Professoras relatam assédio moral de pais e escolas por aula presencial
Janaína* está exausta. Professora de uma escola particular de elite em São Paulo e mãe de adolescentes, ela vive há alguns meses entre culpas, medos e o cansaço. Mas na última semana, quando foi permitido mais uma vez que as escolas retornassem ao ensino presencial no pior momento da pandemia de covid-19 no país, ela estava mesmo era magoada.
"Eles dizem que se a gente continuar perdendo alunos pelas nossas escolhas, a escola pode fechar. É como se nos colocassem como responsáveis pelo que está acontecendo. Os professores estão fragilizados e ainda precisam ouvir que podem perder o emprego, que a escola vai falir, que os alunos estão com problemas emocionais. Nós sabemos disso tudo. Mas eu vou ter que dizer que estou tentando também proteger o teu filho, que é meu aluno?", diz.
A professora faz parte do grupo de risco, teve problemas de saúde no ano passado e durante a conversa com Universa, alternou momentos em que parecia exasperada e triste. A escola em que trabalha decidiu fazer o retorno às aulas em fases. E, apesar de reiterar algumas vezes que a instituição é "ótima", ela avisa que não voltará às aulas presenciais. "Eu estou em greve. Nem que seja sozinha", diz.
Assim como ela, professores de outras escolas de elite da capital paulista também relatam cansaço, pressão dos pais e de diretores e situações em que foram constrangidas a voltar a trabalhar presencialmente, mesmo sem se sentirem seguras. Por parte dos pais, um comportamento que as docentes também relatam é gravar alguma parte da aula dos filhos que não consideram boas e enviar à direção para reclamar. Ou de se intrometerem no meio da aula para falar algo. Todas que conversaram com Universa pediram para não serem identificadas, por medo de serem demitidas.
Para Janaína, o que mais incomoda é que há uma ideia de que o professor não quer voltar a dar aula presencialmente porque não quer trabalhar — sendo que o ensino à distância está deixando todos exaustos com gravações, falta de limites de horário, entre outras coisas. "Falam como se a gente tivesse parado de trabalhar, pelo contrário, a sobrecarga do ensino à distância é sei lá quantas vezes maior", fala.
Minha rotina é receber ligação de aluno a qualquer hora e não conseguir dizer não. É ter que lidar com a fragilidade deles. Eu tenho um filho adolescente que não dá mais conta de assistir às aulas. E a gente se sente muito injustiçado porque ser professor é olhar para o outro, cuidar. Como você é acusado de não querer estar ali? Não existe professor que não queira voltar para o presencial. É o que todo mundo mais quer. São muitas culpas e muitos medos
"Estamos com medo de morrer e de matar com covid"
A professora Maria* também reclama da falta de informação e segurança nas escolas. Ela diz que no ano passado teve sintomas de covid-19 e chegou a ser afastada, mas para a comunidade escolar foi informado que ela estava com "sintomas gripais". "Eles falam que não têm números, mas a verdade é que estão escondendo esses números. Uma boa parte das pessoas que estão trabalhando com a gente já tiveram suspeita, mas isso não é informado, diz.
Se a gente fosse levar e seguir à risca como são os protocolos, não daria para dar aula. As escolas não têm ambientes ventilados, as crianças comem em ambientes fechados sem máscara. É meio desesperador estar no ambiente da escola. A gente está com medo de morrer, de perder nossos familiares, estamos com medo de matar. No Brasil, o vírus está fora de controle, e a ciência diz que o vírus precisa parar de circular. A nossa preocupação não é só conosco, é coletiva
Para Maria, a forma como a pressão está acontecendo é a mais problemática. Segundo ela, não há diálogo, mas um debate sobre o valor dos professores. "Eles dizem que quem não for forte o suficiente para ir, não precisa ir. Como se fosse mérito pessoal."
No caso do professor Renato*, a pressão veio por escrito. Ele recebeu um e-mail da escola em que trabalha afirmando que a situação financeira da instituição estava insustentável. O texto dizia que no último ano os professores receberam salários integrais e precisavam voltar presencialmente.
A mensagem da direção da escola, segundo ele, ainda dizia: 'Se alguns pais, que são médicos, estão trabalhando, por que os professores podem ficar em casa?'
Sindicato dos professores recebeu 66 denúncias em uma semana
De acordo com o Sinpro, o sindicato dos professores da capital, somente na última semana os canais de atendimento da entidade receberam 66 denúncias contra escolas. As acusações vão desde convocações para aulas presenciais, problemas com os protocolos sanitários e o não cumprimento de uma liminar do Tribunal Regional do Trabalho que protege quem é do grupo de risco ou vive com pessoas nestas condições.
"Os professores estão com medo, angustiados e culpados. O discurso usado nas escolas é de que elas podem fechar. Quando o patrão fala isso, o professor se sente culpado, como se estivesse errado", afirma a diretora do Sinpro, Silvia Barbara.
Ninguém melhor que os professores sabem o quão necessária é a escola. É um problema sério, mas tem um problema ainda mais sério que é a pandemia, diz Silvia.
Greve "sanitária" foi decretada, mas não teve adesão
Há algum tempo o retorno presencial é motivo de embates na Justiça. Em março, uma decisão da 9ª Vara da Fazenda Pública determinou que os professores não poderiam ser convocados para dar aulas presencialmente durante as fases laranja e vermelha da pandemia.
Em uma decisão recente, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou recursos apresentados em uma decisão que, segundo a Procuradoria-Geral do Estado, permite o retorno das escolas. Nesse meio tempo, o governo estadual incluiu a educação como serviço essencial. Os sindicatos dos professores discordam e afirmam que a decisão anterior continua valendo e que convocações são ilegais.
O Sieeesp (Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo), que representa as escolas particulares, diz que os sindicatos dos professores estão mentindo. "A sentença diz que podemos voltar", afirma Benjamin Ribeiro, presidente do Sieeesp. "Os professores querem ser a joia da princesa. Ou eles vão trabalhar ou vão perder o emprego. Quem não for trabalhar vai ter os dias descontados e se persistir, vai ser mandado embora por justa causa."
No meio dessa briga judicial, professores de algumas escolas particulares passaram a última semana reunidos em assembleias para tentar definir como iriam agir. Uma "greve sanitária" chegou a ser decretada, mas a adesão foi muito baixa.
O motivo principal para os professores não quererem voltar ao ensino presencial, segundo relataram a Universa, é o medo de se infectarem com o coronavírus por falta de segurança. A reclamação é de que muitas das escolas não oferecem ais funcionários máscaras PFF2 (que têm maior capacidade de filtragem do ar), não têm salas de aulas ventiladas e não podem garantir o distanciamento, já que os próprios alunos relatam se verem o tempo todo, dormirem um na casa do outro e até viajarem juntos.
Em uma das assembleias da semana passada, uma professora questionou as escolas sobre o retorno ao ensino presencial: "O que vocês esperam de mim enquanto professora? Que eu vá à escola e ensine matéria de vestibular para os alunos, fingindo que nada está acontecendo? Nós conversamos com eles sobre a pandemia nas aulas de ciências, falamos sobre a gravidade da situação, e de repente estamos de volta? É uma contradição".
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