiveram no grupo de vacinados.
Em um vídeo publicado nas suas redes sociais, você deseja que 2021 seja um ano em que a política partidária não interfira nas evidências da ciência. Na sua opinião, como a política afetou o combate à pandemia?
A política foi a principal vilã da pandemia. Desde o começo houve uma negação com relação à prevenção - o uso das máscaras, por exemplo, a diagnósticos - porque achavam que não era necessário ter teste, e ao tratamento - quando você fala para a população que tem uma droga mágica que, infelizmente, não era mágica.
Agora, existe uma negação com a vacina. Eu nunca tinha visto isso. Nunca tinha visto autoridade apresentar caixa de remédio, caixa de vacina, nada disso. O Brasil fez um papel muito feio nessa pandemia, a gente podia ter evitado muito mais mortes do que aconteceram se a gente tivesse informação e uma comunicação mais responsável.
Você vê esperanças de que isso melhore a longo prazo? O negacionismo tem remédio?
Não, infelizmente. A cada dia eu fico mais desanimada nesse sentido. Por outro lado, é muito importante deixar claro que a parte técnica não está envolvida nessa briga política. Ou seja, os técnicos do Butantan seguem conversando com os técnicos da Bio-Manguinhos [unidade da Fiocruz envolvida nos estudos da vacina da Universidade de Oxford]. Nós, da ciência, estamos juntos tentando fazer o melhor possível. Só que a população, é claro, fica em dúvida sobre quem ouvir.
Qual a principal lição que poderemos levar da pandemia?
A principal lição é entender o quanto o nosso comportamento influencia o destino de quem está perto da gente. É uma coisa que precisamos absorver mais da cultura japonesa, por exemplo, entender o coletivo. Acho que, antes de tudo acontecer, nós tínhamos uma visão muito mais individualista e muito menos coletiva da sociedade.
Agora perceberemos que toda ação que fizermos, ou deixarmos de fazer, vai ter sim influência na minha vida, mas também na vida de quem está perto de mim, que, muitas vezes, é alguém que eu amo.
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